O mito do futebol burocrático alemão

Felipe Portes
Revista Relvado
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3 min readDec 19, 2017

Nasceu assim, de repente, um dos mitos do futebol mais difundidos entre o povo brasileiro. Já éramos tricampeões do mundo, saudosos da geração maravilhosa de 1970, quando a Alemanha frustrou a todos vencendo a hipnotizante Holanda naquela final de 1974. “Mas esses alemães não encantam”, disse alguém decepcionado com o desfecho do Mundial, após o triunfo de Berti Vogts sobre Johan Cruyff.

Passaram-se anos. Os alemães perderam duas finais mundiais consecutivas, em 1982 e 86, mas se recuperaram com o título de 90. Verdade seja dita: nenhum dos dois finalistas jogava o melhor futebol já visto naquela Copa da Itália. O pragmatismo e a dependência de talentos individuais fez da decisão em Roma uma das mais entediantes na história do torneio. Duvida? Assista no Youtube. Tente, ao menos.

Futebolisticamente falando, a Alemanha sempre foi o retrato perfeito da eficiência, do pragmatismo, do 1 a 0, da regularidade. É uma marca da sua escola, desde os tempos do amadorismo, delineada pela vitória inacreditável sobre a Hungria no Mundial de 1954. Você pode jogar a bola mais bonita de todas, mas jamais ganhará dos alemães na véspera.

Brasileiros, mal-acostumados com suas equipes vibrantes, títulos frequentes e craques exaltados mundo afora, caíram na cilada de comprar a tese propagada por Galvão Bueno, que por muitos anos afirmou que a Alemanha “joga algo parecido com o futebol”. Esse estereótipo foi sendo reforçado a cada derrota alemã, sobretudo depois do encontro na finalíssima de 2002. É bem verdade que havia algo de errado no caminho alemão, mas eles, os germânicos, sabiam disso e não cruzaram os braços. Foram doze anos entre o 2 a 0 em Yokohama e o 7 a 1 em Belo Horizonte: uma lição contra a arrogância e a soberba.

Cada país possui uma identidade distinta aplicada ao futebol e isso colabora para a construção de narrativas grosseiras. O brasileiro dribla, o italiano defende, o argentino catimba, o uruguaio bate, o mexicano treme e o alemão… bem, o alemão ganha, mas quase sempre com frieza.

Em 2014, os metódicos e robóticos alemães chegaram ao Brasil e foram bem recebidos. Sorriram, curtiram a festa, entraram no clima, abraçaram o povo. E jogaram para o gasto. Sofreram contra a Argélia e derrotaram a freguesa França por margem mínima. Amassaram o Brasil sem fazer graça, sem dar dribles desnecessários, pedaladas, chapéus, passes de letra, tudo aquilo que vínhamos aplaudindo anteriormente. Nunca uma escola se sobrepôs a outra com tanta brutalidade quanto naquele dia. Os visitantes estavam devidamente vingados por 2002 — e pela falácia do semi-futebol que foi disseminada a seu respeito.

Jogar com seriedade, objetividade e domínio do rival passou a ser uma obsessão para os brasileiros. Logo eles, que até 2006 amavam o show do Quadrado Mágico e preferiam empatar driblando do que ganhar dando chutão. A História sempre será contada pelos vencedores. Por muito tempo, fomos nós. Hoje, a soberania é dos alemães, daqueles que sempre acabam com a festa dos favoritos. E vai ser assim toda vez que alguém ousar dizer que eles jogam algo apenas parecido com o nosso amado futebol.

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Felipe Portes
Revista Relvado

Desenhista. Estudante de Letras-PT. Adepto da autoironia. Também estou em instagram.com/draw.portes