O MAL-ESTAR DA DEMOCRACIA

  • Entrevista com Rafael Braga
  • Artigo: As jornadas de junho e o estado de exceção: legado autoritário da FIFA ou permanência histórica?

A forma como a Polícia Civil e o Poder Judiciário do Rio de Janeiro conduziram o inquérito que resultou no indiciamento de 23 ativistas em julho de 2014 pelo crime de formação de quadrilha armada é uma grave afronta ao Estado Democrático de Direito, e, não à toa, foi repudiada por juristas e entidades de defesa dos Direitos Humanos em todo o país. A Operação Fire Wall foi desencadeada pela Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI) no dia 12 julho, véspera da final da Copa do Mundo, para cumprir mandados de prisão de acusados por envolvimento em atos de vandalismo ocorridos em protestos desde junho de 2013.

Imagem retirada dos autos do processo

Nos autos do processo contra os 23 ativistas supostamente envolvidos em atos violentos durante manifestações, alguns detalhes chamam atenção e lembram até expressões usadas em investigações da ditadura militar. Em determinado momento, o inquérito descreve o comportamento de uma das ativistas da seguinte forma: “tenta disseminar suas ideias, tendo inclusive, conseguido reunir cerca de quinze pessoas” e “questionar a ordem vigente”.

Imgem retirada dos autos do processo

Vale destacar que o depoimento de uma testemunha que, segundo o inquérito policial, se apresentou por vontade própria à Delegacia de Repressão a Crimes contra Informática fundamentou a denúncia contra os 23 ativistas acusados de associação para a prática de vários crimes em protestos no Estado. Se algum dos ativistas, após investigações transparentes, for julgado culpado por algum delito, ele deve ser responsabilizado. Todo o processo precisa ocorrer dentro dos limites legais, respeitando todas as garantias constitucionais. Mas vemos uma atuação típica de uma polícia política, cujo objetivo é minar a legitimidade de todos os movimentos sociais, não apenas daqueles acusados de praticar atos violentos. Manifestar-se é um exercício de cidadania.

Ativistas detidos foram levados à Cidade da Polícia. Foto: Mídia NINJA

No episódio mencionado, a lista de violações[1] começa com as investigações da Delegacia de Repressão a Crimes de Informática (DRCI). Os delitos que cada um dos 23 indiciados teria praticado não foram individualizados e não foram apresentadas provas concretas sobre eles.

Pressupostos essenciais para proteger os cidadãos dos abusos cometidos pelo Estado, a presunção da inocência e direito de defesa foram violados. Ao contrário da imprensa, os advogados do grupo não tiveram acesso integral ao inquérito. Nem o desembargador da 7ª Câmara Criminal, Siro Darlan, responsável por revogar as prisões, obteve o documento dentro do prazo legal, considerando que os 23 ativistas acusados de participar de protestos violentos no último ano “não representam perigo a ordem pública”.

Os problemas persistiram após o inquérito ser entregue ao Ministério Público. Como noticiou o jornalista Lucas Vettorazzo, da Folha de São Paulo, o promotor Luís Otávio Figueira Lopes, da 26ª Promotoria de Investigação Criminal, levou apenas duas horas para analisar o documento de cerca de duas mil páginas, antes de enviá-lo ao Tribunal de Justiça. Se ele realmente se deu o trabalho de ler o material, o promotor consumiu impressionantes 16 páginas por minuto.

Manifestação pela liberdade dos ativistas presos em São Paulo. Foto: Mídia NINJA

O cenário não é novo. Reivindicações legítimas e urgentes, como o fim do aumento da passagem de ônibus, a abertura da caixa-preta dos transportes, a reforma política e a defesa da educação pública, por exemplo, foram tratadas como casos de polícia desde o princípio. Em vez do diálogo, o poder público lançou mão da força.

Nesse sentido, é importante mencionar que a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro também não contribuiu efetivamente com as demandas das ruas, pelo contrário, a Lei 6.528/13 (Lei das Máscaras), aprovada pela maioria dos deputados, em 10 de setembro, acelerou o processo de criminalização das manifestações populares. A aprovação da lei seguiu a tendência inaugurada pela decisão da 27ª Vara Criminal da Comarca do Rio de Janeiro, que permitiu que manifestantes mascarados pudessem ser identificados criminalmente, mesmo inexistindo fundada suspeita de prática de infração penal. Isto significa que os policiais passaram a ter a autorização de conduzir coercitivamente para delegacia, com a justificativa de consulta de antecedentes criminais, identificação datiloscópica e fotográfica, os manifestantes que tenham o rosto coberto por máscara, lenço ou afins, mesmo com identificação civil.

