Porque ingressos como NFTs serão uma disrupção na indústria de ticketing

Felipe Ribbe
Felipe Ribbe
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11 min readSep 2, 2022

Todo ano é assim: o final de temporada no futebol se aproxima, a demanda por ingressos aumenta exponencialmente e os cambistas fazem a festa. Não importa o clube, o estádio ou a cidade, a revenda de tickets por valores muito acima do preço original é um problema constante em partidas de grande procura, que parece impossível de ser solucionado, seja por ineficiência dos atuais sistemas de venda de entradas, seja por esquemas de benefícios pessoais envolvendo dirigentes, operadores de estádios e outros. Quem se prejudica sempre é o torcedor. Há, entretanto, uma tecnologia não só capaz de resolver esta questão, como eliminar a falsificação e, de quebra, criar novas fontes de receita: blockchain. A venda de ingressos como NFTs, apesar de ainda pouco difundida, já é uma realidade e neste artigo vou mostrar porque será um game changer na indústria de ticketing.

Antes de continuar, vale fazer um disclaimer: sou advisor de uma startup de venda de ingressos em blockchain, a NFT Ticket Pass. Porém, não se trata de um conteúdo para vender um serviço — inclusive porque existem outras empresas pelo mundo trabalhando em soluções como esta, de startups como a NTP a gigantes do meio — e sim uma constatação até que óbvia de que esta tecnologia se encaixa perfeitamente nas necessidades da indústria.

Conceitos básicos sobre a tecnologia blockchain

Se você já entende sobre o que é blockchain, NFT e suas principais características, pode passar à próxima seção do texto; esta parte é para quem ainda não tem este conhecimento. Não que para comprar um ingresso deste tipo seja necessário conhecer a tecnologia, nomenclaturas e afins, mas como este é um texto didático, pressuponho que seu interesse ao lê-lo é se aprofundar no assunto.

O que é Blockchain?

Blockchain, de forma bastante resumida, é uma tecnologia de rede distribuída e descentralizada capaz de rastrear o envio e o recebimento de informações. Cada atividade desta é uma transação; cada transação é agrupada em blocos (block) e colocada em uma corrente (chain) de blocos, daí o nome. Porém, o mais importante aqui é saber que uma blockchain é uma rede pública (transparente) e imutável (uma vez registrada a transação, não é possível modificá-la).

O que é um NFT?

É a sigla para non-fungible token ou token não-fungível; basicamente é um certificado de propriedade sobre um ativo 100% digital ou uma representação digital de um ativo físico, registrado em uma blockchain. Um NFT tem quatro características principais:

. Identidade única — cada NFT tem um token ID único, que o diferencia dos demais; mesmo que visualmente eles sejam iguais, o seu registro na blockchain será diferente, como irmãos gêmeos idênticos, que possuem um CPF cada;

. Autenticado — ao ser registrado em uma rede pública e imutável, é possível verificar a origem de emissão do token e confirmar se o mesmo é original ou não;

. Rastreável — pelo mesmo motivo acima, é possível rastrear todos os passos deste NFT, desde sua emissão a cada transação em que passa de carteira em carteira, de forma perpétua;

. Programável — é possível programar o comportamento de um NFT no momento de sua emissão dependendo da situação que ocorrer, usando o que se chama de contrato inteligente, que nada mais é do que linhas de código determinando este comportamento. Por exemplo, ao emitir um token, é possível programar o pagamento de royalties ao criador a cada revenda que acontecer.

Pronto, sabendo o básico, podemos prosseguir para o que interessa.

