O Chile x Itália que extrapolou o campo

Murillo Moret
Revista Relvado
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4 min readDec 21, 2017

A Copa do Mundo de 1962 não foi transmitida ao vivo para a Inglaterra. Naquela época, as fitas com os jogos realizados no Chile eram enviadas de avião à Terra da Rainha. Quando, enfim, podiam assistir as partidas, os telespectadores já sabiam os resultados e, por isso, o apresentador David Coleman, da BBC, tinha que chamar a atenção do público de algum jeito.

No caso da partida entre os anfitriões e a Itália, o fez com palavras: “o jogo que você irá ver é a mais estúpida, terrível, nojenta e vergonhosa exibição de futebol, possivelmente da história do esporte”. A síntese, exacerbadamente romântica, foi precisa.

Entender a partida que teve a primeira falta marcada aos 12 segundos, a primeira expulsão aos 12 minutos do primeiro tempo e foi chamada de “Batalha de Santiago” exige um retorno de seis anos. Espanha e Alemanha foram descartadas pela Fifa como sedes após edições consecutivas na Europa, assim a Copa voltaria à América do Sul. A Argentina queria um Mundial para si desde 1938 e, de certa forma, era favorita, mas o Chile venceu a disputa.

O presidente da Confederação Sul-Americana de Futebol era Carlos Dittborn, fluminense de nascença e filho de um diplomata chileno. Crescera no território andino e construíra carreira como dirigente antes de conseguir cargo na entidade. Um ano após a decisão da Fifa, o Chile já tinha ampliado o estádio Nacional, em Santiago, para 70 mil pessoas, reformado as praças em Arica (estádio que levava o nome do presidente) e Rancagua (Braden), e construído um novo palco em Viña del Mar (Sausalito).

Então aconteceu maio de 1960. O país já tinha sido castigado por um terremoto no dia 21. Na manhã seguinte, mais de 1.600 pessoas morreram depois de um abalo sísmico de 9,5 graus de magnitude com epicentro a 570 quilômetros da capital. No mesmo mês, o vulcão Puyehue entrou em erupção. No total, estimaram, à época, que 3 mil pessoas ficaram feridas e dois milhões de habitantes (ou 25% da população) estavam desalojados — além do prejuízo de 550 milhões de dólares ao governo chileno. A tragédia colocou a realização da competição em xeque.

A Fifa acabou dando um voto de confiança para a manutenção do campeonato e a frase “Porque não temos nada, nós daremos tudo” de Dittborn cativou alguns países europeus.

O zagueiro italiano Cesare Maldini, em entrevista posterior, declarou que o clima da Copa estava tranquilo — até as atitudes tomadas pelos correspondentes do Belpaese na América, reza a lenda. Corrado Pizzinelli escreveu para o La Nazione que o Chile era um país subdesenvolvido, e que a miséria, analfabetismo e prostituição eram comuns. Antonio Girelli, do Corriere della Sera, foi além, declarando que os telefones em Santiago “não funcionavam, os táxis eram raros como esposas fiéis, um telegrama para a Europa custava um braço e uma perna, e uma carta demorava cinco dias para chegar”.

As palavras ganharam as ruas das sedes, sobretudo porque os artigos foram traduzidos — com falhas — em publicações andinas. As embaixadas chegaram até a trocar mensagens pouco simpáticas devido às atitudes da imprensa. Uma vez que as seleções estavam na mesma chave, os correspondentes voltaram à Itália antes da partida do Grupo II.

Em 02 de junho, o jogo. O ítalo-argentino Humberto Maschio bateu no ponta Leonel Sánchez enquanto o árbitro Kenneth Aston não estava olhando. Como represália, dois minutos depois, Honorino Landa cometeu falta forte em Giorgio Ferrini. Este pontapeou o adversário e o juiz inglês expulsou o meio-campista italiano — retirado de campo sob escolta policial.

Ocorreram outros lances esportivamente imorais, como Sanchez quebrando o nariz de Maschio e dando um soco em Mario David. O zagueiro, filho de um pugilista, respondeu com um pontapé que atingiu o rosto do atacante. Foi expulso. Paride Tumburus e Jorge Toro ainda brigaram no meio de campo antes de serem separados por Aston, que viu as seleções serem escoltadas, também, até os vestiários.

Os italianos, que adoram uma teoria da conspiração, acusaram Aston de “parcial” a “corrupto”. Outra lenda conta que o La Nazione foi enviado ao Chile por um chileno que morava em Florença e Ghirelli foi ameaçado violentamente em Roma. Contudo, não há evidências da influência dos artigos para a partida. A estreia da Itália no Mundial fora ruim, e três jogadores essenciais ficaram na reserva ante o Chile – Maldini, Giovanni Trapattoni e Omar Sivori.

Em campo, o Chile conquistou uma vitória por 2 a 0, com gols de Ramírez e Toro. Fora, o resultado foi o banimento de italianos de bares e outros estabelecimentos comerciais nas cidades-sede. Já em Roma, o exército local teve que proteger a embaixada do país sul-americano.

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