Como o streaming está mudando o mercado musical

Rafaela Hermes
AGEX
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8 min readApr 19, 2018

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Montagem: Rafaela Hermes

Nunca foi tão fácil consumir música gratuitamente. O acesso a qualquer artista e gênero musical é praticamente ilimitado, seja pelo YouTube (quem nunca recebeu uma recomendação nada a ver com o seu estilo musical e acabou adorando?) ou pelo Spotify, com as playlists associadas a sentimentos, humor ou atividades diárias. Porém, toda essa mudança na forma de escutar música também alterou o modo como convivemos. Assim como afetou — e está afetando — a indústria musical.

De acordo com o estudo Power of Music, feito pelo Spotify, o streaming traz várias mudanças no comportamento social. A música se torna um recurso básico, já que a internet a torna mais acessível e a um preço baixo. Também tornou-se mais barato e simples experimentar novas músicas, estilos e artistas com a possibilidade de escolher playlists referentes ao humor do ouvinte, fazendo as pessoas mais flexíveis em relação aos diferentes gêneros musicais; com esse recurso, a intimidade é compartilhada de uma forma diferente das outras redes sociais, pois as músicas expressam os sentimentos daquele momento. Ademais, com a interação entre os usuários, é possível expandir infinitamente sua playlist.

Gráfico traduzido e adaptado do Music Consumer Insight Report de 2017. Fonte: IFPI

Segundo o IFPI (Federação Internacional da Indústria Fonográfica), em 2017, 96% do usuários de internet consumiram música licenciada (incluindo audio streaming, video streaming, compra física, downloads digitais e rádio), e 98% dos consumidores eram os jovens, entre 16 e 24 anos. Além disso, 45% usaram audio streaming licenciado, como o Spotify, para consumir música, e este número tende a aumentar nos próximos anos, já que esse serviço está se popularizando cada vez mais. O Brasil está em terceiro lugar no ranking dos países que mais usam esse serviço.

Alexandre Castellano, gerente da Multisom do ParkShopping Canoas, e que trabalha há muitos anos na empresa, conta como a venda de CD e DVD caiu com o streaming. “É uma tendência cada vez maior procurar não só música, mas serviços e produtos online”, diz. “O mercado de CDs está morrendo. Já está muito parecido com o do vinil. É só para aquela público que realmente gosta de pegar a mídia na mão, olhar um encarte. Só o fã, o colecionador mesmo, para comprar.” Castellano percebe que quem ainda compra CDs são crianças e adultos de meia idade para cima. Os jovens apenas compram a mídia física se for colecionar ou para dar de presente a um amigo que pediu. “Algumas pessoas ainda vêm a loja pesquisar CDs, em vez de comprar pelo site. Apesar desta loja específica não ter setor fonográfico, todos os dias vem alguém procurar CD e DVD”, afirma.

“Não tem como, num espaço físico caro como o de shopping, manter um espaço muito grande de um tipo de produto que vende apenas uma ou duas peças por dia. Quando entrei na empresa, o fonográfico, como CD e DVD, representava 75% do faturamento desta. Atualmente, não chega a 5%.”, explica Castellano. “Quem começou com o CD, como a Multisom, teve de se adaptar ao mercado. Hoje, a loja vende instrumentos musicais, eletrônicos, acessórios. A venda de celulares cresceu muito. É um tiro no pé. A pessoa que compra o celular consome música online, através de aplicativos, e aí não compra o CD.” Ele também diz que a indústria musical é a mais afetada com essa mudança. As gravadoras e artistas precisavam desta mídia física para se sustentar, mas com o digital, a procura por esse produto é mínima.

O streaming é um bom companheiro

Rodrigo Brandão e Geraldo Oliveira são DJs, colecionadores de discos de vinil e apresentadores do programa Grave & Groove na Unisinos FM. Rodrigo é jornalista e radialista. Geraldo é publicitário, designer e pesquisador musical. O programa surgiu primeiramente na plataforma Mixcloud, onde postavam — e continuam postando — episódios de uma a duas horas. Com o streaming, o público ouve e interage com o seu material. Até 2017, o programa era veiculado na rádio da Universidade Federal de São Paulo, em Santos. No mesmo ano, começaram a transmitir na sua atual plataforma, a Unisinos FM, por rádio, web e aplicativo. Este ano, eles criaram uma conta no Spotify, ampliando seu trabalho com a tutoria musical para diversas marcas e construindo uma identidade de música e imagem através de playlists personalizadas para os clientes e eventos.

Reprodução: Facebook/Grave & Groove

“Cada vez mais as pessoas têm acompanhado os trabalhos do Grave & Groove por meio das plataformas de streaming e redes sociais, que têm sido primordiais para divulgarmos nossas discotecagens, playlists, ações e demais trabalhos”, explicam. “Através destas ferramentas, ampliamos nossa conectividade com artistas, grupos, projetos e demais formadores e consumidores de conteúdo. A música, nosso principal material de trabalho, seja ela em diferentes formatos que disponibilizamos, acaba criando pontes interessantes com diversos públicos que conhecem o nosso trabalho e se conectam com ele”.

Para eles, houve uma mudança significativa ao ouvir música de forma individualizada e personalizada. “Antes, as pessoas ficavam reféns das rádios e seus programadores. Após o surgimento do YouTube, Spotify, Mixcloud, SoundCloud, entre outros, as pessoas passaram a ter contas e escolher o que querem ouvir. Já não existem mais limites!”, dizem. “Mas mesmo com essa pluralidade de escolhas, boa parte do público continua consumindo o que a mídia impõe, ficando à mercê do tal ‘jabá’”.