Transparência e controle sobre o mercado secundário

A venda de ingressos em geral, especialmente no futebol, enfrenta dois problemas principais: a falsificação e o cambismo. Até a final da Champions League, um dos maiores eventos do planeta, sofreu com isto em sua última edição ao vender tickets em papel. Porém, se lembrarmos das características supracitadas dos NFTs, veremos que são capazes de resolvê-los:

. Identidade única e autenticação — é possível verificar o número individual daquele ingresso bem como quem o emitiu e quando o fez, acabando com a falsificação;

. Rastreabilidade — ao ter acesso à origem e aos passos deste ingresso, é possível saber quem o emitiu, quem foi a primeira pessoa a comprar, quando comprou, quanto pagou, quantas revendas aconteceram, por quais valores… cada transação é gravada na blockchain de forma imutável e transparente. Então, por exemplo, se o João comprou, mas quem vai ao evento é a Maria, necessariamente João precisa transferir ou vender o ingresso para Maria poder entrar. Isto é importante não só em termos de segurança, mas também para entender o público que está indo ao estádio, uma vez que João e Maria são pessoas com gostos e preferências diferentes. Entender o seu público pessoalmente é fundamental;

. Programabilidade — aqui a grande disrupção, na minha visão. Ao poder rastrear todo o caminho de um NFT desde sua emissão, já é possível ter um controle sobre o mercado secundário (revendas) deste ingresso. Entretanto, lembre-se que os contratos inteligentes determinam o comportamento deste token, como em revendas. Ou seja, se uma pessoa compra um ingresso por 100 reais e decide revender por 200 reais, por exemplo, não só o dono do evento consegue saber disso no ato, como se tiver programado para receber royalties a cada revenda, tal percentual é automaticamente repassado ao organizador. É possível ainda determinar um preço máximo de revenda ou até bloquear tais revendas, algo extremamente útil em casos de gratuidades ou ingressos de patrocinadores. Tudo sem precisar de intervenção humana, só código. Logo, o produtor do evento, seja ele qual for, sempre poderá ser remunerado se alguém resolver vender o ingresso que comprou, diferentemente do que acontece hoje.

Somente por estes motivos, a venda de ingressos como NFTs já seria bastante benéfica. Mas há outras possibilidades.

Novas fontes de receita

Quem com mais de 30 anos nunca colecionou ingressos físicos? Isto é uma prática que se perdeu a partir do momento que os tickets se tornaram digitais, afinal, não há a menor graça em colecionar QR Codes. Aqui os tokens também trazem benefícios: por serem vinculados a imagens, estáticas ou animadas, ingressos como NFTs têm o potencial de se tornarem itens colecionáveis, criando novas fontes de receita para o organizador mesmo no pós-evento, uma vez que, dependendo do token, da imagem representada e de seu valor sentimental, haverá demanda para transações posteriores, sempre recolhendo royalties.

É possível, inclusive, aumentar ainda mais esta atratividade, atualizando os metadados vinculados aos tokens com informações e mídias relacionadas ao evento. Imagine, por exemplo, que um clube de futebol possa colocar câmeras em todos os setores do estádio, filmando o campo. Se você comprou um ingresso para o setor A, foi ao jogo e depois tem o NFT na carteira, aquele token pode ser atualizado com imagens exclusivas da partida filmadas com a visão de quem estava naquele setor, além de fotos, placar, estatísticas… Se acontece um lance antológico, como um gol ou uma jogada especial, o quanto o valor deste NFT não aumentaria sendo um colecionável escasso?

Há ainda outras muitas maneiras de se monetizar estes ingressos além do próprio evento:

. Pode-se gamificar estes ingressos colecionáveis, criando experiências e/ou benefícios para aqueles que conseguirem juntar uma certa quantidade de NFTs, como, por exemplo, todos os ingressos de um mês ou de um campeonato. Dependendo dos benefícios ofertados, muitas pessoas que não compareceram aos jogos teriam interesse de comprar estes tokens para poder resgatá-los, o que seria não só uma oportunidade para o torcedor que foi à partida poder fazer dinheiro como também do organizador do evento ganhar receita em cima disso — lembre-se, royalties atrelados ao contrato inteligente;

. NFTs, mais do que simples colecionáveis, representam uma ligação direta entre emissor do token e comprador, sem intermediários, o que cria uma ótima oportunidade de formação de comunidade e novos modelos de negócio, como venda de produtos exclusivos para quem possui determinados tokens, algo cada vez mais comum em projetos de web3;

