Novo hit de Taylor Swift aborda transtornos alimentares e coloca a saúde mental no radar da música pop

“Anti-Hero” narra a autodepreciação longe do clichê da luta contra a balança. Atualmente, estima-se que mais de 70 milhões de pessoas no mundo sofram com algum transtorno alimentar.

Marcelo Monteiro
Reportagem Multiplataforma
10 min readDec 1, 2022

--

Reportagem de Andressa Deuner, Emily Ebert e Marcelo Monteiro

No clipe de "Anti-Hero", Taylor se depara com uma "versão perfeita de si", que faz aumentar ainda mais as inseguranças (Reprodução)

A busca incessante pela imagem perfeita, agravada pelas pressões estéticas sobre o corpo — em especial o feminino — , podem acabar desencadeando uma série de distúrbios de imagem que rapidamente podem se desenvolver para transtornos alimentares graves. Segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria, 70 milhões de pessoas no mundo sofrem com algum desses transtornos. Só no Brasil, a anorexia e bulimia chegam a atingir cerca de 10% dos jovens, de acordo com a Organização Mundial da Saúde.

Muito embora os transtornos alimentares sejam considerados doenças psicológicas de causas multifatoriais e complexas, a influência da grande mídia, das indústrias que trabalham com a imagem (como moda e cosmética) e principalmente das redes sociais no comportamento humano é inegável.

Ao passo que se passou a inserir no debate os impactos psicológicos negativos da construção de uma “imagem perfeita”, assim como da quase exigência midiática por um padrão estético, artistas e influenciadores também contam suas histórias e usam suas vozes como uma forma de conscientização — e desconstrução. Em detrimento do que ainda é visto em muitos comerciais de TV e nas mídias digitais, a música pop tem se tornado um importante palco nessa discussão.

Há oito anos, Beyoncé, uma das artistas de maior alcance mundial, refletiu acerca da toxicidade do universo das competições de beleza no single “Pretty Hurts”, que se tornou um hino às imperfeições que tornam cada mulher perfeita. O trecho “perfeição é a doença da nação” revela como os padrões inatingíveis corrompem a sociedade num todo. Em 2015, Alessia Cara falou sobre a importância da auto aceitação em “Scars to Your Beautiful”. Dirigindo-se diretamente às mulheres, a cantora exalta que beleza está além do que se vê na superfície.

Recentemente, Taylor Swift trouxe o assunto à tona com o single “Anti-Hero”, que tomou conta das principais paradas musicais do mundo. A letra revela uma percepção auto depreciativa de um dos maiores nomes da música, entrando em detalhes minuciosos sobre o que sente que são seus fracassos pessoais e o que ela odeia em si mesma. “Eu olho direto para o sol, mas nunca para o espelho/Às vezes, eu sinto que todo mundo é jovem e atraente, e eu sou um monstro na montanha”, canta Taylor.

As reações a "Anti-Hero", a percepção dos fãs sobre o single e a relação da cantora com a anorexia são temas de um podcast. Os fãs Lise Aquino, administradora do Update Swift Brasil, e Matheus Humberto Ferreira, psicólogo, são os convidados do programa. Ouça:

As inseguranças de Taylor Swift para muito além de “Anti-Hero”

Uma menina loira por volta de seus onze anos está em seu quarto tentando voltar a navegar na internet, porém não consegue. Ela então decide chamar um técnico em informática para saber o que havia de errado com seu computador. Após uma olhada aqui, uma configuração lá, o técnico avista um violão escorado em um canto do quarto. Ele então decide ensinar três acordes simples para a garota, o que a inspirou a escrever uma canção chamada “Lucky You’’. O que nenhum deles imaginava é que aquele simples gesto a tornaria uma das maiores cantoras da década.

Taylor Alison Swift nasceu no dia 13 de dezembro de 1989 em West Reading, Pensilvânia. Filha de Scott e Andrea Swift, Taylor sempre teve o gênero artístico em seu sangue, já que a sua avó materna, Marjorie Finlay, era uma cantora de ópera famosa nos Estados Unidos.

Sempre com o apoio dos pais, aos 14 anos assinou um primeiro contrato, que a permitiu ir para a cidade de seus sonhos: Nashville, no Tennessee, berço da música country nos Estados Unidos. O primeiro single da cantora, “Tim McGraw”, foi lançado em 2006 pela gravadora Big Machine Records, e seu álbum de estreia autointitulado saiu no mesmo ano. Vendo a sua carreira ascender de forma relâmpago, Taylor começou a ganhar cada vez mais fama por todo o país. Foi então que o seu dilema com a balança começou.

Primeiro, os comentários vindos da mídia e de pessoas do mundo inteiro debochavam e sobre o seu corpo magro e seu 1,80m de altura. Sua primeira vez em uma capa de revista teve como destaque o seu corpo. A manchete gritava “Grávida aos 18”, junto de uma foto, em que devido a roupa, sua barriga não parecia estar reto.

