Deslocamento entre casa e trabalho deve ser foco de ciclovias

Dauro Veras
Coletânea de reportagens
12 min readDec 24, 2018

Estudo mostra que a maioria dos ciclistas brasileiros tem baixa renda e escolaridade e vive nas periferias das cidades, mas esse público não é prioridade das políticas públicas, focadas em infraestrutura de lazer.

Dauro Veras

A bicicleta responde por 7% dos deslocamentos realizados no mundo. Se o seu uso chegasse a 23%, as cidades poderiam economizar US$ 25 trilhões até 2050 e reduzir as emissões de gases do efeito estufa em 11%, estima a ong americana Institute for Transportation and Development Policy (ITDP). Apesar da influência crescente da economia da bicicleta na vida urbana de muitos países, no Brasil as políticas públicas sobre o tema ainda engatinham. Contudo, devem ganhar evidência em 2019 com a entrada em vigor dos planos municipais de mobilidade urbana e execução do recém-aprovado programa federal Bicicleta Brasil, que prevê medidas de fomento ao ciclismo.

Em abril de 2019, vence o prazo para que os municípios com mais de 20 mil habitantes elaborem seus planos de mobilidade urbana, pré-requisito para receberem recursos federais com esta destinação. A exigência da Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/2012) já foi adiada três vezes. Um obstáculo é a carência de profissionais preparados para planejar sistemas que privilegiem o “transporte ativo”, isto é, o deslocamento com o uso de força humana. Há dificuldade de acesso a conhecimentos e tecnologias.

Esses desafios motivaram uma ação integrada entre governo e organizações da sociedade civil. Em dezembro, o Ministério das Cidades firmou dois acordos de cooperação técnica. No dia 5, com a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ANBT) e a Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP), para criar normas de infraestrutura cicloviária e sistemas construtivos seguros. No dia 11, com as ongs Bike Anjo e União dos Ciclistas do Brasil (UCB), para capacitar gestores municipais. “A cooperação é de grande interesse, pois significa participação social na condução das políticas públicas”, comenta o presidente da UCB, André Soares (leia entrevista abaixo).

Existem 3 mil km de rotas cicláveis nas 27 capitais brasileiras, conforme o estudo “A economia da bicicleta no Brasil”, publicado em julho pela ong Aliança Bike e pelo Laboratório de Mobilidade Sustentável da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LabMob/UFRJ). Boa parte delas foram construídas sem planejamento adequado e têm manutenção precária. São Paulo e Rio de Janeiro concentram 45% dos R$ 1,2 bilhão investidos pelo poder público. Anualmente as 297 fábricas nacionais de bicicletas produzem 5,2 milhões de unidades, gerando R$ 728,3 milhões de receita e 14 mil empregos. A economia no orçamento de uma família em que um dos membros trocou o carro pela bicicleta chega a R$ 12,8 mil por ano.

Perfil do Ciclista Brasileiro — 2018 — Labmob

“Nossa estrutura cicloviária é muito limitada e os investimentos, ineficientes, pois priorizam o lazer, enquanto mais de 75% dos ciclistas se deslocam entre a casa e o trabalho”, afirma o coordenador do LabMob, professor Victor Andrade. A maioria dos ciclistas brasileiros têm baixa renda e escolaridade, vivem na periferia das cidades e pedalam cinco a sete dias por semana, segundo o Perfil do Ciclista Brasileiro 2018, realizado pelo Laboratório. Esse público não tem sido priorizado pelas políticas públicas, diz o pesquisador: “Em São Paulo, por exemplo, nos últimos dois anos houve mais recursos aplicados em recapeamento asfáltico que em toda a história do investimento cicloviário na cidade”.

Perfil do Ciclista Brasileiro — 2018 — Labmob

Para o professor Andrade, um bom plano de mobilidade urbana precisa interligar diversos modos de transporte e investir nos eixos de conexão entre áreas residenciais e de trabalho. Também deve priorizar conforto, rapidez e segurança de ciclistas e pedestres. “A primeira medida é baixar a velocidade média das cidades”, diz. O diretor da Aliança Bike, Daniel Guth, acrescenta que os planos são fundamentais, mas precisam vir acompanhados de instrumentos legais para fiscalizar, mensurar e penalizar seu descumprimento.

Nos últimos sete anos, 46 mil pedestres e ciclistas foram atropelados na cidade de São Paulo. “Este não é um número admissível”, diz a a diretora de participação pública da ong Ciclocidade, Aline Cavalcante. “É dever do Estado garantir a segurança da população de forma permanente”. A organização está realizando uma “auditoria cidadã” nos 480 km de ciclovias do município, visando levantar informações para reivindicar manutenção, melhorias e expansão da malha.