Foto: Mídia NINJA

Apesar de a lei vir com a justificativa de regulação do direito à manifestação, previsto no artigo 23 da Constituição Estadual, tal normativa constitui-se como um flagrante retrocesso no que diz respeito a valores democráticos. Isto porque, primeiramente, a detenção para averiguação, que é o que vem tomando lugar com a aplicação da Lei 6.528, criminaliza de forma ampla o exercício do direito à reunião e à liberdade de expressão, ao presumir que todos os manifestantes que cobrem os rostos o façam necessariamente porque pretendem cometer crimes; na verdade, muitas vezes, o uso da máscara impõe-se como proteção contra o efeito das armas menos letais (armamento antidistúrbios), tão frequentemente utilizadas de maneira arbitrária e abusiva pela polícia.

A restrição ao uso das máscaras é, portanto, medida desproporcional que importa em séria restrição ao direito à reunião, através de uma regulação que impõe uma limitação para além do que se coloca como legal pelos parâmetros nacionais e internacionais. Ademais, o uso de máscaras não impede, de maneira alguma, a identificação do manifestante, já que a autoridade policial pode cobrar-lhe a apresentação do registro civil, além de a Constituição garantir que o civilmente identificado não precisará ser submetido à identificação criminal.

“A criminalização da liberdade de expressão durante os protestos se apresenta pela tratativa penal que os manifestantes vêm recebendo frente aos seus pleitos. Ao invés do diálogo, da facilitação e segurança das manifestações e do respeito às garantias fundamentais da liberdade de expressão, liberdade de reunião e associação pacíficas, o Estado vem optando constantemente pela via repressiva e criminalizante. Grande parte dos detidos durante os protestos foi enquadrada nas delegacias em artigos do Código Penal e de outras leis penais, muitas vezes artigos e leis que são flagrantemente inadequadas para lidar com os protestos sociais. Os principais tipos penais que foram aplicados pela polícia em todo o país contra os manifestantes foram a formação de quadrilha (associação criminosa), dano ambiental, dano ao patrimônio público, desacato, incêndio, ato obsceno, posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, além de casos em que foi aplicada a Lei de Segurança Nacional.[2]

Ainda no tocante a legalidade dos procedimentos adotados pelo sistema de justiça do Estado do Rio de Janeiro, o depoimento, portanto, daqueles que presenciaram a suposta prática do delito é essencial para a caracterização do flagrante. Levantamento feito junto às organizações que acompanharam as inúmeras detenções ao longo das manifestações apurou que em 76% dos casos a única testemunha do caso era policial militar, policial civil ou guardas municipais.

Além disso, um dos tipos de flagrante reconhecidos pela legislação brasileira é o flagrante presumido ou ficto, que se caracteriza pela situação em que o agente é surpreendido com objetos ou documentos que o liguem à prática de uma infração penal, sem que tenha sido perseguido. Um dos casos mais emblemáticos nesse sentido é o do morador de rua Rafael Braga Vieira, que se encontra preso desde o dia 20 de junho de 2013.

No referido dia, marcado por uma grande manifestação ocorrida na Av. Presidente Vargas em direção à Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro a Polícia Militar levou Rafael Braga Vieira para a sede policial, alegando que este portava artigos explosivos. Deve-se ressaltar que os policiais alegam que este carregava uma mochila, fato contestado pelo acusado.

Manifestação pela liberdade de Rafael Braga. Foto: Mídia NINJA

Rafael, que é morador de rua, possuía materiais para higiene do local onde pretendia dormir, sendo autuado em flagrante delito por conta de uma garrafa de água sanitária e outra de álcool, além de uma vassoura. Rafael foi encaminhado ao presídio de Japeri. Foi realizada sua denúncia em 25 de junho de 2013, tendo como as únicas testemunhas arroladas pela acusação, policiais. Faz-se premente ressaltar que no Brasil, apesar da ampla prova de ilegalidade em diversas detenções em manifestações e da notoriedade de abusos cometidos pelos mesmos, existe a presunção de legitimidade de atos praticados por policiais. Sua prisão foi convertida em prisão preventiva para “manutenção da ordem pública”, colocando sobre ele condutas genéricas sem nenhuma forma de prova de que de fato este estaria usando tais líquidos para coisa diversa que a higienização de seu lugar de dormida.

