Estádio para Todos — Uma proposta de inclusão

Felipe Ribbe
Felipe Ribbe
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8 min readMay 30, 2024

Ir a estádios é uma experiência acima de tudo social. Você fica ao lado de pessoas que nunca viu antes, gente de diferentes classes sociais, cores, religiões e histórias de vida. Por 90 e poucos minutos faz melhores amigos, abraça, xinga, chora… compartilha sentimentos pessoais com outros que nem sabe o nome. Quando acaba, você vai embora e, provavelmente, nunca irá encontrá-los novamente. Essa é a magia que só o futebol proporciona.

Entretanto, clubes populares, com milhões de torcedores, têm jogado para uma pequena parcela deles, perdendo, ao menos em parte, sua identidade e muitas vezes esportivamente. Este, no entanto, não é mais um artigo para falar sobre gentrificação de estádios ou reclamar de preços altos. É sim uma proposta de que é possível fazer diferente, sem perdas; muito pelo contrário.

Alguns dados sobre público nos estádios do Brasil

O Campeonato Brasileiro de 2023 foi um sucesso em relação à presença de público, com a maior média da história da competição, 26.502 pagantes por jogo, superando o recorde anterior, de 1983. A taxa de ocupação também aumentou, chegando a 62%, mas, mesmo assim, 38% dos assentos ficaram ociosos. Estes dados mostram que, apesar de termos um claro movimento de alta na presença de torcedores nos estádios do país, existem muitos espaços que ainda ficam vazios em partidas de todos os clubes.

As causas podem ser variadas, como precificação não eficiente ou falta de demanda. Como resultado, não só dinheiro é deixado na mesa (não somente da venda de ingressos, mas do consumo dentro dos estádios), como o produto é desvalorizado (espaços vazios demonstram um certo desinteresse pela competição) e perde-se ainda competitivamente, já que estádios lotados, ao menos em teoria, são uma vantagem ao mandante.

O que fazer então? Pensar melhor a questão dos preços é uma das opções óbvias. Uma outra baseia-se num caso de sucesso recente na Alemanha.

Case “Fortuna for All”

Em abril de 2023, o Fortuna Dusseldorf, da Alemanha, lançou uma iniciativa pioneira, o “Fortuna for All”. Jogando a 2. Bundesliga, a segunda divisão alemã, o clube queria se reaproximar da cidade e de sua comunidade de torcedores, e decidiu experimentar algo diferente na temporada seguinte (2023/2024), escolhendo três partidas que teriam todos os ingressos gratuitos. Para participar era muito simples: bastava criar uma conta no site de venda de ingressos do clube e requisitar seu ticket para cada jogo; caso a demanda fosse maior que a capacidade do estádio (54.600 pessoas), haveria sorteio entre os requisitantes.

A campanha foi um sucesso. Na primeira partida — vitória sobre o Kaiserslautern por 4 x 3 -, 120 mil pessoas solicitaram entradas; nos dois jogos seguintes (derrota para o St. Pauli por 2 x 1 e vitória sobre o Eintracht Braunschweig por 2 x 0), foram 130 mil e 90 mil pessoas, respectivamente, querendo ingressos. As três partidas tiveram lotação máxima, bem acima da média do clube na temporada anterior (29.420 pessoas) e ajudaram, inclusive, a estimular a presença de público em outros jogos (a média do time na atual temporada está em 39.672 torcedores). Ganho esportivo (o Fortuna, por muito pouco, não subiu para a primeira divisão) e, claro, um ganho de imagem e conexão com a cidade, que deve render frutos no médio e longo prazos.

Você deve estar pensando: “muito legal, Felipe, mas o clube deixou de arrecadar dinheiro nestas três partidas. Quem paga esta conta?”. É uma pergunta super pertinente; toda a ação foi financiada por patrocinadores do Fortuna Dusseldorf, que não só bancaram a receita que o clube faria nestes jogos, como ainda se comprometeram a investir em outros projetos comunitários na cidade (o Fortuna for All é uma ação maior, além dos ingressos gratuitos — vale a penar ler no site da ação, que linkei acima).