A estrutura cicloviária na cidade de São Paulo viabiliza a existência de empresas de logística como a Courri, que faz entregas usando bicicletas elétricas de carga. Criada em 2013, ela tem hoje 228 ciclistas e 140 clientes recorrentes, conta o CEO Victor Castello Branco. Um dos clientes da Courri desde o início do negócio é a empresa de comércio eletrônico Netshoes, que em 2018 encaminhou mais de 20 mil produtos de bicicleta, num tempo médio 40% mais rápido que de carro. “A ideia é expandir o serviço para outras capitais”, diz o gerente de logística da Netshoes, Eduardo Pereira.

Cresce a demanda por bicicletas elétricas

Todos os dias o engenheiro florestal aposentado Ruy Osório, 86 anos, mantém a saúde praticando caminhada, natação ou ciclismo no condomínio onde mora em Itu (SP). Ele já pedalou 10 mil km em bicicletas elétricas e está no quarto modelo. Os irmãos Luisa e Artur Zucchi, estudantes da Universidade de São Paulo (USP), usam a e-bike para ir de casa às aulas e ao trabalho. “Faço em meia hora o percurso que levaria no mínimo 45 minutos de ônibus e não chego nem suada”, diz Luisa. Artur conta que sua bicicleta elétrica se pagou em um ano, só com a economia em combustível, transporte público e Uber.

O securitário Vinicius Mercado usa e-bike nos deslocamentos, assim como outros outros cinco colegas de uma equipe de 14 no seu departamento. “As pessoas estão aderindo especialmente quando conhecem quem já usa e tem opiniões positivas”, conta. “Levo de 18 a 20 minutos para chegar ao trabalho, com ciclovia na maior parte do caminho, fazendo atividade física e sem o estresse do trânsito”. De carro, levaria 40 minutos e de ônibus, uma hora. Sua primeira bicicleta elétrica era um modelo chinês pesado, com mais de 40 kg e bateria de chumbo. O modelo atual é uma mountain-bike bem mais leve, com bateria de lítio, que tem autonomia de cerca de 30 km.

Eles fazem parte de um contingente crescente de usuários de um veículo que, nos últimos 12 meses, teve um salto de 112% nas vendas globais. Com eficiência energética 53 vezes maior que o carro, a bicicleta elétrica tem benefícios socioeconômicos avaliados em meio bilhão de euros (R$ 2,2 bilhões) por ano na União Europeia. Em 2017, a França ofereceu um subsídio de 200 euros para a compra e este ano a prefeitura de Paris aumentou o valor para 600 euros. No Japão as e-bikes já representam 64% da produção total de bicicletas.

No Brasil as vendas somam apenas 0,25% do mercado, 31 mil unidades em 2018, mas podem chegar a 6% em 2022 (280 mil unidades), segundo estimativa conservadora da Aliança Bike. A demanda tende a crescer mais se houver racionalidade tributária. Hoje o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) sobre a e-bike é de 35% — maior que o do uísque, por exemplo (30%). Isso eleva o valor médio da bicicleta elétrica a R$ 7,3 mil, o maior entre 29 países analisados em estudo recente. Se o IPI fosse equiparado ao das bicicletas convencionais (10%), haveria queda de 18% no preço final, calcula a organização.

Há cinco fábricas nacionais de bicicletas elétricas em atividade. A General Wings, de São Paulo, tem 4 mil clientes e muitos deles venderam o segundo carro, informa o sócio Ricardo De Féo. Ele acredita que o mercado pode crescer até 50 vezes, à medida que aumentarem os incentivos públicos e a aceitação social. “Mais que uma solução de lazer e saúde, a bicicleta elétrica resolve o problema de espaço e dá autonomia no ir e vir”, diz. Um indicador de que essa aceitação está aumentando é a ciclovia da avenida Faria Lima. Em seis anos, o número de ciclistas que a percorrem com e-bikes quintuplicou, chegando hoje a 9% do fluxo.

Outra tendência de mobilidade urbana é o uso de scooters elétricas. A Cooltra, empresa de origem espanhola com atuação em seis países europeus, presta serviço de locação B2B em São Paulo e no Rio de Janeiro desde 2014. Seus modelos E-Max, com tecnologia e chassi alemães, design e motor italianos e controlador inglês, são montados pela Riba Brasil, representante da australiana Vmoto. Silenciosas e não-poluentes, elas têm autonomia de 80 km, carregam até 70% da bateria em uma hora e 100% em três horas.

