NFTs e o futuro no esporte — Parte 2: Cripto Sócio Torcedor

Felipe Ribbe
Felipe Ribbe
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8 min readNov 5, 2021

Os programas de sócio torcedor no Brasil são praticamente iguais em estrutura e no que oferecem. Os ingressos são o grande atrativo, sejam eles garantidos, com descontos ou até com a simples prioridade de compra. Os benefícios extras — rede de descontos em empresas parceiras, troca de pontos acumulados por experiências ou participações em sorteios e promoções especiais — acabam ficando em segundo plano, quase que relegados a algo muito mais para fazer volume na hora de vender os planos do que vantagens percebidas de fato. Isso faz com que o sucesso dos programas seja totalmente ditado pelo desempenho dos times em campo; ora, se o ingresso é o grande benefício, o valor real do meu plano existe apenas se o time está jogando bem e ganhando. Se não estiver, menos gente quer ir ao jogo, menos gente adere ao programa ou o segue pagando.

Durante as últimas décadas, entretanto, isso até que funcionou e os clubes meio que se conformaram; se o time está bem, vamos aumentar a base e o faturamento. Mas basta uma fase ruim e aquela base construída desaba rapidamente. Sim, há casos extraordinários de campanhas de associação em massa que, no curto prazo, geraram resultado, mas que acabaram não conseguindo se sustentar, pois a grande maioria das pessoas quer ver seu dinheiro sendo convertido em benefícios de fato. São muito poucos os que se contentam em pagar mensalidades apenas pela paixão.

A verdade é que o modelo atual de programas de sócio torcedor está saturado. Seguimos andando em círculos, buscando adicionar benefícios e acreditando que os mesmos serão suficientes para aumentar a base, mas não adianta nos enganarmos. O desempenho em campo, da forma como as coisas são hoje, sempre será o balizador entre sucesso e fracasso. É preciso mudar isso e o uso de blockchain pode ser a resposta.

No primeiro artigo sobre o futuro dos NFTs no esporte, escrevi sobre como vejo os tokens não-fungíveis atuando como passes para destravar experiências no mundo físico e como, dentro desta visão, o business de ticketing será totalmente revolucionado pela tecnologia. A lógica é a mesma quando aplicamos este conceito aos programas de sócio torcedor. A junção de capacidades como autenticação e rastreabilidade com contratos inteligentes e mercado secundário pode fazer com que membros de sócio torcedor possam se tornar sócios de fato, sendo remunerados de acordo com a lealdade e a participação ativa nos programas. Neste segundo artigo, mostro a visão que tenho sobre um programa de sócio torcedor baseado em cripto (não só no futebol, mas em outros esportes tradicionais e eSports) e porque acredito que esta mudança estrutural usando o que a tecnologia permite pode ser a chave para alterar a percepção de valor das pessoas.

Relembrando características essenciais dos NFTs

Antes de continuar, vamos relembrar algumas características fundamentais dos NFTs e da tecnologia blockchain:

. Autenticidade — é possível certificar a origem de todo ativo colocado na blockchain e atestar a autenticidade;

. Unicidade — cada NFT possui um ID único, ou seja, não há risco de termos duas pessoas com o mesmo ativo;

. Rastreabilidade — além de identificar a origem, é possível rastrear todos os movimentos dos NFTs, saber exatamente quem está com os mesmos e, por isso, quem de fato irá usá-lo;

. Programabilidade — cada NFT é programado com contratos inteligentes, linhas de código com as quais se pode determinar como um token vai se comportar dependendo da situação. Neste caso, aliado a rastreabilidade, é possível programar para que cada vez que o NFT for revendido, um percentual de comissão seja repassado a quem o criou. Não só isso, pode-se inclusive determinar o número de revendas que podem ser feitas (ou simplesmente proibir a revenda) ou ainda o valor máximo pelo qual o token pode ser revendido, criando e controlando assim o mercado secundário.

Cripto Sócio Torcedor

Uma vez feita a introdução, vamos entrar no Cripto Sócio Torcedor. O primeiro conceito que gostaria de falar aqui é o da escassez. Quando falamos de NFTs e colecionáveis, a escassez desempenha papel importantíssimo na formação e na percepção de valor. Isso pode parecer contraditório quando falamos de um programa de sócio torcedor, afinal o objetivo de todos deve ser sempre aumentar o número de membros, certo? Mas por que não podemos pensar num programa com vagas limitadas, onde nem todo mundo conseguirá participar? Podem-se ter diversas categorias, com limite de membros em cada uma delas, o que permitiria que o programa tivesse um número alto de participantes, mas repito, a noção de escassez automaticamente aumenta o valor do produto, pois entrega pelo menos algum nível de exclusividade. Por isso, o primeiro elemento que trabalharia em um Cripto Sócio Torcedor seria justamente esse. Não necessariamente precisa ser uma escassez atrelada a altos valores; pode-se pensar em escassez advinda da fidelidade ou de ações, como ida ao estádio, compra de produtos, participação em eventos… Por exemplo, um upgrade para uma categoria específica não será via pagamento de uma mensalidade maior, mas sim pelo cumprimento de determinadas atividades. Dessa maneira não vinculamos diretamente a “hierarquia” no programa ao poder aquisitivo.

Posto isso, vamos ao funcionamento. Ao se tornar membro, por meio do cadastro de informações pessoais, cada pessoa tem uma carteira cripto aberta em seu nome dentro da plataforma do sócio torcedor. Ela, inclusive, pode se tornar membra gratuitamente, se o desenho do programa assim permitir.

