Como a La Liga se tornou um colosso global sem depender apenas de Real Madrid e Barcelona

Felipe Ribbe
Felipe Ribbe
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10 min readMay 4, 2020

A Espanha, há décadas, é um dos países mais relevantes do futebol, mas a maior parte de todo este sucesso está atrelada a Real Madrid e Barcelona, talvez os principais clubes do mundo. O campeonato espanhol, durante anos, foi taxado de não ser uma competição tão atrativa em campo, tamanho o domínio dos dois gigantes, a ponto de, no Brasil, criarem até a expressão “espanholização” para afirmar que o contrato da Rede Globo para transmissão do Campeonato Brasileiro produziria fenômeno parecido com Flamengo e Corinthians. Mais competitiva (pelo menos com um número maior de candidatos ao título), a inglesa Premier League passou a ostentar o título de melhor liga do planeta, crescendo sua presença internacional, especialmente na Ásia. Porém, em 2013, a chegada de Javier Tebas à presidência da La Liga — entidade que controla a primeira e a segunda divisão espanholas — começou a mudar os rumos da história. Sim, Real Madrid e Barcelona continuam sendo os ativos mais valiosos, com os jogos entre os dois ganhando marca e identidade próprias, “El Clássico”, mas podemos afirmar que Tebas e sua equipe conseguiram aumentar bastante o interesse pelo produto como um todo, tornando-o verdadeiramente global. Como se deu esta internacionalização?

La Liga Global Network

Criada oficialmente em 2016, a Global Network, como o próprio nome já diz, é uma rede mundial de escritórios e delegados que representam a La Liga e engloba 85 países atualmente. Sua função é liderar a estratégia da entidade além das fronteiras espanholas, com uma premissa muito simples: na Espanha, o produto já é considerado premium, as pessoas já o conhecem, já o consomem, seguem as redes sociais. Estamos falando de um país de menos de 50 milhões de habitantes, ou seja, a grande oportunidade de crescimento está fora dele.

Os objetivos principais são três:

1) Aumentar o valor dos direitos de transmissão internacionalmente, pois, se há um crescimento na presença e no reconhecimento da marca em outros territórios, as empresas de mídia locais estarão mais dispostas a ampliar a quantia oferecida pelos direitos;

2) Aumentar a audiência internacionalmente, tanto a tradicional, das transmissões das partidas, quanto o número de seguidores em redes sociais;

3) Gerar oportunidades de negócios para a La Liga e para os clubes que a integram (42 no total, sendo 20 na 1ª Divisão e 22 na 2ª Divisão).

Três pilares estratégicos da Global Network

Para alcançar os objetivos, adota-se uma estratégia “Glocal”, ou seja, existe uma estratégia global clara, mas que é adaptada para cada mercado, pois cada um enxerga o produto de maneiras diferentes. Em países como Brasil e México, por exemplo, onde o futebol é um esporte de massa, a La Liga também é muito popular; já em países do Sudeste Asiático ou Índia, onde o futebol não figura entre as preferências nacionais, a marca não é tão conhecida.

A rede conta com diversos tentáculos:

- Escritório central em Madrid, onde cerca de 10 gerentes fazem a conexão entre os departamentos internos e os profissionais espalhados pelo mundo para que haja ações coordenadas;

- 11 escritórios internacionais em 9 países;

-46 delegados em 43 países, sendo que estes trabalham não só nos locais onde estão instalados, mas também são responsáveis por nações vizinhas (por isso o alcance de 85 países citado anteriormente).

La Liga Global Network

O papel de um delegado é 360°, por isso é exigido que eles tenham múltiplas habilidades. O processo de seleção, inclusive, foi bastante disputado: mais de 12 mil candidatos de 40 países. Apenas 60 foram selecionados para iniciar o projeto. Todos foram enviados a Madrid para um programa de imersão de 10 semanas, no qual conheceram a fundo a história da La Liga e os objetivos da Global Network.

