NFTs e o futuro no esporte — Parte I: destravando experiências no mundo físico

Felipe Ribbe
Felipe Ribbe
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10 min readOct 24, 2021
NFTs de Andy Murray destravaram experiências no mundo físico

Um dos assuntos mais quentes de 2021 certamente são os NFTs. Até o início do ano conhecidos apenas por um certo nicho do universo cripto, estes tokens não fungíveis (expliquei o que são neste post aqui) entraram no radar das “pessoas comuns” ainda no primeiro semestre, movimentando cerca de US$2,5 bilhões, mas atingiram o hype mesmo no terceiro trimestre, com incríveis mais de US$10 bilhões ao redor do mundo.

Quando olhamos a cobertura da imprensa não especializada, naturalmente o foco fica mais na superficialidade das vendas multimilionárias ou dos memes comercializados por fortunas do que no potencial de aplicabilidade que esta tecnologia possui — e que é enorme. Isso acaba atraindo críticos, pessoas que, em sua maioria, não se aprofundaram no assunto e que acabam resumindo todo um movimento disruptivo como moda, brincadeira de quem não tem mais o que fazer com dinheiro, pirâmide financeira e outras baboseiras que lemos aos montes por aí.

Sim, como escrevi acima, há um hype gigante sobre o tema, muitas vendas infladas por pessoas que querem apenas faturar rapidamente, vários esquemas surgindo para enganar novos entrantes pouco experientes… Porém, lembre-se que estamos falando de uma tecnologia (blockchain) que surgiu em 2009 e que os NFTs começaram a ser explorados de verdade a partir de 2017, ou seja, algo que ainda está em sua infância; justamente por isso, existem muitas possibilidades pouco ou ainda não exploradas, coisas que talvez nem saibamos que sejam possíveis, o que torna tudo muito mais interessante e atraente.

Para mostrar algumas dessas possibilidades, resolvi complementar minha série de posts sobre projetos envolvendo blockchain com artigos explorando os caminhos que podem ser tomados daqui para frente.

Lançamento de NFT do Kings of Leon

Destravando experiências e produtos no mundo físico

Explicar o conceito de NFTs, como funcionam e porque as pessoas pagam por eles não é tarefa fácil, afinal a grande maioria de nós se acostumou a enxergar valor apenas em ativos tangíveis, ou seja, coisas que podemos tocar. A ideia de que algo que só existe digitalmente — e teoricamente pode ser copiado com um simples print screen — vale dinheiro real ainda soa absurda para muitos. Por conta disso, tem sido comum há algum tempo o vínculo de NFTs com experiências e produtos no mundo real.

A banda Kings of Leon foi uma das primeiras a explorar esta possibilidade, quando, em março, lançou seu novo álbum e junto uma coleção de NFTs. Uma categoria desses tokens, chamada de “golden ticket”, dá a seus donos quatro ingressos de frente para o palco em um show por cada turnê da banda para sempre (ou até o Kings of Leon deixar de existir), além de motorista particular para levar e buscar, meet and greet com os integrantes e itens de merchandising. No esporte, sempre gosto de dar o exemplo de Andy Murray, que lançou uma coleção de NFTs atrelados a benefícios nos mundos físico e virtual. O NFT mais exclusivo, versão única, foi arrematado por US$178 mil e permite a quem comprou jogar 30 minutos de tênis com o astro, além de ter acesso a dois ingressos VIP para assistir à final de Wimbledon em 2022 ao lado de Murray. Recentemente, Shaquille O’Neal lançou coleção em que três dos tokens, de forma aleatória, proporcionarão aos donos experiências como uma vídeo chamada com o ex-atleta, um par de tênis customizados e até um jantar com ele. Aqui no Atlético estamos experimentando este caminho com nossa coleção de camisas históricas no marketplace da Binance. Aqueles que completarem as 13 camisas, tanto no formato 2D quanto no 3D, destravarão prêmios como, por exemplo, vídeo de agradecimento de jogador, camisa oficial autografada e gratuidade anual de plano Galo na Veia, nosso sócio-torcedor.