Aqui vale colocar algo que escrevi no artigo sobre ingressos. É preciso tirar qualquer complexidade existente atualmente quando falamos de carteiras cripto, ou seja, a interface precisa ser simples para o usuário comum e, logicamente, é necessário que seja aceito o uso de moeda fiduciária. Sem isso seria algo muito nichado e improvável de ser bem-sucedido.

Voltando. Cada pessoa recebe um NFT oficial de membro em sua carteira referente à sua categoria, numerado de acordo com o número de vagas abertas por plano. Trata-se de um NFT de identificação. Pense no cartão de sócio, mas em versão digital e muito mais personalizada. Esses NFTs podem ser imagens com características que tornam cada um único, inspirados nos Avatar Projects que têm bombado atualmente (saiba mais sobre eles aqui). Isso criaria um elemento ainda mais interessante, estimulando os membros a usar estes tokens até como imagens de perfil em redes sociais. Esses NFTs também são dinâmicos, ou seja, se atualizam com badges (selos) de acordo com o tempo em que esse membro está ativo ou de acordo com participações em eventos especiais, compra de produtos e ingressos… Isto vai tornando-os cada vez mais valiosos, pois quanto mais badges, mais benefícios se pode destravar — inclusive as supracitadas categorias especiais.

Outro elemento fundamental de um cripto sócio torcedor seria a transformação de cada benefício vinculado ao plano em um NFT individual. É desta maneira que se gera verdadeiro valor aos participantes. Ao se tornar membro, a pessoa recebe em sua carteira NFTs representando os benefícios que tem direito, como garantia de ingresso, desconto ou prioridade de compra no mesmo; garantia ou desconto em produtos oficiais; direito de participação em sorteios e eventos; direitos de participação em experiências especiais, como visitas ao CT ou ao vestiário antes das partidas… Todos esses NFTs são comercializáveis, até os de identificação. Ou seja, os sócios podem vender, trocar ou repassar seus planos e benefícios entre si no mercado secundário. Importante ressaltar que estamos falando de NFTs individuais por benefícios, ou seja, se um sócio tem direito a cinco idas ao CT por ano, cada uma dessas idas é um token e, como tal, ele pode negociar separadamente. O mesmo acontece com ingressos e outros. Esses benefícios podem ser comprados diretamente do administrador do programa também, como se fosse uma loja virtual, neste caso o mercado primário. Uma pessoa que não é membra, inclusive, pode se tornar de forma gratuita, abrir sua carteira cripto e comprar um NFT de identificação de alguém que já acumulou muitos badges e benefícios. Basicamente as pessoas que pagam para ser sócias e usufruir das vantagens passam também a poder ganhar dinheiro com isso, um baita atrativo. E o melhor é que o dono do programa (clubes, ligas, organizações de eSports…) sempre será remunerado com royalties neste mercado secundário.

Vale ressaltar que estes NFTs só podem ser usados enquanto o membro for adimplente — no caso dos planos pagos. Se, por exemplo, o pagamento for anual, os tokens são válidos por 12 meses. Sempre que o sócio renova o plano, renova o prazo de validade dos NFTs e acumula outros, de acordo com o tempo de permanência. Se ele se torna inadimplente, seus tokens ficam travados e não podem ser usados nem comercializados; caso ele volte a ser ativo em determinado período, esses NFTs são destravados. Se ele ultrapassar o tempo, esses NFTs são queimados e deixam de existir.

Pode-se pensar ainda em outros tipos de NFTs. Por exemplo, tokens emitidos como certificados de participação em eventos especiais ou certificados de doações para causas sociais apoiadas pelo programa. A partir destes, poderiam ser criados benefícios como ingressos para eventos e experiências exclusivas que só podem ser acessados por quem tiver determinados certificados na carteira. Esses NFTs são intransferíveis, como diplomas o são na vida real, mas podem ser usados em troca dos benefícios atrelados a eles. Outro exemplo seria criar produtos que só podem ser comprados por membros que tiverem determinados tipos de tokens. Imagine uma camisa que só pode ser adquirida por quem for de uma categoria do programa. Neste caso, a ideia de exclusividade seria ainda mais destacada e estimulada. E esse direito de compra, em formato NFT, pode ser comercializado no mercado secundário para quem não é da categoria, mas quer muito ter a camisa.

Há ainda a possibilidade de se criar categorias especiais, de financiadores ou fundadores, que são remunerados conforme o projeto cresce e gera mais receita, estimulando os próprios membros a buscarem outras pessoas para entrar no programa. Uma espécie de “member get member on steroids”. Isto pode ser muito útil para dar start em programas de clubes, ligas ou organizações de eSports que possuem menos fãs/torcedores/seguidores.

Quebra de paradigmas

O que proponho aqui é ousado, reconheço isso. Como tudo que é novidade, será necessário um período de aprendizado e educação dos membros, para que se acostumem à nova realidade, aprendam como negociar nos mercados primário e secundário, como usar suas carteiras cripto e NFTs para resgatar benefícios, e como ser remunerados pela proatividade. Porém, se queremos mudar — e precisamos -, devemos ir além e quebrar paradigmas. Deixar de lado o conformismo do “sempre foi assim, então temos que continuar” e apostar em algo novo, que leve valor de fato às pessoas. Vivemos em um mundo com cada vez mais opções de onde gastar nosso dinheiro (pense em Netflix, Amazon Prime, Spotify e afins…), ou seja, a competição para atrair pessoas para programas de sócios fica mais acirrada dia após dia e se não nos movimentarmos será cada vez mais complicado termos êxito na conversão. E a troca do modelo clássico, no qual o membro é passivo, por outro disruptivo, no qual o sócio é totalmente ativo, pode ser a chave para o sucesso. Quem se habilita?

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Felipe Ribbe
Felipe Ribbe

Former Director Brazil at Socios.com and Head of Innovation at Clube Atlético Mineiro