Blockchain e Esportes — Parte II

Felipe Ribbe
Felipe Ribbe
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7 min readJul 6, 2020

No primeiro artigo sobre blockchain no esporte, escrevi sobre entidades que aceitam criptomoedas como pagamento; iniciativas de uso em ticketing, como forma de aumentar a segurança e o controle na venda de ingressos; e a Socios.com, uma plataforma que vende fan tokens de alguns dos maiores clubes do mundo. Neste segundo e último texto, falarei sobre games, a aplicação mais utilizada no meio esportivo atualmente, e comentarei um pouco mais sobre tokenização de ativos reais, algo com potencial para criar um mercado muito valioso.

O que é Blockchain?

Muito resumidamente, blockchain é uma rede digital descentralizada — pública ou privada — de registro de transações e dados em ordem cronológica e inalterável, protegida por criptografia. O Bitcoin, a criptomoeda mais famosa, foi a primeira aplicação conhecida desta tecnologia, porém sua usabilidade se estende bem além do setor financeiro. Se você quiser se aprofundar no assunto, há vasto conteúdo disponível na internet. O foco aqui não é explicar como a blockchain funciona (até porque não sou especialista) e sim como tem sido empregada no meio esportivo.

Blockchain nos games

É nos games que a blockchain tem sido mais usada dentro dos esportes, pelo menos até o momento, especialmente em versões digitais de mercados de itens colecionáveis, justamente pela capacidade de verificar a autenticidade e a exclusividade destes itens. E, assim como nas outras aplicações, o objetivo é que a tecnologia seja apenas a base e os clientes nem saibam o que sustenta o que estão jogando. O jogo que mais chamou a atenção até hoje, curiosamente, ainda não foi lançado oficialmente: o NBA Top Shot. Produzido pela Dapper Labs, trata-se de um marketplace de colecionáveis únicos da NBA; porém, ao invés dos tradicionais cards, são momentos da história da Liga em vídeo gravados em tokens, como o jump shot do Michael Jordan contra o Utah Jazz no título do Bulls em 1998 ou o toco que o Lebron deu no Iguodala nas finais de 2016. Quem compra cada lance — por cartão de crédito ou criptomoedas — é dono dele na plataforma e pode mantê-lo em coleção própria ou comercializar com outras pessoas, até lucrando com isto. Haverá ainda desafios diários e semanais. Em entrevista à SportTechie, Caty Tedman, VP da Dapper Labs, deu um exemplo de desafio: “Podemos pedir para você colocar juntas nove enterradas históricas e, se você conseguir, te premiaremos com uma décima que não está à venda”. A empresa e a NBA ganham dinheiro vendendo os tokens (custarão entre US$9 e US$200 aproximadamente) e um percentual de cada transação realizada entre os membros da plataforma. No início de 2020, a Dapper Labs também anunciou acordo com o UFC.

Ainda na NBA, o Sacramento Kings, que foi o primeiro time a aceitar Bitcoin em sua arena ainda em 2014, lançou outras iniciativas envolvendo blockchain: no início de 2020, disponibilizou em seu aplicativo oficial uma plataforma de leilão de peças usadas pelos jogadores em partidas; ano passado, em parceria com a CryptoKaiju produziu 100 modelos de brinquedos diferentes, cada modelo com apenas um item, exclusivo, registrado numa blockchain para verificação de autenticidade; e criou um programa de pontos para os fãs baseado na tecnologia e atrelado a um jogo preditivo chamado “Call the shot”.

A Panini, famosa pelos álbuns de figurinhas, também adotou a blockchain e vende cards exclusivos com atletas e ex-atletas da liga americana de basquete, como Zion Williamson, mas também de outras modalidades, como Gareth Bale e Peyton Manning. O comprador recebe uma versão física autografada e uma versão digital que confirma sua veracidade. Os usuários podem trocar os cards e competir em jogos entre si.

Outros esportes têm games baseados em blockchain. A MLB tem o MLB Champions, que funciona como um fantasy game, onde as pessoas competem umas contra as outras de acordo com os tokens de jogadores que possuem. A Fórmula 1 tem o F1 Delta Time, que gira em torno da coleção e comercialização de carros, pilotos e componentes, cada um deles representados digitalmente por um token. Uma vez em posse destes, os participantes disputam diversas corridas e ganham recompensas em criptomoedas. Em 2019, um usuário chegou a pagar mais de US$100 mil (isso mesmo, 100 mil dólares!!!) por um carro.

No futebol há alguns exemplos e a Sorare é quem tem feito o maior barulho. A empresa tem acordos com 76 clubes até o momento (Juventus, Atletico de Madrid, Napoli e Lyon são alguns deles) e cria cards de jogadores destes times. Toda temporada são criados três tipos de cards de cada atleta: único (uma unidade), Super Raro (10 unidades) e Raro (100 unidades). Estes cards podem ser comprados em Ether — uma das criptomoedas mais famosas — e as pessoas podem usá-los de duas formas. Primeiro, existe um fantasy game global no aplicativo, onde os usuários montam equipes com 5 cards e competem entre si por prêmios semanais, com a performance de seus jogadores no mundo real influenciando nestas competições; há ainda uma Exchange, pela qual é possível comercializar e lucrar com os cards. Eles valorizam e desvalorizam também baseados na performance em campo dos jogadores. Na América do Sul, apenas o Gimnasia La Plata está na plataforma; ter Diego Maradona como treinador ajudou bastante.

