#01 A vigília da terra, o sonho da gente

De Matheus, para Leila

Matheus Salvino
remetente:afeto
10 min readJan 13, 2020

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Colagem manual feita pela Leila usando fotografias de um parque em tom sépia sobre um fundo verde.
Colagem: Leila Satin

— Esta terra não é mais a mesma, menina — disse a velha, sendo observada por olhos atentos e assustados. — Neste reino de tanta tirania, o mundo se move para trás. A terra sonha enquanto estamos insones, e nós sonhamos quando ela faz vigília. Não parece para nós, quando em tempo de guerra, mas até a terra é capaz de amar. Esteja atenta, quando pensar em amar, pise neste chão descalça. Sinta o que a terra pode lhe dizer. Ela, nos dias em que sonha, constrói o próprio mundo e faz dele morada habitada, menos fria que o vazio em que seus sonhos podem lhe meter — a velha continuou, com a voz mais firme, enquanto a moça insinuava uma interrupção. — Não seja tola! Amar é possível, mas sonho não é precipício onde se pula. Sonho é coisa pouca, que vai se fazendo como casa em construção. Pergunte à terra! Se ela sonhar, nem mais este lugar de tirania resistirá, e nem mesmo o mais cruel malfeitor lhe deterá. Mas não se jogue no vazio.

Com os olhos jorrando água salgada, a menina parecia ensimesmada.

— Levante-se, aqui não podemos mais ficar. Os patrulheiros podem nos encontrar — ordenou a velha.

Havia apenas um único caminho para seguir e isso fazia da velha um poço de preocupação. Como aventurar-se ao sonho quando as opções são escassas? Quando o corpo não poderá jogar-se naquilo onde se possa pisar? Saíram às pressas, na medida em que a velha podia sustentar-se em sua bengala. A mais nova fechou a pesada porta de carvalho, produzindo um som maciço. Sabia, no segundo em que cometera aquele ato, do possível olhar de repressão da anciã, e assim ocorreu. É verdade que a menina um pouco a temia, tinha ouvido que a velha era bruxa, e de bruxaria nada entendia. Na verdade, tudo aquilo, desde que saíram da aldeia, parecia ser estranhamente previsível e familiar, ainda que nunca se atrevera a caminhar para tão longe. No máximo, metia-se no bosque. “Caminho é coisa muito perigosa, não tem idade ainda para sonhar aonde irá. Contente-se com a monotonia segura do lavar e passar das roupas”, os líderes da aldeia lhe advertiam. O teor de imprevisibilidade da jornada ficava a cargo da velha, sempre firme em seus sermões, havia demasiada sabedoria naquela voz rouca e acometida pelo tempo. Caminharam. A velha mais a frente, mesmo que com as dificuldades da vida e da idade.

A estrada era uma longa linha reta de terra quase seca, ainda que nela insistiam em brotar algumas ramas. Não havia barulho, parecia ser aquele lugar a morada do silêncio. A escassez de sons não assustava a velha, pelo contrário, sabia, pelo valor de suas rugas, que o silêncio às vezes era boa companhia.

— E a guerra? — indagou a velha.

— Ela acontece todos os dias, sabe disso. Porque pergunta? — respondeu a moça, encucada.

— Pergunto porque tenho vontade, em primeiro lugar, em segundo porque me interessa mais saber o que pensa sobre ela.

— Eu não sei. Me desculpe. Quando há guerra, tudo parece uma árvore que, mesmo regada pela chuva todos os dias, não dá frutos. E eu nunca havia visto uma árvore que depois de crescer não desse frutos — respondeu a mais nova.

— Está certo. A tirania assusta, mas o caminho segue.

Fugindo da crueldade, continuaram as duas a trilhar o caminho. Pairavam sobre seus corpos sensações diferentes, mas algo as unia. Há sempre algo que une aquelas que são muito diversas: nesse caso, a necessidade de seguir. Os brotos teimosos no chão rachado foram desaparecendo aos poucos. Passaram-se horas de silêncio e esforço em seguir. As plantas, que dividiam a estrada dos outros horizontes igualmente desconhecidos, tornaram-se secas e sem vida. Todas mortas. O sol ardia como o inferno e, para a surpresa daquelas companheiras de viagem, dois caminhos surgiram a frente.

— Vá, menina! Escolhe aquele caminho que te agrada.

— Tenho medo — disse a mais nova.

— Alertei-a antes para que não fosse tola. Viver é isso: escolher caminho!

Foram pela esquerda. A velha sempre à frente e a moça esforçando-se para não a ultrapassar e, assim, não parecer desrespeitosa. As árvores agora eram mais abundantes, entranhavam-se, ora feito amantes em lençol de seda, ora feito brutamontes que guerreiam sobre o chão enlameado. A velha, com a ajuda da bengala, conseguiu ultrapassar um tronco caído sem muita dificuldade. Já a moça passou o primeiro pé com firmeza e, quando se atreveu a erguer o segundo, sentiu uma gastura nunca antes vista. Era similar ao delírio que acometera alguns enfermos da aldeia.