Todo o inquérito se baseia na existência de duas garrafas plásticas sob a posse de Rafael, cujo intuito de utilização é suposto pelos responsáveis pelas investigações, sem nenhum outro indício, sendo inclusive colocado no laudo técnico que ambas possuíam aptidão mínima para funcionar como material incendiário. No dia 23 de setembro foi realizado um pedido de revogação de prisão preventiva de Rafael pela Defensoria Pública, julgado improcedente pelo Juiz da 32ª Vara Criminal no dia 27 do mesmo mês. Apenas em outubro de 2014 Rafael, já condenado, recebeu progressão de regime, cumprindo então a pena em regime semiaberto.

Portanto, diante dos graves fatos iniciados em 2013 e aprofundados em 2014, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos reafirma em suas ações que a luta política é pedagógica, baseada nas mobilizações sociais, no diálogo e no respeito à dignidade humana, defendendo como sua principal missão dar voz aos muitas vezes oprimidos. Não há qualquer concordância com qualquer grupo que use a violência como método. No entanto, a democracia é um princípio inegociável. Não podemos admitir que o Estado, por motivações políticas, use seu aparato institucional para atacar a liberdade e os direitos civis, cuja reconquista recente foi tão difícil. A criminalização dos movimentos sociais e da pobreza não pode ser vista como algo natural em um Estado democrático de direito.

[1] Relatório apresentado durante o 150ª período ordinário de sessões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Washington, DC, 28 de março de 2014) pelas entidades: Artigo 19 (Brasil), Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Porto Alegre (Brasil), Conectas Direitos Humanos (Brasil), Articulação Nacional de Comitês Populares (Brasil), Instituto de Defensores de Direitos Humanos (Brasil), United Rede Internacional de Direitos Humanos (Estados Unidos da América), Quilombo Xis — Ação Comunitária Cultural (Brasil), Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil) e Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro (Brasil)

[2] Vale lembrar que ao longo de 2013 as práticas de violência contra manifestantes e repressão da atuação de jornalistas e comunicadores sociais, por exemplo, evidentemente não se adéquam aos parâmetros internacionais para a matéria. Como exemplo de práticas estatais contrárias ao corpus iuris internacionais, tivemos a criação da Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas (CEIV), pelo Estado do Rio de Janeiro. A Comissão, criada com poderes investigatórios como o de impor a quebra de sigilo telefônico e com primazia de investigação sobre outros órgãos, chegou a ser revogada, após denúncias da sociedade civil acerca da sua inconstitucionalidade. Entretanto, o Estado continua criando novas figuras institucionais controversas, como os recentes tribunais-relâmpagos em São Paulo, criados para garantir a prisão provisória de manifestantes supostamente envolvidos em delitos durantes os protestos, mas que, porém, ao valorizar a celeridade em detrimento de uma investigação séria, podem vir a representar uma grave fonte de violações e abusos.

JUSTIÇA PARA RAFAEL BRAGA VIEIRA

Primeiro condenado das manifestações de 2013

O morador de rua Rafael Braga Vieira, 26 anos, foi o primeiro condenado devido às manifestações de junho de 2013. De uma família de sete irmãos, o rapaz que morava na rua há 13 anos desconhecia as motivações políticas que levaram as pessoas a se manifestarem naquele momento e sequer sabia os nomes do então governador e do prefeito do Rio. A sentença de cinco anos de prisão em regime fechado foi dada em primeira instância, sob a alegação de portar material explosivo e incendiário durante o ato do dia 20 de junho, que levou mais de um milhão de pessoas às ruas. O Tribunal de Justiça julgou, em agosto de 2014, o recurso de apelação de Rafael e reduziu a pena em dois meses.

Em outubro deste ano, a Vara de Execuções Penais do Rio deferiu o pedido dos advogados do Instituto de Defensores de Direitos Humanos e concedeu a Rafael o direito de trabalhar fora do complexo prisional de Bangu. Desde então, Rafael é auxiliar de serviços gerais e cumpre a pena em regime semiaberto no Instituto Penal Edgard Costa, em Niterói. Rafael reafirma sua inocência ao relatar que carregava garrafas pet com cloro e Pinho Sol. Eis uma entrevista concedida ainda em 2013.

