O Período de Tim Maia nos EUA, Pai da Soul Music no Brasil

Lucas Henning
-Relevo, +Música
Published in
8 min readFeb 16, 2020

Muito ainda no clima do recém lido livro de Nelson Motta, “Vale Tudo, A Fúria e o Som de Tim Maia”, é impressionante como alguns fatos que parecem irrelevantes acabam por se tornarem peças fundamentais na história da música brasileira. A história que queria contar hoje aqui é a relação que o Tim Maia teve com os EUA, com New York, com o som da Motown, e como esse contato resultou em trazer para o Brasil uma nova forma de fazer e produzir música nos anos 70.

Maia próximo aos 17 anos, após constantes desentendimentos com sua banda, Sputniks, que contava com um ainda desconhecido Roberto Carlos em sua formação, resolveu buscar novos ares para sua vida. Através de alguns rolos, muitas mentiras e com o sonho de se tornar um cantor famoso, Tim conseguiu uma ajuda de custo com a igreja que sua família frequentava para ir para os EUA, sobre a promessa de que tinha ganhado uma bolsa de estudos para realizar um curso de televisão e cinema.

Chegando lá, não existia curso algum, e tudo que encontrou em um primeiro momento foi apenas solidão, frio, fome, e uma emergente cena musical. Era um período em que a música negra americana estava se tornando uma potência, e onde ele iria com a alma de encontro a Soul Music, que veio a ser o estilo que o apadrinhou e pelo qual foi apadrinhado.

A chegada de Tim aos EUA em 1959 coincide com o ano de criação da Motown, responsável por difundir e produzir um enorme material exclusivamente formado por cantores e músicos negros. O “Som da Motown” em pouquíssimo tempo acabou virando um selo de qualidade e uma assinatura poderosíssima que estava invadindo as rádios americanas.

Nessa primeira fase da gravadora, a principal aposta eram grupos vocais como The Supremmes — com Diana Ross em sua formação , The Pips — com Gladys Knights , The Miracles — com Smokey Robinson ,e The Temptations — do grande hit My Girl . Tim era apaixonado por conjuntos vocais, e um dos que mais admirava eram Os Cariocas, que cresceu ouvindo e até gravou um disco junto muitos anos depois.

The Miracles — The Pips — The Supremmes

Ainda nos EUA, outros cantores como Sam Cook e Ray Charles estavam em seu auge, e não demorou muito para “Jimmy, The Brazilian”, como era conhecido lá , fazer amigos e montar o grupo “The Ideals” para tocar as músicas que admirava.

The Ideals — Primeira gravação de estúdio

Paralelo a vida músical, Tim estava passando por apuros lá. Já tinha morado e sido despejado de vários endereços e estava morando em bairros barra pesada formados por uma população negra de baixa renda, onde a truculência policial, tráfico de drogas, e crimes eram parte de seu cotidiano. Em pouco tempo ele também estava cometendo furtos, utilizando das mais diversas drogas, e usando disso para exercitar seu lado compositor. Após pouquíssimo tempo já estava fluente em inglês, morando junto com uma família que o adotara, e completamente imerso dentro da música negra. Após algumas passagens pela polícia, em 1964 após 6 meses na cadeia por ter furtado um carro e posse de drogas, foi finalmente deportado para o Brasil.

Após retornar ao seu país de origem, que na época vivia o auge da jovem guarda, se deparou com todos os seus amigos com quem crescerá na Tijuca — Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Jorge Ben — participando de programas de TV, gravando discos, e efetivamente iniciando suas longevas carreiras. Através desses contatos ele conseguiu pequenas participações em programas de TV, compôs canções que seriam gravadas por outros artistas posteriormente, e gravou um compacto pela CBS.

Uma das primeiras aparições solo na TV

Foram períodos bem difíceis para Tim, além de ter uma péssima fama de encrenqueiro, também sofria muito com baixa auto-estima e se considerava o anti-padrão da jovem guarda. Gravou nessa época algumas coisas em inglês e outras em português mas suas músicas não emplacavam, e ele quase sempre estava sem grana. Aqui na sequência está um video raro de uma apresentação que realizou no Programa Jovem Guarda da TV Tupi, onde é vísivel que seu som estava muito a frente de seu tempo.

"Idade" e "Do Your Thing", do seu primeiro compacto — TV Tupi

Nesse vídeo é possivel ver que além um timbre único, ele tinha um jeito muito diferente de cantar e arranjar as músicas. Muito mais solto, muito mais swingado, muito diferente dos outros membros da jovem guarda que seguiam um padrão mais "engessado" de canções. Não demorou muito para ser chamado para produzir outros artistas que também queriam um pouco dessa sonoridade.

Um ponto de virada na sua carreira foi o convite para produção do disco de Eduardo Araújo de 1968.