Camisa de 1971 na coleção de camisas históricas do Atlético em formato NFT

Colecionáveis digitais são legais, claro, têm valor também, mas se a eles estiverem atreladas experiências/produtos ou ao menos a chance de obtê-los, mesmo que não haja garantia, é muito mais fácil de se atrair consumidores dispostos a pagar por isso. Pense no caso do NBA Top Shot, por exemplo. Você compra um pack de momentos aleatórios, como em álbuns de figurinhas, e paga um mesmo valor por este pack, que pode vir tanto apenas com momentos comuns, como com algum muito escasso, que de cara já se valoriza no mercado secundário. Se estes momentos fossem associados a experiências envolvendo a liga, tenho certeza de que muito mais pessoas estariam propensas a participar, aumentando demais o número potencial de clientes. Imagine que você tire em seu pack um momento do LeBron James, que te proporciona a chance de ver uma partida do Lakers na primeira fileira ou bater uma bolinha com o cara durante alguns minutos? A noção de valor sobe de forma assustadora e não somente porque seria incrível vivenciar isso, como também porque o dono do momento pode simplesmente colocá-lo à venda sem utilizar esta experiência, o que o deixaria com um asset muito valioso em mãos.

Por conta disso, o futuro dos colecionáveis no esporte e no entretenimento necessariamente passa pela vinculação a experiências reais, que podem ser vividas. Claro, a parte gráfica dos NFTs seguirá sendo importante, quanto mais atraente melhor, porém o seu “recheio” será ainda mais. E a tecnologia que é a sua base continuará desempenhando seu papel de autenticar, rastrear, controlar revendas, garantir royalties…

Ingressos da Euro 2020 na blockchain

Venda de Ingressos

Se estamos falando de NFTs como passes para destravar experiências, não há nada mais próximo disso do que ingressos. Aqui, na minha visão, está o verdadeiro game changer. O setor de ticketing será totalmente modificado pela blockchain e a venda de ingressos em formato NFT se tornará ubíqua nos próximos anos. Faço esta previsão pois para mim fica claro o quanto as características da tecnologia beneficiam a venda de ingressos tanto para organizadores de eventos quanto para os clientes/torcedores. Vejamos:

. Autenticidade — é possível certificar a origem de todo ativo colocado na blockchain, ou seja, usar a tecnologia elimina completamente a possibilidade de falsificação de ingressos;

. Unicidade — cada NFT possui um ID único, ou seja, não há risco de termos duas pessoas com o mesmo ingresso;

. Rastreabilidade — além de identificar a origem, é possível rastrear todos os movimentos dos ingressos, saber exatamente quem está com os mesmos e, por isso, quem de fato irá ao evento, algo fundamental para o organizador;

. Programabilidade — na minha opinião, é o principal benefício. Os contratos inteligentes são linhas de código com as quais se pode programar como um NFT vai se comportar dependendo da situação. Neste caso, aliado a rastreabilidade, é possível programar para que cada vez que o ingresso for revendido, um percentual de comissão seja repassado ao organizador do evento. Não só isso, pode-se inclusive determinar o número de revendas que podem ser feitas (ou simplesmente proibir a revenda) ou ainda o valor máximo pelo qual o ingresso pode ser revendido. Basicamente o organizador toma para si o controle do mercado secundário, que atualmente é zero.

Existem alguns desafios e pontos importantes que precisam ser cobertos para que esta venda de ingressos em blockchain aconteça e ganhe escala. Alguns deles são:

. Interface simples para o usuário — para o cliente a experiência tem que ser exatamente igual a que ele está acostumado, ou seja, a blockchain precisa ser apenas a tecnologia por trás que viabiliza a infraestrutura da plataforma de ticketing. Não deve ser necessário conhecimento técnico algum sobre o universo cripto, senão limita-se demais a escalabilidade. Claro, o elemento mercado secundário, com a compra e venda de ingressos entre usuários, deve ser considerado e será necessária uma educação das pessoas para utilizá-lo, mas se o mesmo for simples, não será um problema;

. Uso de moeda fiduciária — é obrigatório que a plataforma aceite moeda fiduciária e meios de pagamento tradicionais, como cartões de crédito e débito, PIX e até boleto, se for o caso. Se a aplicação ficar limitada a carteiras cripto, como MetaMask, por exemplo, novamente a escalabilidade será prejudicada;

. Capacidade e custo — é necessário que a aplicação seja construída sobre uma blockchain com alta capacidade de transações por segundo e que tenha um baixo custo de emissão dos NFTs, para que a operação não seja inviabilizada. A rede Ethereum, por exemplo, se caracteriza por altas taxas de gás (veja mais aqui), o que adicionaria custos proibitivos aos ingressos.

A ideia de explorar blockchain na venda de ingressos, no entanto, não é nova. A UEFA, por exemplo, já usou a tecnologia em alguns eventos próprios, como as finais da Europa League e Champions League da temporada 2020/2021 e a Euro 2020, disputada este ano.

