Há limite para a idolatria?

Jessica Miranda
Revista Relvado
Published in
4 min readFeb 20, 2018

O atacante Vinicius Júnior, do Flamengo, fez gol e comemorou ironizando o “chororô” do Botafogo. Dias depois, outro Vinícius, o do Bahia, marcou e dançou “créu” em frente à torcida do Vitória, causando uma briga generalizada como há tempos não se via. A culpa é de quem? Do jogador? Da sensibilidade alheia? Do patrulhamento moral? Talvez a insistência dessa época de redes sociais de se achar uma culpa, um motivo, uma justificativa para quaisquer atos intrínsecos de jogo, como uma comemoração, nos aleije de refletir sobre situações maiores.

O que fazer, por exemplo, quando um ídolo te decepciona? Quando ele comete um crime e é condenado, em todas as instâncias, por isso? Após cumprir sua pena, o status social de idolatria deve ser restabelecido — se é que um dia foi perdido?

Héctor Veira personifica a vivenza do jogador argentino. Carismático, lindo, viril e mulherengo, o atacante brilhou no San Lorenzo dos anos 60, com gols, dribles, jogadas de efeito e inteligência de um típico pibe. Ainda que, olhando de modo estatístico, tenha conquistado apenas um troféu pela equipe — o nacional de 1968, formando los matadores com Alberto Rendo e Rodolfo Fischer — , acabou sendo eleito, pelos próprios torcedores, o maior ídolo da história do clube de Boedo.

Pela semelhança de estilo de jogo com o meia-atacante Gianni Rivera, recebeu o apelido de Bambino, garoto em italiano, já que o vencedor do Ballon d’Or em 1969 carregava a alcunha de “Bambino d’oro”. O boêmio jogador conquistou ainda a idolatria do arquirrival Hurácan, clube de que era torcedor, antes de pendurar as chuteiras em 1978, inclusive com uma passagem curtíssima e apagada pelo Corinthians, dois anos antes.

Veira decidiu ser treinador e o debute, claro, haveria de ser no San Lorenzo. Porém, El Ciclón foi o primeiro dos cinco ditos grandes da Argentina a ser rebaixado, no início dos anos 80 — o estopim para a criação do promedio, média de pontos das últimas três edições que determina o rebaixamento. Em 1983, então, o ano seguinte à conquista da segunda divisão, a equipe treinada pelo Bambino quase foi campeã nacional. Este título com os corvos só viria a ser conquistado em 1995, em outra das várias passagens de Veira pelo clube.

Neste ínterim, sagrou-se campeão nacional em 1986, no comando do River Plate. Embora Enzo Francescoli já tivesse sido transferido, ainda restava talento o suficiente na equipe millonaria para que os torcedores sonhassem com a conquista inédita da Libertadores. E assim foi feito, com o placar agregado de 3 a 1 contra o América de Cali, vice por dois anos consecutivos do torneio continental. A vitória contra o Steaua Bucareste, no Intercontinental, fechou com chave de ouro o ano perfeito do Bambino.

A vida de Veira, no entanto, mudaria bruscamente no ano seguinte. Um fã de 13 anos, Sebástian Candelmo, encontrou o treinador na rua e pediu um autógrafo. Como estava bem próximo de sua residência e, alegando que não tinha uma caneta que funcionasse, ele convidou o jovem para adentrar seu apartamento, onde teria ocorrido um estupro.

Inicialmente condenado por tentativa de estupro e corrupção de menor, Bambino recebeu a pena de quatro anos, em 1988. No julgamento da apelação, três anos depois, o Tribunal reclassificou a conduta de Veira para estupro, aumentado sua reclusão para seis anos. No entanto, nem três meses depois da publicação desta decisão, a Suprema Corte Nacional novamente modificou a tipificação do ato. Pela tentativa de estupro de Sebástian, os ministros reduziram a condenação pela metade e, assim, tendo o ex-jogador já cumprido mais de um terço dela na prisão, pôde voltar à atividade de treinador no ano de 1992, passando por Boca Juniors, Lanús e seleção boliviana, dentre outros, antes de encerrar a carreira em 2004.

Bambito e família continuam a defender a sua total inocência, alegando que Sebástian, com tendências homossexuais, teria armado um esquema para extorsão financeira. “A prisão foi uma injustiça total”, disse Veira em entrevista à revista El Gráfico. “O que me ajudou a sair bem mentalmente dessa situação foi a minha consciência, minha consciência tranquila”, completou.

Sebástian afirmou ser gay, mas apenas por conta do abuso de Veira. Tentou se suicidar duas vezes antes mesmo de completar a maioridade. Hoje em dia, tendo vencido batalhas judiciais na esfera penal e civil contra Bambito, tornou-se transexual, adotando o nome de Práxedes. Trabalha como enfermeira, após deixar as ruas.

No fim, o menino de ouro conseguiu ser idolatrado tanto por San Lorenzo e Hurácan quanto por Boca e River, fazendo-se um amor mútuo a quem naturalmente se detesta. Neste caso, a condenação deixou poucas manchas em sua imagem brilhante. Justiça?

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