"Meu carro é vermelho, não uso espelho pra me pentear…"

Eduardo Araújo alguns anos antes ficou nacionalmente conhecido pelo sucesso “O Bom”, mas como o som do Iê Iê Iê já estava repetitivo e desgastado, decidiu pedir para Tim produzir seu novo disco e deu carta branca pra ele inovar no som.

Tim ouvindo gravações , tocando bateria, e sax.

Além de ter um ouvido extremamente privilegiado, Maia também era multi-instrumentista e sabia exatamente a sonoridade que queria alcançar. Ele passou a lição de casa para os músicos de estúdio, ensinou como tocar bateria de forma swingada, o baixo a colar em cima do bumbo e da caixa, a guitarra a tocar em contra ponto, os metais a atacarem e complementarem a melodia vocal.

O resultado foi “A Onda É Bogaloo”, considerado o primeiro disco de soul music do Brasil. Destaque para as faixas “Bogaloo na Broadway” e “A Mulher”, que traz muito da sonoridade que Tim iria incorporar nos seus trabalhos autorais. O disco ainda traz uma versão meio tímida da “Você”, que acabou passando batida na voz de Eduardo e futuramente viraria um sucesso estrondoso reconhecido nacionalmente na voz de Tim Maia.

Em 1969, a música composta sobre encomenda “Não Vou Ficar” foi gravada por Roberto Carlos, e foi responsável por apresentar uma sonoridade mais adulta a carreira do cantor. No ano seguinte ofereceria para Elis Regina gravar “These Are The Songs”, que também participa como cantor.

Tim Maia — 1971

Em 1970 gravou seu primeiro disco autoral, e merecidamente, teve seu nome difundido aos quatro ventos com hits como “Primavera”, “Azul da cor do Mar”, e “Eu amo você”. Sua sonoridade original combinando ritmos brasileiros como baião, bossa nova, e samba junto com soul music, estabeleceu uma nova forma de compor e influenciou uma geração que viria na sequência. Outros expoentes da música black que surgiram nesse período por consequência direta foram Hyldon, Cassiano, e Carlos Dafé.

Tim , Cassiano, e Hyldon — Carlos Dafé e Tim

Todos tocaram e compuseram em algum momento de suas carreiras junto com Tim Maia. Esses músicos vieram a participar e compor diversos sucessos nos anos subsequentes, e carregaram o legado da soul music tanto em seus próprios trabalhos quanto para outros artistas.

Hyldon, "Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda" — Cassiano, "Cuban Soul, 18 Kilates"- Dafé, "Pra que vou recordar"

Junto com o primeiro disco de Tim, eu recomendaria alguns discos para conhecer mais do som seminal que se formou na época. Hyldon com "Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda", que já foi um grande sucesso na época com a canção homônima, mas teve um revival na versão do Kid Abelha anos depois. Desse disco destaco também a música "As Dores do Mundo", posteriormente gravada pelo Jota Quest.

Cassiano teve grande sucesso com a música "A Lua e Eu" na época, mas é principalmente lembrado por ser autor de "Primavera" e "Eu amo você", sucessos na voz de Tim. Dafé também teve grande sucesso com o samba-soul "Pra que Vou Recordar o que Chorei", mas é mais lembrado como guitarrista que ajudou a formatar o som de guitarra da época.

Mas como esse post é sobre a relação do nosso protagonista com os EUA, eu separei algumas músicas em inglês que Tim gravou em seus discos na década de 1970, que poderiam facilmente terem virado hinos tão grandes quanto as músicas de Marvin Gaye, Stevie Wonder, James Brown. Eu percebo muito da sonoridade motown, mas ao mesmo tempo com um tempero muito brasileiro. Pensando nisso, eu montei uma playlist com algumas músicas dessa fase, majoritariamente gravadas em inglês.

Bônus — The Existential Soul of Tim Maia

Tim por ter uma ligação muito grande com a cultura norte-americana, ainda tinha o sonho de estourar suas músicas de forma internacional, tanto que gravou alguns discos em inglês nas décadas seguintes mas nada aconteceu. Até que em 2003, 5 anos após sua morte, David Byrne, exímio estudioso e pesquisador de world music, fundador e vocalista do Talking Heads, montou a compilação “Nobody Can Live Forever — The Existential Soul of Tim Maia”. Essa excelente coletânea foi extremamente bem sucedida nos EUA, Japão e Europa, e transformou os discos de Tim, principalmente da fase racional, em raridades lá fora e objeto de adoração cult dos mais aficcionados em música. Essa coletânea tem um equilíbrio certeiro com músicas em inglês e português, e foge dos seus hits mais tradicionais do Brasil, dando preferência as músicas com maior desenvolvimento instrumental que mostra o surgimento seminal da soul music tupiniquim.

O lançamento desse disco veio acompanhado de uma animação biográfica, contando resumidamente a saga do nosso fundamental "Tim Maia Do Brasil". E aí, será que a black music teria acontecido da mesma forma sem Tim ?

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