#02 Quem dorme no ponto

De Matheus, para Leila

Matheus Salvino
remetente:afeto
6 min readFeb 7, 2020

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Belo Horizonte, 05 de fevereiro de 2020

Querida Leila,

Desde a sua carta me questiono como é que se anda por uma corda-bamba na vertical. Se estamos com ela na vertical e, portanto, nós na horizontal a desafiar a lei da gravidade, ou se a seguramos firme com as mãos, gastando a musculatura dos braços. Eu acho que tem uma coisa que gente de verdade faz, e essa coisa é andar na corda-bamba. E foi uma boa lembrança. Uma lembrança que veio de você em tempo muito oportuno. Esse tempo um pouco difícil para mim. Há quem chame de inferno astral, eu chamo só de aniversário. Coisa chata. O fato é que pensei na cidade, no ir e vir da gente, e escrevi essa história. Havia pensado em outra, que foi deletada hoje mesmo, porque uma vertigem do desequilíbrio pediu para apagá-la. Lá vai.

Foto: Matheus Salvino

Talvez fosse prudente que o narrador, desconsiderando a sua própria existência, começasse essas histórias apresentando detalhadamente as personagens. O narrador, eu, não o farei. Especialmente porque reconheço o meu lugar em relação ao lugar desses que serão narrados. Tenho estado exponencialmente incapaz de apresentar histórias fingindo que elas não são minhas, imputando responsabilidade a personagens desconhecidas que não poderiam defender as próprias história e que, arbitrariamente, escrevem a história por meio das histórias que o outro contou. Eu sou o outro. Não faria diferença, mas as personagens terão nome — mesmo que só nos subtítulos — , ainda que o pronome pessoal seja o artifício mais fácil para lidar com a outridade.

Elizabeth

Dia chuvoso, ponto de ônibus, fila longa. Olhar para o relógio de pulso não acelera o tempo, mas é um hábito nessas ocasiões. Nada fora do habitual, na verdade. Um dia comum de trabalho: a pausa convencional para o almoço, o rotineiro retorno por aquela via urbana triste cheia de trabalhadores igualmente tristes e fingindo normalidade. A esperança diária é o momento do fim, não um fim propriamente dito, porque amanhã frequentará a mesma rua triste com trabalhadores tristes fingindo que não estão tristes, mas um fim por hoje. E está ela no ponto de ônibus. O rapaz que carrega uma caixa vendendo balas e doces não veio, talvez esse seja o ponto fora da curva do dia. Sem seu tradicional chiclete noturno vê despontar no horizonte cinza e mais ou menos azul o ônibus que a leva para casa todos os dias.

Bom dia. Boa noite, né? Nossa, cabeça tão ruim, me desculpe. Assustou-se quando viu um cobrador, ou assistente de bordo, como deveria estar na sua carteira de trabalho — enquanto ainda tinha uma — , ocupar a cadeira destinada a ele. Fazia tempo o motorista fingia normalidade ao dirigir, manobrar, receber, dar o troco e, ocasionalmente, pacificar, ou não, algum conflito. Sentou-se envergonhada no último assento vago, ao lado de uma senhora que dormia como um bebê. Na verdade, a senhora parecia uma pedra, mas por artifício narrativo, será bebê. Ergueu o celular e deslizou apressadamente o dedo indicador da mão direita de baixo para cima por algumas vezes, parando apenas para verificar as horas. Fora do ônibus, o tempo passa pelo relógio de pulso, dentro dele, quando o que há é um vai e vem de gentes aglomeradas e relativamente conformadas com as suas próprias rotinas, uma tela que finge um outro mundo cai melhor.

Waguinho

Com “V”? Não, com “W”. Estava farto de gente que insistia em fazer dele algo que não fosse ele mesmo. Na verdade, um alguém que fosse um algo e não um alguém. O “V”, nesse caso, era um claro exemplo de coisificação do que deveria ser ele mesmo. Ok, sempre achei que fosse com “V”. Ela sempre acha que é com “V”, todos os meses quando ele vai até o outro lado da cidade e se senta em frente a moça que recebe o aluguel. Uma história muito torta, ele achava. Sair do fim do mundo da cidade, onde quase ninguém sabia que era cidade, para ir até o centro gastar todo o pouco dinheiro que ganhava para garantir seu teto no fim do mundo da cidade, onde quase ninguém sabia que era cidade. Contou nota por nota, estava um pouco apático, é verdade, o fazia mais para não dar a imaginar que estava cansado o suficiente para não ter interesse pelo próprio dinheiro.