. Conexão direta com uma novo modelo de sócio-torcedor, tokenizado, que chamo de cripto sócio-torcedor ou sócio-torcedor 3.0 (escrevi um texto sobre isto ano passado e outro sobre como programas de fidelidade serão revolucionados pela terceira geração da internet);

. Aluguel de NFTs; alguns novos padrões de token permitem a locação de tokens não-fungíveis, ou seja, o dono do NFT pode determinar um período em que aquele token sairá de sua carteira para uma outra carteira e receber por isso sem precisar vender de forma definitiva. Em casos de season tickets, por exemplo, isto funcionaria muito bem: imagine que eu tenha um NFT representando ingressos para todos os jogos do meu time na temporada, mas eventualmente não possa comparecer a algum ou queira simplesmente revender. Eu posso determinar que, ao receber uma quantia estipulada em minha carteira até certa data e horário, este NFT sairá de minha carteira, ficará o dia da partida na carteira da pessoa que me pagou e, quando tudo terminar, automaticamente este token retornará. Incrível, não?

Case Milton Nascimento

O primeiro evento no Brasil 100% com ingressos como NFTs foi realizado em junho deste ano pela NFT Ticket Pass, o show de abertura da última turnê da carreira de Milton Nascimento, no Rio de Janeiro. Foram 400 tokens colocados à venda, cada um dando direito a duas entradas no evento, que tinha um túnel de 25 metros na entrada com imagens da carreira do artista; um coquetel para os presentes; e um kit com produtos oficiais, incluindo um poster da turnê autografado. Além disso, a imagem atrelada ao NFT era um desenho feito por Milton ainda quando criança, animado pela produtora do Mundo Bita, ou seja, um item colecionável de alto valor sentimental.

Foi um grande sucesso. Cada NFT foi vendido a R$1.200,00, com todos esgotados em cerca de 40 horas. Pessoas de todas as idades compraram, em uma experiência facilitada pela permissão do pagamento via PIX; após a compra, elas só precisavam fazer um check-in no próprio site para fornecer nome e documento, ativando o ingresso e liberando sua entrada. Mais do que isso, houve vendas no mercado secundário de quase R$5.000,00, com 15% do valor (royalties determinados via contrato inteligente) sendo repassados para a produção do evento. E para provar a importância do colecionável, três semanas após o evento houve revenda de dois tokens, por 100 dólares cada um, também gerando receita adicional para os organizadores.

Como seria a experiência ideal

Primeiro, é importante falar novamente que para um cliente comprar um ingresso como NFT ele não precisa entender nada de blockchain. Aliás, ele nem precisa saber que aquele ingresso é um token não-fungível se não quiser. Do mesmo jeito que quando mandamos um email não sabemos como funciona o protocolo SMTP e não nos importamos com isso, só queremos que nossa mensagem chegue a alguém, quem está comprando um ingresso o faz para ir a algum evento e pronto. A tecnologia é apenas o meio, o que interessa é o que ela entrega e por isso a experiência do usuário precisa ser a melhor e mais próxima possível do que ele está acostumado, mas com todos os benefícios que a blockchain traz.

Por isso, a experiência ideal, para mim, seria o cliente baixar um aplicativo de uma empresa de venda de ingressos, de um estádio ou de um clube em seu smartphone. Ao criar sua conta com seus dados (nome, email, CPF, telefone…), automaticamente uma carteira seria aberta, custodiada pela plataforma. Um menu com todos os eventos disponíveis para venda apareceria para o cliente escolher; ao fazê-lo, uma página própria do evento abriria, contendo informações do mesmo e as categorias de ingressos disponíveis, com o valor. Ao escolher o setor, o cliente seria encaminhado para a tela de pagamento, podendo optar por cartões de crédito e débito, além de PIX. Eventualmente até criptomoedas, caso assim o organizador do evento deseje. Uma vez efetuada a compra, o token seria emitido e colocado na carteira.