ENTREVISTA

“Eu não parava muito perto das manifestações. Nunca tinha ido para outra antes. A primeira vez que vi de perto foi quando fui preso.” — Rafael Braga

AS JORNADAS DE JUNHO E O ESTADO DE EXCEÇÃO: LEGADO AUTORITÁRIO DA FIFA OU PERMANÊNCIA HISTÓRICA?

Por Fernanda Vieira [1]

O ano de 2013 marcou nossas histórias pela capacidade de nos apontar possibilidades de retomada das ruas em nome de mudanças necessárias na cidade e no campo, com movimentos massivos em luta por mais saúde, educação, transporte, enfim, reivindicações clássicas na busca pela efetivação da democracia, logo, do acesso aos direitos fundamentais.

A resposta estatal, seja municipal, estadual ou federal, acabou por reproduzir a mesma postura historicamente conhecida: um processo brutal de repressão e violência contra os manifestantes que lutavam por seus direitos. De fato, o que se observou foi uma ação coordenada entre os poderes (executivos, legislativos e judiciários), com o apoio necessário da mídia conservadora, na sedimentação do imaginário social de que ali se encontravam vândalos e não movimentos legítimos de reivindicação diante da imposição de um modelo de desenvolvimento que gesta uma cidade livre para o capital e a interditada para os trabalhadores, uma cidade de exceção.

Há que se reconhecer que o estabelecimento de uma cidade de exceção não é propriamente um fenômeno novo, faz parte do desenvolvimento do capitalismo a adoção de lógica de exceção como forma de sedimentação e garantia dos seus interesses econômicos. No entanto, o que se percebe contemporaneamente é a escala global de tal fenômeno, interpretado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben como a sedimentação de um Estado de exceção[2], o que para outros autores se configuraria em um Estado Penal, conforme Loic Wacquant.

O que caracteriza o atual estágio do capitalismo de cunho neoliberal é a escala global das medidas de controle social, ampliando-se as ações no campo penal, com rupturas com as garantias fundamentais trazidas nos textos constitucionais, sem que haja necessidade de desmonte das estruturas de representação, como parlamentos, ou mesmo o estabelecimento de um Estado totalitário, não sem razão David Harvey denomina tal período como sendo das “democracias totalitárias”.

Os exemplos que se ampliam a partir de 11 de setembro são cada vez mais visíveis: Guantánamo e Abu Ghraib, modelos inquisitoriais de prisão, tendo a tortura legitimada como método de interrogatório e adoção da diretiva de retorno pela União Europeia contra o imigrante indocumentado (geralmente negro e árabe) que permite a detenção sem processo por quase dois anos com a deportação e proibição de entrada no território dos Estados membros são demonstrativos de que a hegemonia do direito penal do inimigo parece ter encontrado um terreno fértil para sua execução[3].

No Brasil, não tem sido diferente. Se nossos inimigos ainda não são vistos como terroristas, o tratamento penal que lhes é imposto os alça a esse encargo, vide o Complexo Penitenciário de Pedrinhas.

Policiais Militares sem identificação em manifestação no Rio de Janeiro, dia 12 de julho de 2014. Foto: Mídia NINJA

Portanto, podemos extrair a partir das jornadas a sedimentação do Estado de exceção como um modelo de gestão no campo da segurança, eis o legado da FIFA! Diversas rupturas com os marcos constitucionais e normas internacionais no campo dos direitos humanos, garantidoras da liberdade de expressão, foram detectadas nas operações policiais de controle das manifestações, tais como: a não identificação dos agentes públicos, que receberam no RJ uma identificação alfa-numérica, dificultando a identificação do agente que cometia abuso de poder (e não foram poucos); uso abusivo de armas menos letais e letais; a detenção indiscriminada, incluindo pessoas que estavam sem máscara mas portavam vinagre, na medida em que fora divulgado que auxiliava no caso de spray de pimenta; a vigilância abusiva (com quebra de sigilo) nas redes sociais e de aparelhos de comunicação, como celulares e o whatsapp; infiltração de policiais nas manifestações com o objetivo de causarem tumulto e possibilitar as detenções e prisões[4].