Saiu do prédio, quase hora do almoço. Ao passar por aquela rua triste repleta de pessoas tristes fingindo normalidade, não segurou a onda e seus olhos marejaram ao se lembrar que não poderia comprar o material que garantisse o seu sustento. Pelo menos não naquele dia, não sobrara um centavo. Lembrou-se das notas que contemplou apaticamente e entregou para aquela moça que mensalmente não se lembrava dele. Tinha um pouco de revolta nessa não lembrança, mas também um pouco de graça. Quando carregava a caixa cheia de balas e doces ali naquela região tão distante do fim do mundo da cidade, era sempre reconhecido por ela. Ou talvez os chicletes eram sempre reconhecidos por ela. Quando sentada atrás daquela mesa, ao receber um dinheiro que também não era dela, parecia ver nele outra pessoa, ou não ver ninguém. Apenas perguntava se era com “V”. A graça: os chicletes eram com “V”. Opa! Olha lá, aquele motorista. Nunca se lembrava o nome dele, mas era vizinho de frente lá no fim do mundo da cidade. Muito gente boa. Respondeu: opa!.

Haroldo

Esse mundo é grande demais. Nossa. Mas nada tão grande que não pudesse ser reduzido a alguns quilômetros de rotina, de ir e vir. De carregar gente. Há 12 anos trabalhava na mesma empresa, fazia o mesmo itinerário. Muitas daquelas pessoas que viajavam com ele diariamente estavam no mesmo veículo há 12 anos. Não era bem o que sonhava quando menino. Queria ser escritor. Mas não era mal-humorado por isso não, até se divertia inventando mundos talvez mais reais do que aqueles que transportava. Aquele rapaz, por exemplo, o vendedor de balas que viu mais cedo, do nome ele não se lembrava, mas sabia que era seu vizinho e bastante educado. Gostava de imaginar se em caso de não vender balas, o que faria. Parecia um atleta. Desses que dão saltos na TV. Qualquer tipo de atleta que dá saltos. Chegou até a criar novas modalidades esportivas só pelo prazer de fazer de gente de verdade mais de verdade em sua ficção. Salto no barranco seria a modalidade perfeita para aquele atleta juvenil. Estranhou quando não o encontrou mais tarde a vender suas balinhas no ponto de ônibus. Hoje daria até para deixá-lo fazer comércio dentro do carro, não havia fiscalização. Pena.

Mirava com atenção o espelho que entregava uma senhora a dormir profundamente sentada ao lado de uma moça muito bonita que deslizava o dedo indicador da mão direita de baixo para cima sobre o celular. A senhora tinha traços rígidos, parecia gente brava. Com o retorno do cobrador nos horários de pico, tinha um pouco mais de tempo para confabular, armar na cabeça coisas talvez inimagináveis para pessoas que não fossem motoristas de ônibus que quiseram ser escritores na infância. Entre uma manobra e outra naquele microcosmo urbano, dedicando correta atenção para o asfalto úmido pela chuva, decidiu recriar aquela que dormia. Teria nome, seria gente, não queria que fosse brava, porque como um bom escritor que não foi, sabia que as coisas, as coisas não, as pessoas, podem não ser toda a dureza que parecem. Desenhou mentalmente várias possibilidades de história, várias histórias e desfechos possíveis. Escolheu aquela que parecia mais justa. Se escrevesse um dia sobre ela, a chamaria de “bebê”. Parecia pedra, mas seria “bebê”. Vê lá, a moça do celular, dormiu e perdeu o ponto. Ô moça, já estamos quase no ponto final!

Ao som de Prepárame La Cena, Calle 13.

Com afeto,

Matheus Salvino

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Matheus Salvino
remetente:afeto

Jornalista e Mestrando em Comunicação tentando escrever regularmente sobre literatura.