“Vamos ser a primeira empresa do país a operar com compartilhamento de scooters”, informa o gerente geral da Cooltra e diretor técnico da Riba no Brasil, Rui Almeida. Uma vantagem destacada por ele é a eficiência energética dos veículos elétricos, que chega a 90%, contra 20% a 25% dos veículos a combustão. O empresário ressalta a importância do programa federal Rota 2030, de incentivo ao setor automotivo: “O veículo híbrido e o elétrico começaram a ser inseridos nas discussões sobre o que seria adequado em termos de taxas e impostos, para que esse mercado tenha condições de evoluir sem total dependência do que está acontecendo lá fora”.

Serviços para compartilhar bikes ganham fôlego

Victor Castello Branco, da Courri: entregas com 228 ciclistas e 140 clientes recorrentes. Foto: Divulgação

A popularização do ciclismo tem incentivado a criação de empreendimentos inovadores. Várias iniciativas já estão disponíveis aos moradores das grandes cidades e outras vão chegar nos próximos meses. Em março de 2019 a chinesa Mobike, maior empresa de compartilhamento de bicicletas do mundo, inaugura suas operações no Brasil com 500 unidades nas ruas de Curitiba e outras 1,5 mil em espaços privados da cidade. Em seguida, pretende colocar 10 mil unidades em São Paulo e ampliar sua rede para outras capitais brasileiras.

Desenvolvidas para ficar na rua sem quebra por quatro anos, as bicicletas “dockless” são locadas por aplicativo de celular, sem necessidade de devolução em estações de ancoragem. México e Chile foram os primeiros laboratórios do modelo de negócios na América Latina. “Verificamos que também estamos aumentando o mercado dos nossos competidores no mercado de bikes com licitação”, conta o gerente de expansão da Mobike na região, Erick Coser. No primeiro trimestre, a empresa pretende oferecer 500 bikes elétricas para compartilhamento na capital chilena, Santiago.

Outra referência no segmento é a Tembici, responsável por sistemas de bicicletas compartilhadas em 16 cidades do Brasil, além de atuar no Chile e Argentina. A empresa opera o sistema oferecido pelo banco Itaú em cinco capitais. “Depois de pesquisar diversas cidades do mundo para entender os fatores de sucesso, optamos pela tecnologia ‘dock’ (com estações de ancoragem) pela confiabilidade e qualidade do serviço”, explica o diretor-presidente, Tomás Martins. No dia 29 de novembro a empresa inaugurou um serviço de 500 patinetes elétricas no Rio de Janeiro, em parceria com a Petrobrás Distribuidora.

A startup brasileira Yellow, dos mesmos fundadores da 99, também opera com bicicletas e patinetes elétricas para compartilhamento. “Nas próximas semanas, nosso plano é expandir o serviço para 15 a 20 cidades do Brasil e outros países da América Latina”, informa o diretor de comunicação e marketing da empresa, Luiz Marques. Ele também revela que, entre julho e agosto de 2019, a empresa pretende construir uma fábrica de patinetes elétricos na América Latina, provavelmente no Brasil: “Será a única fora da Ásia”.

Em novembro a Rappi, startup colombiana de entregas via aplicativo, fechou aliança com a brasileiro-mexicana Grin para oferecer patinetes elétricos compartilhados em São Paulo. A primeira viagem dá direito a dez minutos grátis. Depois a tarifa é de R$ 3 para os primeiros dois minutos e R$ 0,50 por minuto adicional. “Até o fim de março, vamos levar as patinetes elétricas para as 15 cidades brasileiras onde atuamos”, informa o diretor de operações da Rappi, Ricardo Bechara.

Criada em 2017, a Bikxi já conquistou 18 mil usuários paulistanos com um serviço de transporte inovador: “Somos a primeira empresa do mundo a transportar pessoas com bicicletas duplas, elétricas e com bagageiro”, conta o fundador, Danilo Lamy. Os 21 veículos da frota têm um sistema de pedal independente que dá ao segundo ciclista a possibilidade de pedalar ou não. Vários usuários são pessoas com deficiência visual. “Agora que provamos o conceito e consolidamos a empresa, vamos atrás de captação de investimentos”, diz.

Entrevista com André Soares, presidente da União dos Ciclistas do Brasil (UCB)

André Soares, presidente da União dos Ciclistas do Brasil — UCB. Foto: Geraldo Magela/Agência Senado/CC.