Outro exemplo no futebol é a a Stryking, uma empresa alemã, que fez uma parceria com o Bayern de Munique para criar cards dos jogadores do clube. Assim como a Sorare, a companhia também tem um fantasy global, o Football Stars. Já a Fantastec Swap fez acordos com Arsenal, Borussia Dortmund e Real Madrid.

Tokenização de ativos reais no esporte

A tecnologia fez surgir um fenômeno conhecido como tokenização de ativos reais. Tais tokens são representações digitais destes ativos reais na blockchain. Os mais entusiasmados afirmam que tudo pode ser tokenizado, o que criaria um mercado trilionário — o mundo tem ativos reais avaliados em mais de US$250 trilhões. Também daria liquidez a ativos historicamente ilíquidos e democratizaria investimentos outrora restritos; imóveis e peças de arte, por exemplo, costumam ser bastante caros, porém, com os tokens, é possível fracioná-los em pequenas partes, o que, inclusive, já acontece. Por que não pensar na aplicação de tokens no esporte?

Um atleta pode, por exemplo, criar tokens atrelados aos seus ganhos futuros e vendê-los, como forma de levantar capital que o financie no presente, especialmente se estiver em início de carreira. Os compradores deste token seriam remunerados com base em contratos assinados por este atleta durante sua carreira (salários e patrocínios) ou receberiam o valor com juros em um tempo determinado, como funcionam títulos de dívidas de empresas. Na NBA, o armador do Brooklyn Nets, Spencer Dinwiddie, inovou ao tokenizar parte do seu contrato (cerca de US$13,5 milhões); os compradores ganham juros mensais sobre o valor investido e ainda têm benefícios, como participar de sorteios para ir a jogos dos Nets ou acompanhar Spencer em All-Star Games. A iniciativa demorou quase seis meses para ser aprovada pela Liga, mas finalmente foi em maio. No Brasil, a Olecoin lançou uma criptomoeda e os detentores desta poderão investir em tokens de jovens jogadores de futebol, que passarem por um processo de seleção da empresa. Estes investimentos são microparticipações nos ganhos futuros destes atletas — direitos econômicos não entram, pois a regulação da FIFA não permite. A Globatalent é uma empresa da Estônia, que não só permite investir em atletas e clubes em troca de participação em contratos futuros, como também criou uma Exchange, onde é possível comercializar esses tokens.

Por falar em tokenização de clubes, há outras iniciativas nesta linha. Você já sabe que é possível ser dono de ações de alguns clubes listados na Bolsa, como Manchester United e Juventus. Na NFL, o Green Bay Packers é o único time que não tem donos e sim vários acionistas — mais precisamente 360.760. Porém, estes não ganham dividendos, nem podem comercializar suas ações. Eles apenas são donos do clube e elegem o board de diretores. Mas para um clube ser tokenizado o processo é muito mais simples e barato do que um IPO, o que pode ser um grande atrativo para aqueles que querem levantar capital. Foi o caso do Perth Glory, da primeira divisão da Austrália, em fevereiro deste ano. No Brasil houve duas experiências que tiveram destaque, mas ambas fracassaram. Em 2018, o Avaí lançou tokens com o objetivo de levantar R$80 milhões (ou um mínimo de R$32 milhões) em parceria com a Sportyco para investir em infraestrutura e no futebol. Como foram vendidos R$18,5 milhões em tokens, o montante foi retornado aos compradores. No mesmo ano, o Cruzeiro-RS lançou projeto ambicioso, onde os donos de tokens teriam ampla participação nas decisões do clube, desde design de uniformes até preços de ingressos, acordos comerciais e contratações. Chegou-se a cogitar até a possibilidade de opinar em escalações. O objetivo era captar em torno de R$60 milhões, mas não encontrei notícias sobre valor arrecadado, nem continuação da iniciativa.

Apesar de ainda incipiente, a ideia de dar liquidez a mercados ilíquidos, como participações em clubes e em ganhos futuros de atletas, parece bem atrativa. O pulo do gato, no entanto, é a criação e, principalmente, a popularização de um marketplace, uma grande Exchange regulamentada, onde se possa negociar tokens de diversos atletas e clubes livremente, com os valores dos mesmos variando de acordo com a performance no esporte. Se isto um dia irá acontecer não dá para prever, mas as iniciativas existentes mostram que, pelo menos, tem gente trabalhando para isso. Resta aguardar.

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Felipe Ribbe
Felipe Ribbe

Former Director Brazil at Socios.com and Head of Innovation at Clube Atlético Mineiro