Corda-bamba vertical

Lorena, 22 de dezembro de 2019

remetente:afeto
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3 min readJan 24, 2020

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Querido Matheus,

Esse foi o primeiro caso em que o remetente foi até a caixa dos correios para buscar a carta de volta. Não precisa se envergonhar de nada, é meu nome que está do outro lado do envelope, nem se preocupe quando nossos escritos forem publicados, por enquanto são só você e eu. É por isso que te escrevo primeiro no papel, assim meu pensamento não escapa de ti.

Te agradeço por me lembrar de seguir caminhando, mesmo que o medo e a guerra ao nosso redor nos façam acordar constantemente de nossos sonhos. Você me pediu para estar atenta e pisar no chão descalça, então vou te contar sobre meu caminho de volta à terra.

Do mormaço que faz parar o tempo de férias.

Com afeto,

Leila Satin

Ps.: Tire seus sapatos para me ler

Foto: Leila Satin

Meus pés não tocavam o chão, nem os da equilibrista que agora subia as escadas sob os holofotes, todos os outros presentes na plateia estavam confortavelmente sentados, mãos apoiadas no joelhos que faziam um ângulo de noventa graus e os pés bem firmes no chão. Você pode imaginar como é ser a única criança da cidade em dia de circo? Eu me inclinava na ponta da cadeira de plástico vermelha como se dependesse de mim o equilíbrio daquela moça.

Ela era diferente de toda pessoa adulta que conhecia, seus pés terminavam em uma ponta quadrada e sua cabeça começava com uma pluma redonda. No meio, ligando as duas partes, dava pra ver os músculos fortes se moverem sob um fino cetim. E assim meu mundo inteiro se tornava aquela fita por onde a equilibrista caminhava com seus pés acima da minha cabeça.

Desde aquele dia eu passei a viver em uma corda-bamba vertical, num eterno cai-não-cai entre a cabeça nas nuvens e os pés no chão. Se deixo a pluma da mente leve demais a ponto de começar a flutuar pode bater um vento da ilusão e me levar aonde chega o lugar-nenhum, mas se peso demais as sapatilhas corro o grave risco de andar sem graça pelo mundo. O segredo está sempre no meio, deixar a coluna firme, fazer força mesmo, mas de um jeito especial da equilibrista que não permite que a dureza de dentro brigue com as curvas de fora. Só quem for mais ingênuo pode acreditar que é tudo delicadeza nesse mundo.

Quando me aprumo do jeito certo é quando eu fico de ponta-cabeça, quer dizer, os pés andam na direção dos sonhos e a cabeça está bem atenta pelos caminhos que devo seguir. E se você prestar atenção, vai notar minha preferência por andar no meio-fio da calçada, de ficar na ponta dos pés enquanto empurro o carrinho de supermercado ou mesmo no modo como eu me deito com as pernas pra cima quando fico no sofá com vontade de fazer nada. É tudo treino pra não me esquecer de como andar na corda-bamba.

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Olá! Somos Leila e Matheus, amigos que gostam de escrever e trocam cartas cheias de afeto. Isso tudo porque nos afetamos e fazemos dos fios da vida material par