— Velha! Socorro! Sinto o chão se mexer! — exclamou.

— Minha querida, parece ser essa a minha sina alertá-la sobre a sua própria ignorância — respondeu a velha, virando-se e estendendo a bengala para ajudar a mais nova.

— Explique-me o que é isso, velha. Por favor! — Sentou-se sobre o chão, respirando fundo ao esperar que a sensação de desconforto fosse embora.

— Ora! Não sabe que a terra se move? Pensa que a vida é benefício de quem respira? Escute bem, menina, não há nada mais sábio neste mundo que o chão onde pisa, tanto aquele de onde veio, tanto aquele para onde vai. — Foi interrompida por um barulho similar ao de um bicho, mas bicho não era.

Naquele lugar, bicho e gente poderiam ser quase a mesma coisa.

Escondidas atrás do tronco, tremiam de medo. O medo não era prejuízo somente dos mais novos. Em tempos de guerra, o medo era mal constante. Os sons da respiração de ambas estavam intercalados e quase silenciosos. Qualquer ruído atrairia os malfeitores. Diferentemente de todo o percurso da caminhada, velha e moça estavam alinhadas. Uma ao lado da outra. A anciã vagarosamente foi passeando com a mão sobre o chão, a sujando de barro. Pouco a pouco, os dedos cortados de rugas foram encontrando as mãos polidas de mocidade.

— Não tenha medo, garota — sussurrou a velha. Ainda que ela mesma intuísse a possibilidade de morte.

Os passos dos perseguidores deslizavam sobre a lama, podia-se ouvir o som. As folhas também colaboravam para que a dupla pressentisse a chegada próxima dos malfeitores, nada poderia ser feito caso descobertas. Ouviram um berro, os corações se gelaram.

— Não há nada aqui! — exclamou uma voz masculina.

Alívio. Após alguns momentos de espera, a moça lentamente pôs-se a mexer. Colocou a mão sobre o tronco e, com certo esforço, levantou-se e agarrou a mão da velha a fim de ajudá-la a se levantar. Moveu o pé direito para trás e, quando o firmou no chão, viu que pisou em falso. Lentamente foi caindo, como se o tempo cooperasse para mantê-la no ar, e esborrachou sobre o chão, provocando um barulho alto e oco.

— Aaaaaaaaah! — berrou a garota.

A velha apenas virou seu corpo sobre a esteira, onde repousava, sem muita cerimônia.

— O que houve, menina. Porque está tão assustada? — indagou.

— Não viu que caí?

A reação da velha não poderia ser mais estranha: uma longa risada. A anciã levantou-se lentamente, caminhou passo a passo até a esteira da menina e deu-lhe três tapinhas sobre a face esquerda.

— Estava a sonhar, tola! — disse-lhe.

— Não é possível que isso tenha acontecido! Caminhamos tanto, eu estava tão cansada e meus pés já doíam. Caminhamos tanto e a estrada já chegaria ao fim, tenho certeza… — Pôs-se cabisbaixa e seu rosto tornou-se água e sal.

— Enquanto a terra passeia por aí em indecente insônia, seremos nós mesmas a sonhar — disse a velha, ligeiramente ríspida a tocar o rosto da garota.

— Velha, me ajude. Lança-me um feitiço. Sei de sua bruxaria, disseram-me sobre ela na aldeia. Entendo que não possa fazer-nos ultrapassar nossos próprios pés a caminhar, nem tampouco interromper a guerra, mas estou certa de que é capaz de não mais me deixar sonhar — falou a menina, entre um soluço e outro.

— Tudo bem. Não mais lhe tratarei como boba, terá o que deseja. Mas, vez ou outra, desejo não volta atrás. Esteja ciente. — A velha fechou os olhos por alguns segundos.

— É só isso? — indagou a moça.

— Talvez. — A resposta foi seguida de uma pausa. — Não mais dormirá, portanto sonho será mera irrealidade para você. Somente a terra sonhará, pois a luz do dia será para sempre sua companhia, menina.

A moça se levantou, lavou seu rosto em um balde cheio de água. Desejava apenas interromper o suor que insistia em banhar o seu corpo.

— Escute — falou a velha, fazendo uma pequena pausa. — Precisará firmar sua amizade com a terra para tudo se concretizar. Não lhe parece injusto que peça que ela durma eternamente para que você esteja permanentemente insone? — disse ao encarar a moça com olhos de desafio. — Peça-a como gentileza e dê algo em troca, como um presente. Levante-se, vá lá fora e deite-se sobre ela. Ela te responderá.

Assim fez a mais nova, prostrou-se sobre o chão e foi dar-se com sua, quem sabe, nova amiga. A velha, permanecendo onde estava, apenas movia-se a levar um copo cheio de chá à boca, dando pequenos goles. Sabia que para toda nova realidade, há um mundo de probabilidades, e que aquela conversa poderia durar por muito tempo. O tempo era, em época de guerra, inimigo da terra e das gentes. Duas horas se passaram e lá estava a menina de volta, com o rosto pálido e as roupas sujas de areia.