Taylor Swift costuma ser alvo de comentários que sugerem que ela não tenha uma postura ereta. A cantora tem 1,80m de altura. (Divulgação)

Em uma entrevista à revista Marie Claire, Taylor desabafa. “Acabei registrando isso como um castigo. E meu relacionamento com a comida passou a ser igual ao que eu aplicava a todo o resto da minha vida. Se eu recebesse um tapinha nas costas, eu registrava isso como bom. Se eu recebesse uma punição, registrava isso como ruim”, diz.

Em 2016, Swift viu a sua carreira estourar após o lançamento do álbum 1989. Com estética dos anos 90, a cantora abusou das minis saias e croppeds. Foi quando ela parou de se alimentar e devido ao desgaste dos shows de uma extensa turnê, ela sentia-se cansada a ponto de desmaiar a qualquer momento. “Eu tenho a tendência de me sentir atingida quando vejo uma foto minha onde onde eu sinto que minha barriga parece muito grande ou quando alguém fala que eu pareço grávida. E isso me atingia de uma forma que eu apenas parava de comer”, conta Taylor em seu documentário Miss Americana (2020), disponível na Netflix.

Hoje, ela diz que não pensa mais dessa forma sobre o assunto, mas que ainda não gosta de ver fotos de seu corpo. “Hoje eu sei que se você comer, ter energia e ficar forte, essa sensação de estar doente passa. Eu estou muito mais feliz com quem sou hoje e não ligo se alguém me falar que ganhei peso. Isto torna a minha vida melhor”, desabafa.

“Sempre haverá algum padrão de beleza que você não conseguirá atingir. Porque se você for magra o suficiente, então você não tem a bunda que todos querem. Mas se você tem uma bunda grande, a sua barriga não é trincada o suficiente. É tudo apenas impossível”, disse a cantora.

Os transtornos alimentares na emergência: quando o mental extrapola os limites do corpo

A anorexia e a bulimia são alguns dos transtornos alimentares que atingem de forma mais comum a população de adolescentes e jovens adultos, de acordo com o médico internista e nefrologista do Hospital São Pedro, Robert Shmulerg. Ele afirma ainda que essas doenças atingem, em sua maioria, a população feminina — a taxa é de 10 para 1 em comparação com os homens.

Shmulerg é responsável pela avaliação clínica dos pacientes, encaminhados pelo setor psiquiátrico ao ser analisada a possível presença de algum transtorno de origem psicológica. Ele conta que, normalmente, quando o paciente chega ao hospital, está em processo de negação da doença.

“Quando vou fazer uma avaliação clínica, os pais normalmente estão juntos e tem uma história, muitas vezes negada, de que esteja com qualquer problema de disfunção alimentar, até porque ele se caracteriza por uma alteração da visão corporal e de mundo”, relata o médico. “Mas o que acontece é que os pais relatam que existe uma sequência de diminuição de ingesta alimentar, associada a uma deformação da imagem corporal”, adiciona.

O médico ainda ressalta que pacientes em casos agravados de transtornos alimentares apresentam sintomas evidentes como desidratação intensa, pele com aspecto seco e cabelos finos. Ao realizar os exames padrões, como a aferição de pressão, por exemplo, os resultados passam longe do que seria considerado saudável.

“Eu já tive que internar pacientes porque junto com o achado do exame físico, o exame laboratorial também tinha uma série de alterações”, explica Shmulerg. “A creatinina fica mais alta com a diminuição de músculos, assim como a ureia, e isso mostra um estado de desidratação muito grande. Perda de potássio, fósforo, arritmia cardíaca. Nos casos mais graves existe um risco de morte real. É uma doença complexa, que põe em risco a vida da pessoa”, alerta o médico.

(Annie Spratt/Unsplash)

O papel da família: observar e acolher

Na batalha para superar qualquer doença, ter uma rede substancial de apoio é fundamental. Para Shmulerg, se a família não ficar ao lado do paciente na luta pela recuperação, as chances de sucesso de qualquer tratamento diminuem significativamente.

Para o médico, é necessário que se tente ao máximo acolher esse paciente, além de transmitir a ele uma sensação de compreensão. “Porque é uma doença que tira da pessoa o julgamento crítico, e entrar em confronto não traz nenhum benefício para o paciente e para o sucesso terapêutico”, complementa.

Atualmente, com os avanços científicos e o entendimento da importância da saúde mental, a comunidade médica entende que o “padrão ouro” dos tratamentos para as doenças de transtorno alimentar é o acompanhamento psicológico atrelado à terapia familiar. “Você tem que ter estratégias com o paciente e a família, porque esse tipo de doença causa um desgaste muito grande no ambiente familiar também”, conclui Shmulerg.

Entre o estigma e a negação: diagnósticos esbarram na falta de informação e apoio familiar

Aos 23 anos, o ódio de Fabrício* pelo próprio corpo chegou ao limite. De frente para o espelho, se sentia um verdadeiro problema. Era como se todos os esforços fossem insuficientes: ele não enxergava qualquer coisa senão defeitos.