Suas funções são diversas:

- atuar junto aos detentores dos direitos de transmissão — trata-se de um relacionamento de duas vias: tais detentores são parceiros estratégicos, por isso os delegados devem propor ações que ativem as partidas e aumentem a audiência; porém, também devem se certificar de que o conteúdo está sendo exibido da maneira correta. Por ano, há auditorias em mais de 3 mil jogos para, por exemplo, se ter a certeza de que não há publicidade indevida nas transmissões ou que os narradores e comentaristas sabem o que estão falando;

- ativar a marca La Liga e criar/assistir uma comunidade de fãs locais — a meta para a atual temporada, antes do COVID-19, era organizar 600 ativações pelo mundo, que podem ser Watch Parties, eventos com patrocinadores, encontros com jornalistas, campanhas digitais, organização de clínicas para jovens com presença de figuras lendárias do campeonato… Os delegados devem ser proativos e dar sugestões de acordo com o mercado que atuam;

- apoio a clubes — ajudar os clubes que queiram ampliar sua presença em outros países, também por meio de ativações, como as citadas no tópico anterior;

- relacionamento com jornalistas — conhecer os veículos de mídia locais e “vender” histórias que possam atrair o interesse do público para a competição. Neste caso, há apoio direto de uma equipe de comunicação internacional, posicionada em Madrid, onde cinco gerentes de PR supervisionam tais ações. Além disso, a La Liga trabalha com sete agências pelo mundo (Índia, China, Indonésia, África do Sul, Nigéria, Reino Unido e Brasil) para ajudar na adaptação de conteúdo especificamente para estes mercados estratégicos;

- buscar oportunidades comerciais locais — além de ativar patrocinadores globais, os delegados são estimulados a buscar acordos comerciais com marcas locais. Desde a criação do projeto, cerca de 20 patrocínios foram fechados neste formato;

-representação institucional — criar parcerias com players locais (ligas, confederações…) com o objetivo de ajudar a desenvolver o futebol nestes países e, consequentemente, aumentar o interesse pelo esporte e a La Liga. Isso por se dar por meio de camps, programas de formação de treinadores, scouting, escolinhas, intercâmbio de equipes para a Espanha… Até o momento já foram fechados 32 acordos em 26 países. Há ainda um trabalho direto com embaixadas, consulados e câmaras de comércio espanholas.

Acordos fechados com ligas e confederações pelo mundo

Após os primeiros anos de projeto, houve clara evolução em três departamentos especialmente:

1)Audiovisual — como não se veem mais apenas como um player esportivo e sim de entretenimento, houve uma melhora significativa na qualidade do produto audiovisual produzido, seja nas transmissões das partidas (novos ângulos e tecnologias, como o Intel True View), seja em conteúdos frios produzidos para as redes sociais. Houve ainda uma mudança muito importante na mentalidade na hora de programar os dias e horários de jogos: os horários mais comuns, finais de semana na parte da tarde na Espanha, limitavam, por exemplo, a audiência na Ásia, onde a La Liga tem muitos seguidores. Por isso agora há a possibilidade de programar os 10 jogos de cada rodada em horários diferentes, o que faz não só com que uma partida não compita com outra, como também permite atender o público em todas as partes do mundo. Assim, os jogos começam desde meio-dia e vão até a parte da noite (horário espanhol), possibilitando que fãs da Austrália à Costa Oeste dos EUA consigam assistir ao menos uma partida.

Sunlight Broadcasting Planning

Vale também destacar duas ferramentas desenvolvidas pela entidade que auxiliam neste processo: a Calendar Selector e o Sunlight Broadcasting Planning. A primeira usa machine learning para indicar os melhores horários para o início de cada jogo, tendo como base mais de 30 variáveis, como histórico de audiência, de presença de público no estádio, feriados regionais e outros eventos importantes nos locais da partida que podem impactá-la. Já o segundo faz uma reconstrução 3D de todos os estádios da competição para entender como a posição do Sol e as sombras no gramado no momento do jogo influenciarão a imagem da TV, a visão do público na arquibancada e dos jogadores em campo.

O resultado destas mudanças foi um aumento significativo da audiência total da temporada: de 1,2 bilhão em 2014/2015 para quase 3 bilhões em 2018/2019.

2) Comunicação e Digital — a principal estratégia de comunicação foi tratar a La Liga menos como um produto esportivo e mais como um produto de lifestyle, pois desta maneira foi possível impactar não só os fãs que seguem o campeonato acompanhando placares e estatísticas, mas também aqueles que se interessam por outros aspectos que não somente as partidas. Já a estratégia digital foi criar conteúdo personalizado para cada mercado, com uma comunicação em 20 idiomas diferentes, o que permitiu aumentar o engajamento de fãs de outros países. Além disso, a La Liga criou perfis em várias redes sociais regionais, como as chinesas Weibo e Douyin, a russa VK e a Line, do Sudeste Asiático. Com isso, conseguiu ultrapassar a marca de mais de 100 milhões de seguidores em seus perfis oficiais.