Sobre a adaptação dos meios antigos e físicos para os novos e digitais, o acesso e a transmissão de arquivos foi facilitada. “Por outro lado, as pessoas começaram a querer ter sua mídia, fazer parte de algo”, afirmam. “É o caso da ascensão do vinil, que amplifica as relações de consumo e interação entre pessoas que apreciam este tipo de mídia clássica. Várias gravadoras e selos viram o potencial que o vinil tem e começaram a regravar obras fora de catálogo, lançando trabalhos de artistas e grupos nesta mídia.” Eles também contam que a integração entre a mídia digital e o vinil pelos equipamentos para DJs tem contribuído para essa evolução. Grandes marcas, como Serato e Traktor, possuem instrumentos que digitalizam o sinal da agulha do toca-discos por meio de um software, podendo a música em formato mp3, num computador, ser tocada num disco especial de vinil.

Apesar das dificuldades de locomoção por causa do peso e o cuidado ao manusear, Rodrigo e Geraldo não abrem mãos das “bolachas” e “bolachinhas” — maneira como chamam os discos de diferentes tamanho — devido ao seu carinho por estas e o respeito pela obra do artista. “Tudo o que tivemos de alcance com o Grave & Groove foi por cultivar e divulgar essa cultura através do nosso trabalho. Abrimos portas e conseguimos chegar em lugares que se conectaram com o nosso som analógico do disco. Estreitamos relações e ampliamos os apreciadores do nosso trabalho tudo com o vinil e toca-disco. É inegável que o digital traz muitas facilidades e comodidades, e as duas mídias podem conviver e dividir tranquilamente o mesmo espaço”.

YouTube: herói ou vilão?

Gráfico traduzido e adaptado do Music Consumer Insight Report de 2017. Fonte: IFPI

O video streaming ocupa mais da metade de todo o tempo usado em streaming no geral. Ainda segundo o IFPI, 55% dos usuários de internet consumiram música por serviços de upload por usuários, como o YouTube. No Brasil, 95% das pessoas usam o YouTube para ouvir música. Porém, mesmo isso sendo ótimo para os consumidores, é nocivo para a indústria musical, como os produtores e artistas que estão na plataforma, já que o YouTube retorna a eles menos de US$1 por usuário que consumir a música, enquanto o Spotify, por exemplo, paga US$20.

Usuários de audio streaming e video streaming de upload por usuários (UUC) VS receita. Nas duas primeiras barras, são os números de usuários de audio streams (pagos e com anúncios) e o quanto eles geram de receita. As duas últimas barras demonstram os usuários de UUC video streams e o quanto eles geram. Os números, tanto dos usuários quanto da renda, estão em milhões. Fonte: IFPI.

Essa incompatibilidade entre o valor que serviços de upload por usuários extraem das músicas e a renda que retorna a quem produz é denominada value gap, e pode ameaçar a indústria musical. Essa indústria depende do investimento de gravadoras e artistas e, se os serviços não reconhecem seu valor e não remuneram de forma justa, torna-se impossível mantê-la. É o que defende, por exemplo, uma carta assinada por diversos artistas e compositores, como Paul McCartney, David Guetta e Coldplay, que pede à Comissão Europeia para tomar medidas urgentes sobre o assunto. “O value gap mina os direitos e os rendimentos daqueles que criam, investem e são donos de música. Pois, enquanto o consumo de música nunca esteve tão alto, serviços de upload por usuários estão usando indevidamente algumas isenções […], dizendo não ser responsáveis pelo conteúdo postado em sua plataforma”, diz o documento.

A pirataria se mantém

Gráfico traduzido e adaptado do Music Consumer Insight Report de 2017. Fonte: IFPI

Ademais, mesmo com todos os recursos legais de consumo musical, a pirataria permanece como um grande problema na comunidade musical. Agora, já que o meio de ouvir música mais comum é o streaming, também surgiu um novo meio de piratear: o stream ripping. Sabe aquele site, programa ou aplicativo que permite baixar as músicas do YouTube e ouvi-las no celular? É justamente isso. De acordo o IFPI, 35% dos usuários de internet usam o stream ripping (5% maior que no ano de 2016), e esta forma ilegal de consumo é ainda mais popular entre jovens de 16 a 24 anos, subindo para 53%. As ferramentas de busca têm papel chave na violação de direitos autorais, já que 54% de quem baixa música não licenciada usou o Google para achar as ferramentas para realizá-lo.

Lawrence Lessig, autor do livro Cultura Livre e um dos fundadores do Creative Commons — que permite o uso de algumas obras sem que seja preciso mostrar pagar por direitos autorais -, diz que há diversas formas de pirataria de material sob copyright, a mais significativa sendo a pirataria comercial: o uso não autorizado de conteúdos de outras pessoas em um contexto comercial. “Apesar das muitas justificativas que são oferecidas [em defesa a essa pirataria], essa tomada é errada. Ninguém deveria ser condescendente com ela, e a lei deveria parar tal pirataria. Junto com esse tipo de pirataria existe uma outra forma de “uso” que está mais diretamente relacionada com a Internet. Esse uso também parece errado para muitos, e realmente está errado na maior parte do tempo. Porém, antes de acusarmos isso como ‘pirataria’, devemos entender sua natureza melhor. Porque o prejuízo provocado por esse uso é significativamente mais ambíguo que a cópia descarada, e a lei deveria levar essa ambigüidade em conta”.

Lessig defende a Internet livre, o direito à distribuição de bens culturais, a produção de trabalhos derivados e o fair use, e afirma que a cultura seria mais rica se as leis que regulam os direitos autorais fossem mais flexíveis.

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