Imunidades que aceleram a pandemia

Matheus Müller
Reportagensespeciaisfapa
5 min readDec 19, 2020

Crises econômica e sanitária retomaram debates sobre imunidades tributárias em Porto Alegre

Foto: Matheus Müller

A pandemia de covid-19, iniciada no final de 2019 em Wuhan, na China, está próxima de completar um ano desde sua aparição. Desde então, biólogos, veículos de comunicação e demais especialistas falam sobre o “novo normal”. Muitos especulam a respeito desta “nova normalidade”, no entanto, o conhecido “antigo normal” ainda dá as caras, principalmente quando o assunto é economia.

Apenas em 2020, diversos líderes do Estado brasileiro como o presidente do país e também o governador do Rio Grande do Sul deram declarações sobre a falta de dinheiro que estaria por vir. Apesar de Porto Alegre demonstrar estar no azul, o município abriu mão de mais de meio milhão de reais referente apenas à taxa de coleta de lixo no ano de 2019 entre templos religiosos. As instituições religiosas — que somam 435 templos, sem contar casas de religiões de matriz africanas — fazem parte de um grupo imune de tributações firmado pela Constituição Federal. Mas, quem são estas entidades?

Tributação e imunidades

Para entender quem são as entidades isentas de tributação é necessário dar um passo atrás para saber quais são as tributações. Existem treze impostos arrecadados pelo Estado e cada esfera é responsável por uma parte deles. Essas tributações são referentes ao nível do imposto, como por exemplo, o Imposto sobre Importação que, por ser uma atividade entre países, é de responsabilidade da federação. O gráfico abaixo ilustra os impostos separados por esfera. Ainda há, além destes, a Contribuição Social Sobre Lucro Líquido (CSLL) que não foi colocada na tabela, pois, entidades imunes não presumem lucro e o Imposto Territorial Rural (ITR) para zonas rurais, em substituição ao Imposto Sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU).

Gráfico de impostos existentes e declaráveis.

Esses impostos foram estabelecidos e criados a partir da Constituição Federal (CF) de 1988 e o seu artigo 145 estipula a cada um dos entes federativos tanto a responsabilidade de criação quanto de fiscalização de impostos. Somado a esse fator, a mesma CF impõe restrições para criação desses tributos. Seguindo para o artigo 150, fica estabelecido que o Estado não criará ou aumentará impostos sem que seja definido em lei. Além disso, restringe a cobrança, isto é, imuniza autarquias (entidades de administração pública descentralizadas, fiscalizada pelo Governo Federal e que possuem recursos próprios, como o IBAMA ou INSS, por exemplo), fundações públicas (como a FUNAI, IBGE, etc), partidos políticos e templos de qualquer tributação.

Em conversa com Bernard Appy, economista fundador do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), foi esclarecido que existe diferença entre imposto e tributo. Os tributos são divididos em três partes: o imposto, as taxas e a contribuição social. Destas, a imunidade aplica-se apenas aos impostos. Ele frisa que, no entanto, o 7º parágrafo do art. 195 da CF estabelece “a isenção de contribuição para a seguridade social às entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei”. Esse dispositivo também pode ser aplicado à parte das ações desenvolvidas por entidades religiosas. Veja abaixo o gráfico de distribuição dos tipos de tributação.

Para onde vai o dinheiro tributado.

Templos em Porto Alegre

Para Appy, a imunidade a templos de qualquer culto é uma decisão política justificada pela função social que elas realizam. O último censo realizado pelo IBGE estima um total de 43 religiões diferentes espalhadas ao redor do país, destas, 36 tem fieis em Porto Alegre. Na cidade, a Secretaria Municipal da Fazenda de Porto Alegre registra um total de 425 templos de organizações religiosas, como apurado pela reportagem.

Questionada, a prefeitura não soube responder o valor total de tributação não arrecadada por templos, mas informou que deixou de coletar cerca de R$ 500 mil apenas em Taxa de Coleta de Lixo (TCL), um dos impostos arrecadados cujos templos religiosos sediados na cidade possuem desconto de 50%, conforme a lei municipal 501 de 2000. Como comparação, o total de investimentos em manutenção e obras do DMLU até outubro deste ano foi de R$ 650 mil.

Ainda informou que apenas 165 dos CNPJ cadastrados estão ativos — não possuem irregularidades fiscais ou estão desativados. Destes, apenas 58 apresentam recolhimentos eventuais de Imposto Sobre Serviço, que é um imposto taxado junto a outros e que o valor depende do tamanho da instituição. A imunidade cobre este imposto, entretanto algumas instituições apresentam seus recolhimentos a título de substituição tributária referente a serviços tomados.

A reportagem conversou com Claudio Preza, professor de direito da PUC-RS e mestre em ciências políticas a respeito destes cadastros. Ele explica que “cada CNPJ pode representar um templo de determinada religião, mas pode representar uma filial de outra igreja também.” Além disso, comentou que “não é por que o templo não está ativo que não pode continuar com suas atividades. Entretanto, caso estes templos estejam em situação de inadimplência podem ter seus bens recolhidos como em qualquer outra situação”. Preza ainda lembrou-se do artigo 5 da constituição imperial que confirma a Religião Catholica Apostolica Romana como religião do império e finaliza com “todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.” Para ele, desde esta época igrejas já não tem isonomia.

No âmbito estadual, as duas religiões com maior número de adeptos, as Igrejas Católica e Evangélica, não constam na lista de declarações de ICMS — imposto proveniente de operações com mercadorias em geral, serviços de telecomunicações, serviços de transporte intermunicipais e interestaduais, além de importação de mercadoria. Questionadas, nenhuma delas se pronunciou até o momento de publicação desta matéria, cabendo atualização conforme o recebimento das respostas.

Tão invisível quanto um vírus

“Existe isonomia regulamentada, mas na prática não é isso que a gente vê, nós sentimos uma discriminação” disse o diretor jurídico da Federação das Religiões Afro-brasileiras (Afrobras), José Antonio Salvador. Relatando a dificuldade que é obter a isenção referente ao IPTU, segundo ele “as casas de religião que funcionam na residência do Babalorixá — o chefe espiritual e administrador da casa — tem dificuldade em finalizar o registro, pois, a pessoa reside no local, então existe a residência junto ao templo”. Ainda acrescenta que, por vezes, a área regulada é só a do ritual. Ele ainda argumenta que “em outras religiões não existe essa dificuldade, por exemplo, o padre mora na igreja, mas o prédio todo é isento”. Em recurso extraordinário emitido, o Superior Tribunal Judiciário, afirma que a isenção se aplica também a residências de sacerdotes e sacerdotisas.

A Federação estima que, apenas em Porto Alegre, existam em torno de dez mil casas de religião. Segundo eles, por ser um povo de baixa renda, a burocracia e emissão de documentos acaba deixando o custo alto, além de entraves como os mencionados acima. José ainda comenta que muitos afro-brasileiros, em pesquisas de censo, dizem que são católicos ou “de religião”, para não dizer que é de religião africana e que isso dificultaria na precisão de um número.

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