Sem ter encontrado informação sobre o que estava acontecendo, além de não ter contado com o apoio da família, o jovem recorreu à internet. Hoje, aos 27, busca nas redes sociais uma plataforma para tentar ajudar quem enfrenta a mesma situação. Nos destaques do seu perfil no Instagram, que conta com 20 mil seguidores, Fabrício* mantém armazenada uma série de conteúdos sobre as questões que fazem parte de si: não-binariedade, bissexualidade, autismo — e bulimia.

“Passei por tanta coisa para tentar ter um corpo padrão. Ler sobre e seguir páginas de aceitação me ajudou muito a sair dessa”, conta. Em busca de conhecimento, e com apoio do tempo, percebeu que não se pode reduzir um transtorno a apenas algo físico ou sobre beleza. E cansado de ver esse cenário se repetindo tantas vezes, passou a usar do seu espaço.

Agora, ele publica que corpo ideal é aquele com “mente que revoluciona, coração que ama, mãos que fazem carinho e pernas que seguem seu caminho sem se importar com a opinião alheia”, além de lembrar da importância do autoconhecimento, da meditação e da terapia para a saúde mental.

Foi justamente isso que apontou uma nova direção para o jovem. “É muito importante para mim manter um caminho de exercícios diários para manter minha mente bem e em paz”, explica.

(Camila Quintero Franco/Unsplash)

“Era uma guerra muito grande comigo”

Para Bianca, a bulimia e a anorexia apareceram pela primeira vez ainda mais cedo. Aos 14 anos, ela ainda não entendia muito bem que sua relação com a alimentação era causada por uma doença. “Começou com a insegurança com o meu corpo e foi tomando outras proporções”, explica a estudante de Salvador, hoje com 22.

Em casa, o discurso dos pais, de que tudo estava bem porque ela parecia magra, colaborou para negligenciar a situação — e a esconder um problema sério. Por essa influência, tomava “shakes” e chegou a fazer jejum intermitente, mas não via qualquer sinal de mudança, mesmo indo à academia e fazendo exercícios. “O problema era se eu estivesse gorda, enquanto eu estivesse magra, era como se não tivesse doença”, relata.

A complexidade ficou evidente quando o caso evoluiu para uma forte gastrite. À época, Bianca não se sentiu confortável para relatar à médica o que levou ao aparecimento da doença. As dores no intestino que a perseguiam pareciam ser menores do que todas as inseguranças, inclusive de mostrar para o mundo o que enfrentava. “Eu entendi que o que eu estava fazendo fazia mal para o meu corpo, mas não que eu estava desenvolvendo um distúrbio de autoimagem”, adiciona.

Foi só alguns anos depois, quando começou a fazer sessões de psicoterapia, que Bianca começou a ter consciência da sua real situação. Incentivada por um amigo, com quem se sentiu tranquila para relatar o que acontecia pela primeira vez, levou o caso para o seu psicólogo. À medida em que contava sua história e se deparava com fotos do passado, surgiam algumas dúvidas: ela estava mais magra, mas não via a si mesmo dessa forma. “Por que eu não me enxergava assim?”, ela se perguntava. “Era uma guerra muito grande comigo”, desabafa.

“Falar tem ajudado”

O acompanhamento psicológico tem um papel fundamental no tratamento de transtornos alimentares. Estudos recentes indicam que a terapia cognitivo-comportamental se mostra eficaz na redução de sintomas e episódios. Esse método procura compreender como o ser humano interpreta os acontecimentos e como eles o afetam, de forma que se possa analisar as atitudes do paciente para transformar reações automáticas em decisões conscientes.

Mas essa ainda não é a realidade para muita gente. Uma pesquisa realizada no Núcleo de Atenção aos Transtornos Alimentares da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) aponta que pessoas com bulimia nervosa só procuram atendimento 10 anos depois do aparecimento de alguns sinais. Entre os motivos para isso estão a crença equivocada de que é algo momentâneo, capaz de ser superado sozinho, quando não o próprio preconceito e os estigmas que cercam esse tipo de doença — e o que envolve a saúde mental num todo.

Falar com um psicólogo fez com que Bianca conseguisse olhar para trás sem medo. “Fazendo terapia e olhando para o meu passado, vi que aquilo não tinha sido uma fase”, explica.

Tão importante quanto encarar o passado é mirar um futuro que trate os transtornos alimentares com a seriedade que o assunto pede. Para Bianca, isso começa com apontar menos adjetivos para os corpos das pessoas e, principalmente, desmistificar a ideia de que a magreza por si só é saudável. “Esses estigmas sociais são muito complexos e levam a gente a adoecer. Temos que repensar o que falamos e ter consciência. Cuidar do outro e da gente”, conclui.

* O nome foi alterado para preservar a identidade do entrevistado

--

--

Marcelo Monteiro
Reportagem Multiplataforma

Jornalista, com trabalhos em Eixo Político, Tracklist, Jornal NH e finalista do Prêmio ARI/Banrisul 2022