Esta primeira fase do projeto foi um piloto, que, como foi bem sucedido, deve ser continuado na próxima temporada. A visão do clube é ousada: ter TODAS as partidas gratuitas para sua população. Se vão conseguir ou não, ainda é cedo para saber, mas só de terem tirado a ideia do papel, mostrado sua viabilidade e terem esta intenção futura, já merecem os parabéns. Certamente é um case de sucesso (saiba mais clicando aqui).

Aplicação no Brasil

Inspirado no Fortuna for All, comecei a pensar na possibilidade do mesmo ser aplicado no Brasil. Como citado no início do artigo, o futebol, apesar de ser o esporte mais popular do país, tornou-se caro demais para grande parte da população assistir in loco. Porém, já mostramos que há espaço ocioso de sobra nos estádios, que poderia muito bem ser preenchido por pessoas de baixa renda.

Para entender a viabilidade, analisei borderôs em três estádios de grande porte (Maracanã, Morumbi e Mineirão) em partidas de clubes de massa com públicos de diferentes tamanhos. E a conclusão é que dá sim para criar um programa mais inclusivo.

Estádio Para Todos

O Maracanã tem capacidade máxima oficial de 78.838 pessoas, porém, em jogos de clubes, por fatores de segurança, a mesma costuma ficar na casa de 66 mil pessoas. A média de público do Flamengo no Brasileirão 2023, por exemplo, foi de 54.499, o que daria, fazendo uma conta básica, uma média de 11.501 lugares ociosos por partida. Do Fluminense, 29.783, ou seja, foram 36.217 lugares em média desocupados todos os jogos.

O Morumbi tem capacidade máxima oficial de 66.795 pessoas. A média do São Paulo no Brasileirão 2023 foi de 43.780 pessoas — 23.015 lugares sem ocupação por partida. Já o Mineirão pode receber oficialmente 62 mil pessoas, mas o Cruzeiro teve média ano passado de 29.307 torcedores — 32.693 lugares ociosos.

Somando apenas estes quatro clubes, seriam mais de 100 mil pessoas que poderiam estar presentes em média em todos os jogos como mandante, tornando o ambiente mais favorável aos times, mais inclusivo para quem não têm condições de comprar ingressos e, de quebra, levando receitas adicionais aos clubes.

Como funcionaria

O Estádio para Todos poderia ser uma iniciativa individual de um clube ou mesmo da CBF. A primeira tarefa seria criar um cadastro simples, gratuito, para pessoas de até uma determinada faixa de renda mensal individual (por exemplo, até dois salários mínimos, cerca de R$2.800,00). Poderiam ser usados sistemas de cadastro do governo em programas sociais ou apenas exigir documentos que comprovem a renda máxima do indivíduo para evitar fraudes. Neste passo, é fundamental ter a biometria dos participantes para impedir a ação de cambistas. Só entra no estádio com a face ou mostrando a digital. Aliás, já escrevi um artigo sobre programas de sócio-torcedor e que todo clube deveria ter uma categoria gratuita. Está aí a oportunidade de juntar as duas coisas.

Depois, é preciso ver o calendário de jogos e projetar o público pagante em cada um deles, levando em consideração fatores como histórico, dia da semana, horário, adversário, importância da partida… Deve-se considerar também cadeiras cativas e gratuidades (no estado do Rio de Janeiro, por exemplo, menores de 12 anos e idosos acima de 65 anos, além de pessoas com deficiência, têm direito a entrar de graça). Em cima desta projeção, deixa-se uma margem de ingressos (digamos, 10%) pensando em uma demanda em cima da hora e o restante é disponibilizado para os participantes do “Estádio para Todos”.

E em jogos de expectativa de lotação máxima? Aí existem três opções: pode não haver disponibilização de ingressos (afinal a regra do programa é usar ingressos ociosos); pode-se reservar uma carga mínima de entradas gratuitas ou cobrar um preço simbólico nesta carga para os participantes do programa. No caso das últimas duas opções, não necessariamente haveria perda de receita, já que muito provavelmente empresas se interessariam em financiar a iniciativa — explico melhor mais abaixo.

