Gullit: de Amsterdã ao Olimpo

Felipe Portes
Revista Relvado
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3 min readMar 1, 2018

Ruud Gullit é um dos talentos mais raros que o futebol holandês já produziu. O prodígio nascido em Amsterdã parecia destinado a fazer sucesso de qualquer forma. Inicialmente escalado como líbero, o garoto foi subindo no campo e na vida, com uma aptidão inquestionável para o esporte.

Filho de George Gullit, imigrante surinamês, e de Ria Dil, Ruud cresceu em Amsterdã e teve ligação direta com um outro craque holandês contemporâneo: Frank Rijkaard. O pai de Rijkaard deixou o Suriname para se mudar para a Holanda juntamente com o pai de Gullit.

A trajetória de Gullit como profissional começou no pequeno Haarlem. Tinha 16 anos, e se destacava como um defensor de ótima qualidade de passe. A capacidade para sair jogando e avançar no campo impressionou o técnico Barry Hughes.

Em pouco tempo, Ruud se mostrou uma potência como armador e finalizador. O desempenho assustador do garoto impulsionou a modesta equipe até o quarto lugar da Eredivisie, em 1981–82. Veio então um convite do Feyenoord. A ambição de conquistar títulos só crescia.

Dois anos depois, em uma saga fenomenal, o Feyenoord venceu a dobradinha na Holanda — campeonato e copa — com o talento de Johan Cruyff, um homem em missão de vingança no seu último ato como jogador.

O Feyenoord ainda parecia pouco para Gullit, que se mudou para o PSV em 1985, se firmando definitivamente como o grande jogador holandês de sua geração. O Ajax podia ter Marco van Basten e Rijkaard, mas só o clube de Eindhoven contava com a força dominante do rastafari. Na nova casa, Ruud foi bicampeão holandês.

Em 1987, após meses de negociação com o Milan, Gullit se tornou a cereja do bolo de Silvio Berlusconi. O desejo de deixar o universo holandês mexeu com a cabeça de Ruud, como faria com a de qualquer outro menino talentoso e observado por grandes clubes do exterior. Por acreditar que o PSV jamais seria uma potência continental, o craque conseguiu justificar sua vontade de mudar de ares. Enganou-se, entretanto.

Deixando para trás o gigante holandês em nome de planos pessoais, Gullit virou persona non-grata para dois terços dos torcedores de seu país. O pior foi que o PSV desafiou a lógica, para se tornar campeão europeu em uma decisão tensa contra o Benfica. Essa foi a primeira orelhuda holandesa após os anos de glória do Ajax, no início dos anos 70, e a penúltima do país.

Mas para a estrela, a mudança para a Itália se pagou rapidamente: foi tricampeão da Serie A, bicampeão europeu, melhor do mundo e capitão da Holanda vencedora continental em 1988. Gullit bancou o próprio discurso. Alguém pode contestar seu sucesso? Certamente não.

Por outro lado, não importa o quão bem sucedido fosse, o camisa 10 não era exatamente a pessoa mais querida em seu país. Para muitos, era um mercenário sem identificação com os clubes locais, arrogante e presunçoso. Antes de encerrar a carreira, passou ainda por Sampdoria, voltou ao Milan, e fechou os trabalhos no Chelsea, onde deu início a uma errática trajetória como treinador.

A tensão, as críticas e ataques pessoais sempre fizeram parte da vida de Gullit, um negro talentosíssimo em um país majoritariamente branco. Ao receber o prêmio de melhor do mundo em 1987, o holandês havia pedido à France Football para discursar em defesa de Nelson Mandela, à época, preso político na África do Sul.

Mesmo com a recusa da publicação, o craque daquele ano dedicou o prêmio a Mandela, seu herói particular na luta contra o apartheid. E anos depois, em 1994, Gullit encontrou Madiba pessoalmente e lhe presenteou com a sua Bola de Ouro de sete anos antes. A relação entre Ruud e Nelson, mesmo antes da soltura do sul-africano, fomentou o debate racial.

Gullit, por todos esses motivos, inclusive os extra-campo, é o atleta mais vencedor da história do futebol holandês, ainda que seus detratores se recusem a aceitar isso como verdade.

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Felipe Portes
Revista Relvado

Desenhista. Estudante de Letras-PT. Adepto da autoironia. Também estou em instagram.com/draw.portes