Com o token adquirido, o cliente teria duas opções: ativar o ingresso ou listar o token para revenda no marketplace do aplicativo. Caso opte pelo primeiro, seu token geraria um QR Code, vinculado à carteira, que seria usado para passar nas catracas com o próprio smartphone; neste caso, o token ficaria bloqueado para revenda até após o evento ocorrer. Caso queira revender, o cliente teria que acessar o marketplace do aplicativo e listar o token, determinando o preço de revenda; interessados em comprar teriam que abrir uma conta no app para poder procurar as opções no marketplace e efetuar a transação. Ao fazê-lo, o dinheiro seria transferido para a carteira do primeiro dono, com os royalties sendo automaticamente direcionados ao organizador do evento, e o token seria transferido para o comprador. Haveria ainda a opção de transferência simples entre carteiras (de amigo para amigo, por exemplo); neste caso, o organizador poderia tanto permitir sem custos quanto cobrar uma taxa por isso. Pessoas com direito a gratuidades ou patrocinadores também precisariam baixar e criar uma conta no aplicativo para poderem receber seus ingressos em suas carteiras, mas neste caso os mesmos seriam intransferíveis.

Ao vincular ingressos a uma carteira atrelada a um smartphone, necessariamente qualquer transferência de tokens, tendo ou não uma transação financeira envolvida, se daria via carteiras, o que acabaria com os cambistas, já que a única maneira de burlar isto seria dando o aparelho para uma outra pessoa conseguir entrar no evento.

Todos os passos narrados acima seriam feitos em um ambiente fechado, mas seria possível pensar ainda na possibilidade de se liberar a transferência de tokens para carteiras fora do aplicativo, permitindo a listagem destes NFTs em outros marketplaces, como Opensea, por exemplo. Porém, para ativar o ingresso e gerar o QR Code seria obrigatório estar com este token na carteira do app por uma questão de controle.

Desafios

Apesar da visão descrita acima, há ainda desafios quando falamos de qualquer aplicação de web3. O primeiro é justamente a usabilidade; por ser algo muito novo, é raro encontrar uma experiência do usuário realmente amigável. Geralmente ainda se faz necessário o uso de carteiras não-custodiadas, como Metamask, que não são das mais simples para uma pessoa “normal” entender como funciona. Há, entretanto, uma série de iniciativas focadas em resolver isto, portanto não acredito que vai demorar muito até este problema ser solucionado.

Um outro desafio é o custo para desenvolver aplicações em blockchain; por não ser fácil encontrar especialistas nesta programação, os poucos que existem costumam cobrar caro por hora de desenvolvimento, o que acaba muitas vezes inviabilizando projetos, atrasando-os ou transformando-os em muito simples.

A baixa capacidade de transações por segundo de blockchains confiáveis também é um problema; se hoje é normal sistemas caírem quando há picos de acesso em eventos muito concorridos, imagine o que aconteceria em caso de milhares de transações por segundo sobre uma blockchain. Isto, no entanto, é algo que está sendo bastante trabalhado no meio e já existem redes que, pelo menos na teoria, prometem uma capacidade muito maior. Falta testá-las na prática.

Inevitável

Você pode me achar enviesado por estar diretamente envolvido em uma iniciativa, mas para mim é difícil refutar os fatos expostos ao longo deste artigo. Existe uma grande cobrança atualmente para que haja aplicações de blockchain realmente úteis e enxergo a venda de ingressos como uma das mais claras. Ouso dizer que entre três e cinco anos, todas as maiores empresas de ticketing estarão utilizando a tecnologia. Várias delas já começaram a experimentar, tem algumas startups surgindo pelo mundo e muitas pessoas comentando sobre esta possibilidade por aí. Mas não se engane: não é somente mintar um NFT e falar que ele é um ingresso. Isso é fácil e qualquer um consegue fazer. O killer app será aquele que conseguir desenvolver uma plataforma com todas as funcionalidades e características que as pessoas estão acostumadas a encontrar quando compram ingressos online, mas com todos os benefícios que a tecnologia blockchain traz. Não vai demorar muito, pode anotar.

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Felipe Ribbe
Felipe Ribbe

Former Director Brazil at Socios.com and Head of Innovation at Clube Atlético Mineiro