O sistema de funcionamento poderia ser muito parecido com o sistema de check-in, que muitos programas de sócio-torcedor adotam atualmente. Dias antes da partida, abre-se a oportunidade de manifestar interesse em comparecer, com prazo máximo para aplicar. Caso o número de aplicantes seja menor ou igual ao de ingressos disponibilizados, todos garantem suas vagas. Caso haja uma demanda maior, realiza-se um sorteio e os selecionados ganham entradas. Para assegurar que o maior número possível de inscritos será agraciado pelo menos uma vez, pode-se criar uma organização em fila (onde quem é sorteado automaticamente vai para o final da fila ou fica impedido de aplicar para as partidas seguintes) ou de “handicap”, onde a medida que a pessoa é premiada, suas chances de ser sorteada novamente nos jogos seguintes diminui.

É importante também punir quem é sorteado e não comparece, pois estará tirando a oportunidade de outra pessoa. Se não na primeira vez, a partir da segunda a punição pode variar entre o impedimento de participação durante determinado período até exclusão total do programa.

E a conta?

Essa é a pergunta principal. Antes de respondê-la, é preciso entendê-la. Analisando os borderôs do Maracanã, por exemplo, verificamos na parte de despesas que há apenas três que são variáveis, ligadas diretamente ao público presente:

. seguro do público presente (R$0,032 por pessoa no Brasileirão e Copa do Brasil, R$0,15 no Carioca);

. despesas do estádio;

. confecção venda e pré-venda de ingressos.

A primeira (seguro) é um valor irrisório por pessoa. A segunda (despesas do estádio) também é marginal, a não ser que algum setor que não estava programado precise ser aberto para receber mais gente — neste caso, pode-se limitar os ingressos disponíveis dentro da capacidade máxima dos setores liberados para a partida. Mas mesmo abrindo outros setores, não estamos falando de uma despesa relevante. Por último, por ser exigida a entrada usando biometria, a necessidade de confecção de ingressos também deixa de existir — lembrando que a Lei Geral do Esporte, de 2023, obriga que todas as arenas esportivas do país deverão ter reconhecimento facial implementado até junho de 2025.

No Morumbi, identifiquei os seguintes custos variáveis: funcionários; ingressos e controle de acesso; prestadores de serviços; e segurança privada. Destes, porém, somente “ingressos e controle de acesso” pareceu ter relação direta com o número de presentes, pois o restante, em alguns casos, teve valores menores em partidas com mais público. No Mineirão, acontece algo parecido, com determinadas despesas variáveis sendo menores em jogos de maior presença. Sendo assim, identifiquei apenas seguro-torcedor; brigada de incêndio; uma linha chamada “eventos”; locação de equipamentos; e posto médico/ambulância. Todos eles, entretanto, marginais em caso de mais pessoas presentes.

Ou seja, o custo para ocupar todos ou boa parte dos lugares vazios em cada jogo seria baixo, a ponto dos próprios clubes e/ou CBF poderem arcar sem prejudicar suas contas. Porém, caso não achem válido aumentar suas despesas, julgo que há uma enorme possibilidade de empresas se interessarem em financiar esta iniciativa, tal qual aconteceu com o case do Fortuna Dusseldorf. O ganho de imagem, ao permitir que pessoas sem condições financeiras possam voltar a fazer parte do futebol, é certamente algo que daria um retorno considerável sobre o investimento, sem contar o acesso a esta base de torcedores, que podem se tornar, por que não?, consumidores das marcas parceiras.

Já as receitas adicionais, que comentei anteriormente, poderiam vir através dos próprios patrocinadores supracitados e também do público presente, que, apesar de não pagar ingresso, poderá consumir no estádio, elevando o faturamento em dias de jogos.

A essência do futebol

A torcida é o maior patrimônio dos clubes e o sentimento de amor independe de classe social. O futebol não pode perder sua essência popular. As pessoas fizeram e fazem o esporte ser o que é hoje: uma máquina de fazer dinheiro, de gerar audiência e engajamento. Está na hora dos clubes e da CBF retribuírem e abraçarem todos os torcedores de volta.

Para o futebol ser de todos, os estádios precisam ser para todos.

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Felipe Ribbe
Felipe Ribbe

Former Director Brazil at Socios.com and Head of Innovation at Clube Atlético Mineiro