A laranja refém do Quase

Felipe Portes
Revista Relvado
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3 min readJan 10, 2018

Sim, eles foram fantásticos. Possivelmente, os melhores e mais impressionantes, mesmo perdendo. Revelaram tantos talentos, nos presentearam com a plasticidade de uma filosofia de jogo louvada até hoje. Com um uniforme chamativo, a Holanda encantou e voltará a fazê-lo quando se resolver consigo mesma.

O mundo conheceu de vez o puro futebol holandês com os três títulos europeus do Ajax entre 1971 e 73. Ainda que o Feyenoord tivesse sido campeão continental em 1970, não é desse time que o torcedor de qualquer outro país fala com certa nostalgia e empolgação. A Holanda de 1974, um misto de jogadores dos rivais campeões da Copa dos Campeões, é o futebol-modelo, o básico que qualquer bando de jogadores deveria tentar fazer em campo.

Obra de Rinus Michels e de seu general Johan Cruyff, o totaalvoetbal é, em suma, a consagração da simplicidade. E poucos sabem o quão é difícil e desafiador jogar simples. Por anos, a Holanda chegou como favorita ao título da Copa do Mundo, mesmo sem ter sido jamais campeã. Perdeu as finais de 1974 e 78, no auge, depois entregou a pragmática geração de 2010, treinada por Bert van Marwijk. Nesse intervalo, muita água rolou.

Renunciando quase que inteiramente aos seus preceitos, a seleção alaranjada levou a Eurocopa de 1988 muito mais na base do talento do que de um estilo. Muitos jornalistas da própria Holanda entendem que a conquista na Alemanha foi uma espécie de acidente, já que o rendimento do elenco não esteve nem perto do satisfatório. Fruto da moral elevada ou um resquício da fantasia dos anos 1970? Criava-se ali um conflito que atravessou as décadas seguintes: perder dando espetáculo ou ganhar feio? Para uma nação que ficou conhecida pela sua participação quase artística, a vitória era apenas um detalhe.

Toque de bola, frieza, qualidade técnica, consistência, jogadores qualificados: a Holanda teve tudo para ser coroada ao menos mais uma vez como campeã de qualquer coisa. Veja a seleção de 1998, por exemplo, carregada por Dennis Bergkamp e Patrick Kluivert, ambos no ápice de suas trajetórias. Esse time, treinado por Guus Hiddink, jogou de igual para igual com Argentina e Brasil nas fases finais, mas provou que carecia de um instinto fatal para triunfar. Não é absurdo cravá-lo como a mais interessante do Mundial na França.

Esqueça a Holanda entediante de 2006 e a peça brutal de 2010, que chegou à final contra a Espanha subvertendo suas raízes e jogando algo mais parecido com o estereótipo da Grécia. Com toda a linhagem que remonta à Era Cruyff, o fascínio em torno dos holandeses durou apenas até a Eurocopa de 2000. Daí em diante, até surgiram grandes talentos, mas a seleção foi ladeira abaixo.

Até que recupere sua força e pare de dar vexames, não só nos resultados, a Holanda será sempre refém do quase. E nesse ponto, talvez precise decidir se quer ser vencedora, fugindo de seu cativeiro, ou se ficará contente apenas com o papel habitual de bela da noite.

No que depender do legado de Cruyff, Johan Neeskens, Ruud Krol e Bergkamp, a estética estará sempre acima da competitividade. Se a nova Holanda quiser renascer no futebol como uma potência que ganhe títulos, isso poderá representar uma traição a tudo o que eles um dia plantaram. Embora seja a ocasião perfeita para que novos conquistadores sejam alçados à glória.

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Felipe Portes
Revista Relvado

Desenhista. Estudante de Letras-PT. Adepto da autoironia. Também estou em instagram.com/draw.portes