Você pode comentar sobre o convênio firmado com o Ministério das Cidades?

O ACT — Acordo de Cooperação Técnica visa desenvolver atividades para contribuir para que os municípios elaborem seus Planos de Mobilidade Urbana (que é uma exigência da Política Nacional de Mobilidade Urbana) e também implantar o recentemente aprovado Programa Bicicleta Brasil (que prevê medidas de estímulo, fomento e apoio à mobilidade por bicicleta). A Cooperação é de grande interesse da sociedade civil, pois ela significa a necessária participação social na condução das políticas públicas. Como detentores de conhecimento prático e técnico sobre a modalidade, as instituições de ciclistas podem colaborar de diversas maneiras, desde a realização de pesquisas até o desenvolvimento de programas educativos.

Quais são as principais reivindicações da União de Ciclistas do Brasil?

Tudo seria resolvido com o cumprimento da legislação pelo poder público, sobretudo o Código de Trânsito Brasileiro e da Política Nacional de Mobilidade Urbana, leis que concedem prioridade aos meios de mobilidade ativos sobre os meios de mobilidade motorizados individuais. Para isso, destacamos a necessidade de infraestrutura adequada e suficiente para garantir o conforto e segurança dos ciclistas, o acalmamento viário (redução da velocidade) e programas educativos continuados.

Qual é a avaliação da UCB sobre a atual malha de ciclovias no país?

É insuficiente na sua totalidade. Em geral, nas cidades, não compõem uma malha, mas uma pulverização de trechos com baixa qualidade técnica.

Houve avanços recentes?

Nos últimos anos, com o limite e falência do modelo automobilístico, muitas pessoas voltaram à bicicleta e, sob pressão de organizações de ciclistas, muitas cidades ofertaram mais infraestrutura — mas ainda muito insuficiente.

Quais são os desafios mais urgentes?

O desafio mais urgente é acelerar a inclusão da bicicleta com políticas públicas consistentes, o que demanda recursos financeiros crescentes, os quais existem, mas estão, historicamente, alocados para beneficiar a parcela da população que se locomove de carro.

Como o poder público poderia baratear o acesso a bicicletas?

O cicloativismo reivindica há muito tempo a redução da carga tributária, que, atingindo 70%, é maior que a de carros. Linhas de financiamento incentivadas também são uma boa opção.

Como o poder público poderia estimular a construção de ciclovias?

Este estímulo já existe como uma obrigação, se for respeitada a Política Nacional de Mobilidade Urbana. É necessário apenas aplicar o orçamento público para favorecer os meios de mobilidade que são mais vantajosos para o erário, para a saúde e para o meio ambiente.

Você pode comentar sobre a relação custo-benefício da implantação de ciclovias nas cidades?

Existem muitos. Por exemplo, segundo a European Cyclists’ Federation, no estudo intitulado “Cycling Works — Jobs and Job Creation in the Cycling Economy“, o bloco obtém um benefício anual de 205 bilhões de euros com geração de emprego, fortalecimento do comércio local, diminuição dos gastos com saúde, entre outros. No Brasil, cabe destacar que São Paulo, após a construção de 400 km de ciclovias, teve uma redução de mortes de ciclistas da ordem de 34%.

O que uma administração municipal precisa fazer para implantar um bom projeto de ciclovias?

Aplicar recurso financeiro suficiente. Com isso se contratam especialistas competentes, que existem no mercado, e se constroem vias ciclísticas de qualidade.

Como as novas tecnologias podem ajudar na disseminação do ciclismo?

Apesar de todo o avanço tecnológico, a bicicleta, com toda sua simplicidade de mais de um século, ainda continua sendo o veículo mais eficiente e democrático de se percorrer curtas e médias distâncias. É importante que a bicicleta seja acessível e praticada por toda a população, incluindo as camadas de baixa renda. Outra tecnologia com mais de 150 anos ainda hoje é pouco aplicada para os ciclistas: poucas são as vias ciclísticas que contam com semáforos. Hoje a tecnologia que mais pode alavancar, efetivamente, o ciclismo, é a redução das velocidades das vias e a construção de infra estrutura cicloviária. Medidas tecnológicas como aplicativos para celulares ou contadores digitais de ciclistas são acessórios importantes, mas elas não são capazes de permitir o essencial: que as crianças pedalem pelas ruas de uma cidade com segurança.

Uma versão condensada desta reportagem foi publicada originalmente no jornal Valor Econômico em 7 de dezembro de 2018.

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