Outra ação importante foi fazer com que a La Liga fosse vista como algo que deve ser consumido todos os dias e não apenas em dias de rodadas. Para isso, foram criados diversos produtos digitais:

- Aplicativo oficial — básico, com placares e estatísticas em tempo real, informações sobre os times e notícias;

-La Liga Sports TV — plataforma gratuita de OTT com conteúdo não só de futebol, mas de vários outros esportes. Há acordo com mais de 65 federações esportivas espanholas, que exibem suas competições ao vivo na aplicação. Apesar de não passar os jogos da La Liga ainda, é um primeiro passo para entender este novo mercado D2C e se preparar para o futuro. Também é uma forma de atrair um novo público e conhecer melhor o atual, por meio de seus hábitos de consumo de mídia. Em dezembro, havia 410 mil usuários registrados.

Gráfico mostra como a estratégia de jogos e apps faz com que os acessos sejam estáveis

- La Liga Fantasy Marca — um fantasy no formato tradicional, como o Cartola no Brasil;

- La Quiniela En Vivo — bolão tradicional, simples, onde os fãs podem dar palpites sobre todos os jogos de cada rodada, no formato da antiga Loteria Esportiva;

- Match Game — jogo da memória mobile;

- Head Soccer — jogo mobile, onde miniaturas de jogadores se enfrentam em partidas 1x1, tentando fazer gols apenas com a cabeça. Mais de 50 milhões de downloads;

- Tiny Striker — outro jogo mobile, casual, no estilo Head Soccer, onde os usuários escolhem jogadores da La Liga e tentam fazer gols de falta;

- EduJoy — mais de 40 jogos mobile infantis para crianças entre 4 e 11 anos. O maior percentual de usuários, curiosamente, é no Brasil;

- Top Cards — voltado para o mercado asiático, troca de cards de jogadores da La Liga.

Este cardápio variado de aplicações mostrou-se um grande sucesso e a La Liga ultrapassou a marca de 100 milhões de downloads no total, ficando atrás apenas da NFL e da NBA, bem a frente de outras ligas de futebol.

Número de downloads de apps e jogos da La Liga

Também é interessante ressaltar a ajuda dada aos clubes na construção de aplicativos próprios. Para isso, a entidade fechou contrato com a empresa americana YinzCam para criação de apps com um formato padrão, que podem ser facilmente personalizados de acordo com cada clube. Em 2017, antes do acordo, apenas 17 dos 42 clubes tinham aplicativos e o rating médio dos mesmos era 3,8. Este ano, já são 37 clubes com apps próprios e o rating médio subiu para 4,7.

3) Comercial — a Global Network também teve impacto importante no setor comercial da La Liga. Houve uma ampliação nas oportunidades de negócios para a entidade e os clubes fora da Espanha, demonstrado no crescimento de dois dígitos por temporada em acordos em todo o mundo — impulsionados especialmente por parceiros locais — e no aumento de 15% no volume de ativações ano a ano.

É inegável que o projeto seja um enorme sucesso, inclusive rendendo à La Liga o prêmio de melhor estratégia de internacionalização no World Football Summit de 2019. O objetivo agora é fazer com que ele se torne autossustentável em breve, conforme novos acordos comerciais sejam fechados. Há também a possibilidade de ampliação da rede: Israel, por exemplo, não estava nos planos iniciais, mas, por ser um país referência em tecnologia e um mercado aquecido de startups, começou a ser acompanhado à distância pelo delegado da Franca até que ganhou seu próprio delegado. Bangladesh, com seus 3 milhões de seguidores em redes sociais, teve um evento piloto durante um Real Madrid x Barcelona esta temporada para testar o mercado e pode ser mais um país na Global Network em breve.

Olhando para o nossa realidade, a pergunta que fica é: por que o Campeonato Brasileiro não pode ter algo ao menos parecido? Claro que não temos por aqui equipes com a relevância mundial de Real e Barça, nem estrelas internacionais como a La Liga, mas certamente poderíamos criar apelo, talvez com uma abordagem na linha de ser o berço onde nossos craques dão os primeiros passos no profissional (“As estrelas mundiais do futuro”) ou mostrando a atmosfera de nosso estádios. O exemplo de sucesso está aí. Que tal fazer o dever de casa?

Fonte:

Vídeos La Liga Business School — https://business-school.laliga.es/multimedia

https://www.sportspromedia.com/analysis/la-liga-global-network-international-sponsorship-tv-rights

https://www.broadcastnow.co.uk/broadcasting/laliga-reveals-series-of-tech-innovations-at-madrid-event/5145442.article

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Felipe Ribbe
Felipe Ribbe

Former Director Brazil at Socios.com and Head of Innovation at Clube Atlético Mineiro