Os inimigos íntimos da França em 2010

Wladimir Dias
Revista Relvado
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3 min readFeb 2, 2018

A história da seleção francesa de futebol é um mix de expectativas, sucessos, problemas, vexames, craques e personalidades. Desde os tempos de Just Fontaine e Raymond Kopa, nunca se pôde deixar de considerar as possibilidades dos Bleus em campeonatos internacionais. Porém, é impossível saber o que esperar dos franceses.

A geração de Michel Platini foi vitoriosa, a de Éric Cantona e Jean-Pierre Papin um fracasso e a de Zinédine Zidane viveu os dois lados da moeda. Na Copa do Mundo de 2010, havia remanescentes da vice-campeã da edição anterior, caras novas e jogadores recuperados, mas foi impossível vencer com o inimigo morando ao lado. Ou dentro da própria casa, digamos assim.

A polêmica já fazia parte da atmosfera da equipe desde as eliminatórias. Os problemas internos vinham ficando cada vez mais evidentes e culminaram em uma classificação controversa para o Mundial, após campanha ruim no Grupo 7— a França precisou disputar um play-off contra a Irlanda e, após vencer o jogo de ida por 1 a 0, perdia pelo mesmo placar na partida de volta, que foi para a prorrogação e somente se decidiu num lance em que a bola bateu na mão de Thierry Henry, permitindo ao astro a chance de fazer um cruzamento que terminou em gol de William Gallas.

A Euro 2008 já havia sido um desastre, com a lanterna em um grupo que tinha Holanda, Itália e Romênia. E a pressão era intensa sob a cabeça do treinador Raymond Domenech, que vinha falhando miseravelmente na tarefa de promover a transição de gerações. Um dos nomes que não se furtou à tarefa de colocar a boca no trombone foi Florent Malouda. Segundo ele, não havia diálogo entre atletas e treinador e faltava liderança dos jogadores, já que peças como Zinédine Zidane, Patrick Vieira e Claude Makélélé estavam fora.

A liberdade para questionamentos a respeito dos rumos da seleção era pequena e o distanciamento entre os envolvidos, grande. O que aconteceu foi só consequência. Quando, já no Mundial de 2010, no intervalo da derrota francesa para o México, Nicolas Anelka perdeu a compostura e mandou o treinador ir se f*, já tinha ido tudo por água abaixo.

O alerta feito por Patrice Evra de que havia um traidor, “vazando” informações, não serviu de nada. O problema era, sim, interno, mas muito maior do que a figura de apenas uma pessoa. Seu ápice foi a recusa de todo o elenco ao treinamento, às vésperas do último jogo do grupo, em protesto contra o tratamento dispensado a Anelka, que acabou cortado — para os jogadores, a decisão foi tomada com base apenas no que havia sido veiculado pela imprensa. A Federação Francesa de Futebol negou o ocorrido, mas o escândalo conduziu à demissão de Jean-Louis Valentin, chefe da delegação.

Mais tarde, o odiado Domenech ainda criticou Anelka, Samir Nasri e Franck Ribéry. O primeiro, inclusive, acabou banido pela FFF por 18 jogos, o que determinou sua aposentadoria da seleção. Evra, Ribéry e Jérémy Toulalan também receberam punições. Nenhuma providência foi tomada a respeito do treinador, que, evidentemente, deixou o cargo após o fiasco.

“O problema real era o treinador. Domenech não era aberto. Vários jogadores não conseguiam conversar com ele e, certamente, esse era o meu caso […] Domenech nos atacava a todo tempo: ‘ponham seus egos de lado’. Mas acredito que ele tenha se esquecido de fazer o mesmo”, disse Gallas ao Telegraph.

Quando o fracasso de 2010 foi consumado, em outra eliminação na fase de grupos (dessa vez diante de África do Sul, Uruguai e México), os dedos foram apontados à face dos jogadores. Voltaram a ser levantadas questões complexas, como a lealdade dos atletas naturalizados ou de origens ultramarinas à causa francesa; políticas de imigração, racismo e orgulho nacional voltaram a ser tema de discussões.

Diante disso, Malouda voltou a falar. E, diante de todas as críticas e afirmações de que o ambiente era pesadíssimo no seio da seleção francesa, uma indagação simples sintetizou toda a crise: “Pergunte a ele [Domenech] se está satisfeito com o seu trabalho”.

*Aos interessados em maiores detalhes, recomenda-se o documentário Les Bleus — Une autre histoire de France, 1996–2016, disponível no Netflix.

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Wladimir Dias
Revista Relvado

Advogado, mestre em Ciências da Comunicação e Jornalismo Esportivo, pós-graduando em Escrita Criativa. Escrevo n’O Futebólogo e penso no Fluxo de Ideias.