— Diga-me, menina. O que a terra lhe pediu? — perguntou a velha quase que com ternura. — Me desculpe, fiz tudo errado. Ela não pediu, ela condenou. Os patrulheiros chegarão e nos levarão como prisioneiras — lamentou a moça.

— Prepare-se, é chegada a nossa hora — respondeu a velha calmamente, como que se já soubesse o seu destino.

Os malfeitores haviam levado as duas para um acampamento cheio de outros iguais brutamontes. Passaram horas dentro de um veículo sem janelas puxado por cavalos. A tirania possuía ótimos representantes, todos de semblante frio, mãos pesadas e hálito fétido. Foram acorrentadas e deixadas sobre o chão em um porão de tijolos grossos e, dividindo o espaço com poças de sangue e água malcheirosa, estavam há minutos em silêncio.

— Mesmo que esteja ainda na mocidade, já pôde amar? — indagou a velha, surpreendendo a moça.

— Não sei. Entendo tanto de amor, quanto de sonho e de terra. E você? Amou? — A moça parecia realmente curiosa e via no diálogo uma forma de passar o tempo e lidar com a incerteza de seu próprio destino.

— Amei. Amei em demasia. Sei que o tempo me fez arrogante o suficiente para que você não perceba. Mas amei mais do que poderia — respondeu a mais velha.

— E como é amar? — indagou a moça, mais interessada do que nunca.

— Vê aquela porta ali? — A velha apontou para o portão do cativeiro. — Amor é diferente. Ainda que a porta estivesse aberta e a luz do sol pudesse banhar os nossos corpos, não poderíamos amar. Presas aqui, nem mesmo janelas nos fariam amar o mundo. Não existe amor onde há correntes.

O silêncio habitou a cela depois que a velha se atrevera à vulnerabilidade de sua própria fala.

— O que eles farão conosco? Já deve ter sabido de casos como esse em que nos metemos — disse a moça, preocupada.

— Às vezes, a ignorância é a melhor certeza. Preciso admitir que sinto inveja da tolice. Nos jogarão no rio e rio não volta atrás. Ele segue e nos levará com ele.

Experimentando, depois de algumas horas, a luz do sol, foram levadas pelos malfeitores para a beira do rio. As águas eram turvas, incontroláveis, e, o seu curso, irremediavelmente seguia. Não havia o que pudesse detê-lo. A moça pensou que era melhor ter permanecido em vigília e não ter se entregado ao sonho: parecia mais vantajoso seguir por caminhos desconhecidos, mas ainda seguir, do que ser entregue a um rumo totalmente incontrolável. Talvez, ainda em sonho, teria escolha. Mas naquela vigília, a do rio, certamente se chocaria contra pedregulhos muito perigosos. Os patrulheiros já haviam dito o seguinte: atirariam primeiro a velha, depois a mais nova. A anciã já vivera o suficiente, parecia justo que a moça respirasse por mais alguns momentos antes que se afogasse, ou morresse em choque com as surpresas da correnteza. A moça, estranhamente, vivia, pouco antes do seu fim, seus momentos de maior coragem: estava certa de que assistiria a morte vindoura de olhos abertos, a terra não merecia ser olhada. Amarradas, a velha foi conduzida lentamente para o precipício que separava o existir e o não mais existir. Com violência, foi atirada e caiu lentamente, pelo menos aos olhos da moça, que lembrava o que havia aprendido sobre o tempo e a guerra. O tempo acelerou-se e o corpo caiu brutalmente sobre a água. Ouviu-se um estalo seco e doloroso.

— Acorde! — gritou a velha.

— Como pode? O que é isso? — disse a mais nova, em desespero.

A moça levantou-se da sua esteira com um pulo, estava assustada, com as vestes encharcadas de suor. A velha riu e, curvando seu corpo sobre o da mais nova, deu-lhe três tapinhas na face esquerda.

— Ora! Se você não dorme, é a terra que sonhará. Lembre-se: a terra sonha enquanto estamos insones, e nós sonhamos quando ela faz vigília. Não há vigília tão dolorosa quando se sonha. A terra, quando amiga, deverá ocupar-se de andar como no ritmo dos seus passos. Ela nem sempre é inimiga. Assim o mundo é feito. Assim nós fazemos o mundo — disse a velha, ternamente.

— E o tempo? — indagou a menina, desacreditada.

— A terra, quando sonha, não deverá ser inimiga nem mesmo do tempo, e não há guerra que a deixará completamente imóvel. Há um fluxo de tempo para as coisas — respondeu a velha, com sensibilidade. — Acalme-se — continuou — , era um sonho da terra. Avisei-te que ela dorme enquanto estamos insones. Hoje, especialmente, você dormiu até mais tarde. Já deveria ter acordado para que colocássemos os pés em nossa caminhada.

— Ainda que se sonhe, menina, é preciso seguir em frente.

Ouvindo Clube da Esquina 2.

Com afeto,

Matheus Salvino

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Matheus Salvino
remetente:afeto

Jornalista e Mestrando em Comunicação tentando escrever regularmente sobre literatura.