Saúde mental no trabalho: um desafio moderno
O acúmulo de responsabilidades, a competitividade, o excesso de pressões e cobranças no mercado de trabalho e o crescimento de doutrinas neoliberais na América Latina estão entre as principais causas deste fenômeno contemporâneo.
Reportagem de Cainã Oliveira, Gabriel Winter, Henrique Carlo e Juliano Dorneles
Transtornos mentais como ansiedade e depressão estão entre as principais doenças relacionadas ao trabalho nos dias de hoje. De acordo com o sociólogo e antropólogo, João Vitor Campos, isso acontece devido a diversos fatores ligados à exploração de classe, característica basilar em uma sociedade capitalista. “O alastramento do neoliberalismo, com suas medidas de flexibilização dos direitos trabalhistas, deterioram as condições de trabalho e impõe jornadas extenuantes. A mínima intervenção do Estado, pregado por essa doutrina socioeconômica é uma das principais responsáveis pelo quadro de transtornos mentais em massa na classe trabalhadora”, relata o sociólogo.
“A temática de saúde mental no trabalho deve ser analisada em uma ótica a partir da exploração capitalista do proletariado. Associar a saúde mental apenas a fatores biológicos implica em excluir o caráter histórico e social desse problema. Ou seja, qualquer observação desse assunto deve ser articulada às contradições da sociedade capitalista” conclui o especialista”
Os números são assustadores, apenas em 2021, segundo a Previdência Social, mais de 75 mil brasileiros foram afastados do ambiente profissional devido a presença de quadros de depressão. Ao todo, cerca de 37,8% dos afastamentos são por conta deste problema. Além disso, em setembro deste ano, o Brasil atingiu a marca de 9,7 milhões de pessoas desempregadas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Veja no infográfico a seguir alguns dos dados mais relevantes sobre a saúde mental no trabalho.
Segundo o Ministério da saúde, a depressão é um distúrbio afetivo presente na história da humanidade. No sentido patológico, o distúrbio apresenta tristeza, pessimismo, baixa autoestima, de forma frequente e que podem combinar-se entre si.
A depressão é causada por alterações químicas no cérebro da pessoa afetada, em relação aos neurotransmissores, que são apenas substâncias que espalham impulsos nervosos entre as células do corpo, causando sentimentos e reações. É importante alertar que o estresse pode ser um dos gatilhos que despertam a depressão em pessoas com predisposição, que pode ser genética. Justamente uma das reações mais comuns dentro do ambiente de trabalho.
Saúde mental no trabalho ainda é um tabu
Contudo, é importante salientar que em um ambiente de trabalho, é normal que haja frustrações e estresse. De acordo com a psicóloga organizacional e neuropsicóloga, Bárbara de Souza, o trabalho pode trazer benefícios, dentre eles a realização pessoal, profissional, além do desenvolvimento das habilidades. No entanto, ela diz que o problema está no excesso das tensões originadas no trabalho. “ É neste cenário de pressão e estresse constante que torna-se crucial uma atenção maior voltada à saúde mental do trabalhador” relata a especialista.
Para ela, uma das questões que impedem abordar esse assunto com transparência é que ele ainda é visto como um tabu em nossa sociedade. “Não são raras as vezes que a depressão e outros distúrbios psicológicos são tratados como frescura ou sentimentalismo”. Ela ainda acrescenta que esse tipo de discurso cria um ciclo de pessoas incapazes de manifestar o que sentem por temerem a discriminação dos colegas de trabalho e até da própria família.
A psicóloga relata que é muito importante romper com esse tabu para que as irregularidades da mente humana sejam encaradas com normalidade.
“Tratar sobre a saúde mental deveria ser tão comum quanto abordar qualquer problema como dor nas costas ou indisposição física, por exemplo”, diz Bárbara Souza. Para a especialista é fundamental que as empresas busquem soluções e procurem estratégias direcionadas à prevenção de doenças psíquicas.