É possível ainda criar algo diferente e explorar a ideia dos prêmios aleatórios aqui também, como nos packs do NBA Top Shot que comentei anteriormente. Como o NFT é emitido somente no ato da compra, por que não, de forma aleatória, emitir ingressos com upgrades, como setores mais caros e bem localizados; produtos oficiais do clube; experiências, como visitar o vestiário antes da partida ou ir ao jogo com a delegação; comes e bebes no estádio…? Certamente seria mais um estímulo aos clientes, até porque a aleatoriedade cria um elemento surpresa, que atrai o ser humano. Quem não lembra dos picolés de antigamente, em que alguns vinham com prêmios escritos no palitinho? O amigo Álvaro Cotta, diretor de marketing do NBB, fez esta analogia que gostei bastante quando conversamos sobre o assunto recentemente.

Certificado de participação do US Open

Certificado de Participação

Além de vender ingressos em formato NFT, também é possível explorar um caminho contrário, emitindo NFTs exclusivos para quem comparecer ao evento, como uma espécie de certificado digital de participação. O US Open, por exemplo, explorou isto na edição deste ano, com as pessoas que compraram ingressos e foram ao torneio podendo resgatar seus tokens não-fungíveis depois.

Esse certificado pode funcionar de diversas maneiras, seja como uma simples lembrança digital do evento ou como um ativo que pode destravar outras experiências futuras. Por exemplo, pode-se pensar em um evento para sócio-torcedores que só pode ser atendido por pessoas que foram a um ou mais eventos anteriormente, e que para isso precisam apresentar seus certificados de participação em formato NFT para resgatar sua entrada. Ou ainda o lançamento de um uniforme especial de edição limitada que só pode ser comprado por quem comprou a versão do ano anterior.

Esses certificados em formato NFT podem ser criados tanto permitindo que as pessoas o comercializem no mercado secundário, como sendo intransferíveis, depende da estratégia do organizador.

Coleção de NFTs dinâmicos de LaMello Ball

Ingressos colecionáveis e NFTs dinâmicos criam business adjacente

Se temos ingressos e/ou certificados de participação em formato NFT, que são programáveis e rastreáveis, estamos dando nas mãos dos clientes ativos digitais, que podem ser comercializados pós-eventos, ou seja, criamos um novo business adjacente, onde organizadores e participantes podem continuar faturando perpetuamente com aquele evento.

Existe um outro elemento que, se adicionado, criaria ainda mais valor aos colecionáveis, chamado NFT dinâmico. NFTs dinâmicos são tokens que são atualizados, tanto na imagem quanto nos dados que carregam consigo. O jogador da NBA, LaMello Ball, por exemplo, lançou uma coleção dinâmica que se atualiza a cada feito que ele realiza na carreira. Quando a mesma foi lançada, Ball ainda não havia sido eleito o calouro do ano na Liga; depois que o prêmio foi confirmado, seu NFT ganhou um “badge” do prêmio, aumentando o valor do ativo.

Agora imagine a seguinte situação: você comprou ingresso para um jogo de futebol. Este ingresso está em formato NFT, ou seja, ele está em sua carteira e é um colecionável que você poderá guardar ou comercializar depois do evento. Porém, por ser dinâmico, após a partida ele é atualizado com o placar, estatísticas, fotos e vídeos do jogo, de ângulos exclusivos, que ninguém mais terá acesso. Conversando com o amigo Vini Gholmie, da iSportistics, surgiu a ideia de ir além e colocar câmeras em cada setor do estádio, captando imagens do ângulo de visão de quem estava lá. Se nesta partida, por exemplo, houver um lance raro, como um golaço ou uma atuação de gala, o potencial deste NFT explodir de valor é enorme, podendo fazer até com que a pessoa que pagou pelo ingresso e foi ao jogo, além de ter vivido a experiência, possa ter um belo lucro financeiro ao revendê-lo. Seria incrível, não?

Como você pôde ver, são inúmeras possibilidades mesmo quando o assunto é somente o uso de NFTs como chaves para destravar experiências. Nos próximos artigos trarei outras oportunidades que já estão ou podem começar a ser exploradas, mostrando que os NFTs estão muito além do hype e de serem algo supérfluo, a “brincadeira de milionários”, como já li e ouvi falarem. Vivemos tempos nos quais muita gente quer dar opinião sem ter o mínimo de base sobre o assunto, muitas vezes formadores de opinião, que acabam influenciando boa parte das pessoas. Sim, pode ser que as grandes vendas multimilionárias diminuam consideravelmente, que muita gente perca dinheiro com projetos que atualmente estão bombando, mas isto não desqualifica a tecnologia e sim quem a está usando errado. Cabe a nós, profissionais interessados e que estudam o assunto, entender cada vez mais todas estas possibilidades e começar a experimentá-las.

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Felipe Ribbe
Felipe Ribbe

Former Director Brazil at Socios.com and Head of Innovation at Clube Atlético Mineiro