Domando a Fúria

Jessica Miranda
Revista Relvado
Published in
3 min readJan 3, 2018

Não é difícil encontrar quem considere o futebol o mais viril dos esportes populares, aquele que deve ser praticado por machos, com culhões. Basta ir a um bar ou esgueirar uma conversa na copa do trabalho entre um café e outro. O infame exemplo, literal, do treinador Louis van Gaal abaixando as calças no vestiário para mostrar quem é que mandava no Bayern de Munique demonstra a dificuldade de se dissociar esta ideia até mesmo no alto nível profissional.

Nesse sentido, nenhuma seleção europeia encarnava melhor a virilidade do que a espanhola. Mesmo que tivesse apenas um título europeu, conquistado nos anos 60, a Espanha era vista como uma boa seleção — ainda que, a despeito de ter jogadores talentos, e com cojones, amarelasse em momentos decisivos. Este panorama mudou a partir de meados de 2000, quando a seguinte frase de César Luis Menotti foi colocada em prática: “No dia em que a Espanha decidir ser toureiro em vez de touro em campo, ela jogará um futebol melhor”.

A citação de Menotti é fruto do período em que treinou o Barcelona, nos anos 80. Lá, encontrou um grande desafeto na figura de Javier Clemente, o equivalente hispânico de seu histórico antagonista, Carlos Bilardo. Ex-jogador e comandante do Athletic Bilbao, o basco conquistou os últimos dois campeonatos nacionais do clube, em 82/83 e 83/84. O estilo de jogo adotado por ele era direto, físico e, não raro, violento; tratava-se da personificação de um touro louco e obstinado a esmagar o toureiro.

Para Menotti, contudo, a noção de futebol melhor estaria correlacionada ao lado romântico do jogo, um estilo mais poético e belo de se tratar a bola, resgatando e aperfeiçoando conceitos de la nuestra — jeito típico argentino de jogar, desenvolvido a partir dos anos 20 e excretado com a humilhante eliminação na Copa do Mundo de 1958.

Mais do que um espanhol, Clemente era um basco que encarnava o espírito da la fúria. Assim como la nuestra, este modo de jogar surgiu no início do século XX, mais precisamente nos Jogos Olímpicos de 1920, quando a Seleção da Espanha, formada em sua maioria por jogadores do Athletic, arrancou uma virada em cima da Suécia à base de força e virilidade. Ainda na ocasião, após vencer a Holanda, a Espanha garantiria a prata. Porém, mais importante do que isso, segundo o jornalista Jonathan Wilson, foi a conquista do reconhecimento da imprensa, nacional e internacional, da Fúria Espanhola, cujo espírito não tardou a ser adotado e difundido na sociedade pelo General Franco, um pouco mais tarde.

Desde então, Barcelona e Athletic Bilbao se tornaram mais do que times de futebol. Como expoentes históricos de movimentos separatistas espanhóis, a rivalidade da década de 80 foi atípica, acentuada pela intensa atuação do ETA, grupo que abandonou a luta armada em 2011. Ao contrário da basca, atualmente a questão catalã domina o cenário político e social da Espanha, com protestos do povo, violência policial e tentativas de golpes nos poderes estatais, com novos capítulos no horizonte.

Pode ser — mas provavelmente não é — uma coincidência que a fase vencedora da seleção espanhola, elevada a um patamar outrora inimaginável, tenha vindo a partir da nomeação de Luis Aragonés como técnico, em 2004. À época, o lendário ex-jogador, morto dez anos depois, declarou sua intenção: queria mudar a forma como a equipe nacional era conhecida, para que se criasse uma identidade distinta.

Paulatinamente, Aragonés foi domando a Fúria e iniciando a transformação, concretizada com Vicente Del Bosque, sob influência indireta do Barcelona de Pep Guardiola, da seleção espanhola em La Roja, a vencedora.

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