Relatos do cotidiano no trabalho
Para Jéssica Caroline, de 26 anos e ex-operadora de caixa, a função praticada por quase três anos gerou inúmeros problemas psicológicos em sua vida. Segundo ela, a exploração por parte da rede de supermercados e a falta de apoio de colegas contribuíram para que carregasse traumas, até hoje. “No início já não foi fácil pra mim. Era uma função nova, exigia muita atenção com o dinheiro. Agilidade para atender rápido. Logo na primeira semana uma colega comentou comigo que escutou comentários de que eu não servia para o trabalho”, conta. Ela lembra que, ao longo do tempo, novos problemas foram aparecendo e a falta de empatia e preparo por parte dos responsáveis afetaram o desempenho no cargo. “Tinha uma encarregada de frente de caixa que nos humilhava, se perguntassem algo para ela que não lembramos, ou que não sabíamos, gritava que éramos burros”, lembra Jéssica. Ela lembra ainda que ficou 14 dias sem folgas.
Com o passar do tempo, os problemas na saúde mental começaram a aparecer e a obrigação de trabalhar virou uma tortura no dia a dia. “Eram várias situações de constrangimento e tristezas que foram tomando conta de mim. Odiava aquele lugar. Chegava em casa chorando e sonhava todas as noites que estava lá”, lamenta a ex-operadora. “No entanto, precisava do emprego e precisava levantar, mesmo desanimada”, afirmou.
Com sintomas de tristeza, Jéssica consultou um psiquiatra, que deu três dias de atestado. Durante esse período, ela decidiu que não voltaria mais para aquele local. “Hoje em dia não me vejo mais trabalhando em um supermercado e muito menos passando por tudo isso novamente. Não consegui me estabilizar em nenhum emprego e não consigo entrar no supermercado que trabalhei”, revela Jéssica.
Bancários — Apesar de uma boa qualidade de vida, com salários altos comparados a maioria dos empregos tradicionais, e atuando de segunda à sexta-feira, os bancários estão na lista de profissões que mais sofrem psicologicamente. O ex-funcionário de um banco público, que preferiu não se identificar. Entre os acontecimentos, está um trauma de um assalto à mão armada. O ex-bancário lembra que os bandidos colocaram uma arma na cabeça dele e ameaçaram efetuar disparos, caso errasse a senha para a abertura dos cofres.
Outra profissional que sofreu traumas psicológicos a ponto de colocar a empresa na justiça foi uma funcionária de uma empresa de farmácias em Sapucaia do Sul. A mulher negra, que trabalhava como operadora de caixa, e que preferiu não se identificar, colocou a empresa na Justiça por racismo. Ela conta que sua chefe na época mandou ela limpar uma prateleira da loja com o cabelo. Também foi vítima de outros ataques, como uma transferência não desejada e, segundo ela, submetida a demandas que não estavam na sua atuação de trabalho, como recolher o dinheiro de outras lojas da empresa na cidade.
Desde o início da pandemia de Covid-19, profissionais da saúde em geral são os que mais sofrem com as condições de serviço e baixa qualidade de vida. Abaixo você pode ver os relatos de quatro técnicas em enfermagem, uma enfermeira e uma médica que trabalham no Centro Médico Capilé, centro de saúde da prefeitura de São Leopoldo:
Benefícios ao investir na saúde mental no trabalho
Segundo a OMS, transtornos ligados à ansiedade e à depressão custam cerca de 1 trilhão de dólares por ano em perda de produtividade. A especialista Barbara de Souza relatou que as empresas que dão a devida importância para a saúde mental dos colaboradores têm muitas vantagens em relação àquelas que ainda não investem nessa questão.
“Um dos primeiros benefícios que podem ser observados ao investir na saúde mental dos membros de uma empresa é a redução do absenteísmo. Além disso, quando o clima e o acolhimento de uma organização melhora, a autoestima e a produtividade do colaborador também são impactadas positivamente. Sentir-se bem na empresa e perceber que a sua saúde é essencial para o bom funcionamento do ambiente de trabalho traz segurança e satisfação aos colaboradores, aumentando o engajamento e a retenção de talentos” acrescentou a psicóloga.
Segundo a especialista, o primeiro passo é treinar a liderança para aprimorar as relações pessoais, com o objetivo de promover iniciativas que reduzem o estresse e os conflitos pessoais no trabalho “Momentos de descontração, intervalos maiores e mudanças estruturais no ambiente de trabalho, como uma sala de lazer, podem trazer benefícios significativos à saúde mental dos membros de uma empresa.”
O professor de psicologia da Ulbra e especialista em avaliação psicológica, Valmir Dorn Vasconcelos, falou sobre o conceito de saúde mental no trabalho e outras questões relacionadas a esse tema. Ouça no podcast a seguir.