Uso de armas não letais em São Paulo, julho de 2014. Foto: Mídia NINJA

Dentre as práticas abissais adotadas pela polícia carioca, que rompem com toda normatividade no campo penal, está a criação de um registro de ocorrência (R.O) denominado: MEDIDA ASSECURATÓRIA DE DIREITO FUTURO. Qualquer pessoa que fosse detida nas manifestações e não estivessem praticado nenhuma ação caracterizada em qualquer tipo penal, ainda assim era levada à delegacia e teria seus dados todos registrados em um R.O. (sob o título acima descrito) como forma de garantir um banco de dados para a polícia mapear quem esteve nas passeatas. Mesmo os advogados que acompanhavam os depoimentos dos detidos figuraram no R.O. como envolvidos.

Tal medida é reveladora do quão autoritária foi a prática de controle policial, autorizada pelo Executivo e legitimada pelo Judiciário. O saldo da operação militar de controle, de acordo com o relatório do Artigo 19, de janeiro de 2013 a Dezembro de 2013, foi: 8 mortes, 837 pessoas feridas, 2608 pessoas detidas, 117 jornalistas agredidos ou feridos e 10 jornalistas detidos[5].

Para o jurista português José Gomes Canotilho (2008) [6], torna-se mais visível a partir do 11 de setembro americano o avanço em escala global dos discursos antigarantistas que colocam em questão a manutenção de determinadas garantias constitucionais no campo penal e processual penal. Para os detratores dos marcos constitucionais tanto a Constituição, quanto suas garantias, são responsáveis pela desproporcionalidade no combate à criminalidade, justificando-se assim a flexibilização de tais garantias em nome da ordem e da segurança.

Não é pouco significativo que se perceba o crescimento da ampliação punitiva, logo do direito penal, com regras diferenciadas para determinados agentes que cometam o ilícito, ou como nos fala Canotilho: um direito penal contra o inimigo, responsável por uma modificação doutrinária rompendo com os princípios do campo penal, como a:

(…)centralidade do paradigma do crime de perigo indirecto, de forma a possibilitar a incriminação de condutas que, em abstracto, se revelam inidóneas e desadequadas para criar aquelas situações de perigosidade legitimadoras de antecipação de intervenção penal; (…) inversão do onus probandi,atenuando a presunção de inocência do arguido; (…) radicalização da pena de prisão nos seus limites máximos e mínimos, e intensificação do rigor repressivo nas várias modalidades de execução de penas, acompanhada de bloqueio a políticas criminais alternativas (CANOTILHO, 2008, 236).

Essa subversão da ordem democrática no período das jornadas, que apontou para uma flexibilização das garantias fundamentais, foi amplamente reforçada por setores sociais, como a larga campanha midiática da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert), da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), da Associação dos Repórteres Fotográficos e Cinematográficos do Rio (Arfoc), que lançaram documentos após a trágica morte do cinegrafista Santiago Ilídio Andrade, da TV Bandeirantes, pedindo um contra-ataque do Estado, ao ponto de requererem “(…) que as autoridades de segurança do Estado do Rio de Janeiro instaurem imediatamente uma investigação criminal para apurar quem defende, financia e presta assessoria jurídica a este grupo de criminosos, hoje assassinos, intitulados black blocs, que agridem e matam jornalista e praticam uma série de atos de vandalismos contra o patrimônio público e privado”.

Tal requerimento foi prontamente atendido com a instauração do inquérito policial n° 218–01646/2013 pela Delegacia de Repressão a Crimes de Informática (DRCI), que se transformou no processo criminal nº0229018–262013.8.19.0001, em trâmite na 27ª Vara Criminal, marcado de contradições, eivado de nulidades, com amplo acesso a mídia e restrição aos advogados[7], em que a própria assessoria jurídica, uma garantia constitucional derivada do princípio da presunção de inocência, será criminalizada.

Muitos advogados alegaram na imprensa que estavam sendo investigados por prestar assistência jurídica gratuita aos manifestantes violentos que são presos. Ocorre que apenas aqueles que permaneceram com os manifestantes, em tempo integral, nos protestos e movimentos de ocupação de atos violentos, sem recebimento de honorários, e os que convocaram os manifestantes para ocupações demonstraram atitudes suspeitas e contrárias ao estabelecido no Código de Ética da OAB ao fomentarem práticas de crimes (inquérito nº 218–01646/2013, anexo 2 — grifo no original).

O cenário de barbarização que se assistiu nas jornadas não nos parece uma ação congelada no tempo. Ela impôs um ethos nas práticas do campo da segurança, que já possui uma formação militarizada e de rebaixamento da cidadania, em especial se esta é negra e/ou pobre, moradora de favela. Não sem razão, Loic Wacquant (2012)[8] ao analisar a gestão penal na ordem neoliberal nos apresenta um cenário de controle militarizado das questões sociais cada vez mais visível como forma de contenção dessa massa humana que será rebaixada pelo capital. As inseguranças sociais, derivadas do próprio modelo econômico, serão respondidas por meio de uma ampliação penal, tendo a prisão como resposta para todas as mazelas sociais.[9]

Não são ventos novos e democráticos os trazidos pelos que defendem uma ampliação punitiva com ampliação do tempo de pena, com redução da maioridade penal. Trata-se de um retrocesso autoritário e violento que marca e marcou a nossa formação social.

A formação de uma elite oligárquica, que sempre se apresentou como “naturalmente vocacionada” ao poder[10], constrói uma história marcada de violência cotidiana contra a pobreza e a oposição.

A resposta à barbárie não pode ser mais barbárie e sim a aposta em novos marcos civilizatórios demarcados pela tolerância, pela pluralidade e justiça social.

[1] Advogada, Professora da Universidade Federal de Juiz de Fora e integrante da entidade Mariana Crioula.

[2] Para Agamben o estado de exceção se apresenta cada vez mais como uma regra em nossa vida, tendo por pressuposto a flexibilização das garantias constitucionais pelo intérprete judicial, gestando em determinados campos, territórios, a possibilidade de sobrestamento do direito. As ações das UPPs nas favelas cariocas parecem explicar com perfeição a concepção do autor acerca da sedimentação de um estado de exceção.

[3] Não é pouco significativo que os discursos dos candidatos a deputado estadual de múltiplos partidos apresentavam como plataforma a redução da idade penal, ainda que não tivessem competência para a matéria, demonstrando o quão o discurso punitivo seduz ainda que de forma irracional e alienada.

[4] De fato, a atuação da polícia carioca em muito lembra a ação da Geheime Staatspolizei (polícia secreta do Estado), mais conhecida pela acrônimo Gestapo. Polícia criada em 1933 e que teve um papel preponderante para a sustentação do regime nazista. Conhecida por seus métodos violentos de captura, deteve poderes de investigação e execução, tendo a tortura como uma prática de interrogatório. Infiltrava seus agentes nas organizações sindicais e insuflava o movimento reivindicatório e posteriormente desaparecia com os sindicalistas que apresentavam liderança. Detinham sem motivação, como forma de mapeamento dos indivíduos. A forma como se estruturou a Gestapo traz muitas referências para o que se viu no decorrer das jornadas, incluindo a infiltração de agentes, tanto nas passeatas, como em determinadas organizações.

[5] ARTIGO 19 BRASIL. Relatório protestos no Brasil 2013. Pág. 15.

[6] CANOTILHO, José J. G. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra, Coimbra editora, 2008.

[7] Para Eugênio Raúl Zaffaroni (2007) o desafio diante dessas alterações no campo das garantias reside na ampliação dos indivíduos que em escala global serão entendidos como perigosos, os inimigos do estado, pois nessa perspectiva de recrudescimento punitivo o que se percebe é um rebaixamento do agente capturado pelo sistema penal como um não-ser, alguém destituído de civilidade, um bárbaro. ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2007.

[8] BATISTA, Vera (org.). Loic Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro, Revan, 2012.

[9] Wacquant analisa essa ampliação no imaginário social que se traduzirá por mais pena, mais cadeia, derivado desse sentimento de insegurança geral, do medo ampliado pelos discursos conservadores da mídia, sempre atenta em amortecer os sentidos, em nome de uma ordem com maior controle sobre os estratos sociais mais vulneráveis econômicos.

[10] Nosso atual congresso nacional espelha essa dimensão com a ampliação das bancadas dos milionários (quase metade), do agronegócio e dos evangélicos.

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