O vírus da vulnerabilidade

Andressa Schütz
Reportagensespeciaisfapa
8 min readDec 18, 2020

O coronavírus modificou a rotina dos brasileiros, mas mulheres em situação de vulnerabilidade podem ter sofrido impactos maiores

Por Andressa Schütz e Laura Maria

Comunidades promovem ações de assistência social. Foto: Reprodução/Arquivo

O ano de 2020 trouxe consigo inúmeros desafios e transtornos. Aqui no Brasil, um ano que já tinha indícios de problemas econômicos e sociais, se tornou ainda mais preocupante com a pandemia do coronavírus. A doença afetou todos os cidadãos, mesmo que de formas diferentes. E as pessoas que já vinham em situações de vulnerabilidade tiveram ainda mais dificuldades.

Antes, é importante conceituar o que é uma situação de “vulnerabilidade”. Segundo o economista e diretor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Carlos Henrique Vasconcellos Horn, o termo mais utilizado na área econômica é precariedade. “A precariedade no mercado de trabalho se define pelo grau de formalização da ocupação da pessoa, se essa ocupação lhe dá proteção das normas trabalhistas”. Ele também explica que a precariedade geralmente vem acompanhada da baixa renda. “Normalmente o baixo rendimento acompanha essas outras condições, como falta de proteção legal, falta de isenção no sistema de seguro social, por exemplo”.

A professora Rochele Felline Fachinetto, professora do curso de Sociologia da UFRGS, diz que a vulnerabilidade pode ser definida, de maneira geral, como “o resultado negativo da relação entre a disponibilidade de recursos materiais ou simbólicos dos atores, sejam eles indivíduos ou grupos, e o acesso a estrutura de oportunidades sociais, econômicas e culturais, que provêm do estado, do mercado e da sociedade.” Esse resultado negativo, segundo ela, resulta em dificuldades de desempenho e mobilidade social das pessoas nessa situação.

Mercado de trabalho e renda

Falando em mercado de trabalho, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua trimestral, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que entre o último trimestre do ano passado e o primeiro deste ano os percentuais de desocupação aumentaram na Capital. A taxa total, que era de 7,1% nos últimos três meses de 2019, subiu para 10% no início de 2020.

Além disso, as diferenças são ainda mais gritantes no que diz respeito à relação desocupação e gênero. Para os homens, a taxa era de 6,9% no 4º trimestre de 2019 e subiu para 8,7% no 1º trimestre de 2020. Em contrapartida, as mulheres, que antes tinham uma taxa de desocupação de 7,2%, atingiram 11,4% no início deste ano.

Essa diferença, segundo Horn, é histórica e se deve a várias questões. “É algo que podemos chamar de estrutural no mercado de trabalho brasileiro, no qual, no que tange à desemprego, a taxa de desemprego das mulheres é sistematicamente maior do que a dos homens”. Ele também explica que um dos fatores que podem justificar essa disparidade é a forma de ocupação distinta entre os dois gêneros. “Um grupo de ocupações que teve uma queda muito grande foi o do emprego doméstico, em que a ocupação é majoritariamente feminina, e isso vai se refletir no dado mais geral da desocupação ou da perda da ocupação”.

Um dos pontos que surgem ao falar sobre o mercado de trabalho é a condição de vida da população. O trabalho é, para a maioria, a forma de garantir condições dignas, mantendo a alimentação, higiene, etc. Sabendo disso, é possível perceber como o aumento da taxa de desocupação pode ser preocupante.

Confira a entrevista completa com o professor Carlos Horn:

https://drive.google.com/drive/u/0/folders/1Q48vb5C1MRxRDfb8-YtNOMI-dNJ8S5wr

O impacto da pandemia para as mulheres

De acordo com Rochele, a pandemia trouxe novas situações de vulnerabilidade, além de expor e destacar as que já existiam. “Não foram todas as pessoas que conseguiram se manter em distanciamento social, e isso mostra que nem todas as pessoas tinham essa mesma posição de privilégio na estrutura social, algumas pessoas simplesmente não puderam se isolar e portanto estavam mais expostas ao vírus.”, explica ela.

Ainda segundo a socióloga, mulheres podem ter sido afetadas de maneiras diferentes, e até mesmo mais profundamente, do que os homens. “Uma questão muito importante a ser considerada, foi uma sobrecarga das mulheres, das atividades domésticas e das atividades de cuidado”. Rochele diz que muitas mulheres passaram a ficar mais tempo em casa, cuidando de filhos e familiares. “Isso se deve muito em função dessas atividades serem vistas socialmente como atividades femininas”, declarou a professora.

Confira a entrevista completa com a professora Rochelle Felline Fachinetto:

O auxílio do poder público

A FASC ficou responsável pelo atendimento a pessoas em situação de vulnerabilidade social em POA. Foto: Andressa Schütz

Uma das principais medidas adotadas pelo governo brasileiro para ajudar os cidadãos durante o período de pandemia foi o auxílio emergencial. O auxílio, que foi instituído pelo governo federal através da Lei nº 13.982, de 02 de abril de 2020, inicialmente consistia no valor de R$ 600,00 mensais durante três meses, para cidadãos que atendessem a diversos requisitos, como não possuir emprego formal ativo, exercer função como microempreendedor individual (MEI) e estar inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). Mulheres que fossem chefes de família tinham direito a duas cotas do auxílio, totalizando R$1.200,00 mensais.

Para o professor Horn, essa medida foi fundamental no enfrentamento à pandemia. “Nós só não encontramos um quadro em que a crise seja mais grave por conta do auxílio emergencial”. Ele ainda faz um alerta, com a perspectiva do final do auxílio. “Se for retirado o auxílio emergencial, se não houver uma renda básica de manutenção dessas pessoas que não tem como conseguir emprego, nós veremos uma situação que eu chamaria de dramática no país, muitas famílias ficarão sem qualquer rendimento e condições de fazer a compra para alimentação.”

Tamanha importância fez com que o auxílio emergencial fosse prorrogado até o final do ano, a partir da Medida Provisória nº 1.000, de 2 de setembro de 2020. No entanto, os valores anteriormente definidos foram alterados e as condições, como número de parcelas e requisitos para o recebimento, também sofreram mudanças. O auxílio emergencial extensão, como é chamado, possui parcelas de R$300,00 e, como na primeira fase, mães chefes de família recebem a cota em dobro, ou seja, R$600,00.

O que diz a prefeitura de Porto Alegre

No âmbito municipal, a prefeitura de Porto Alegre também instituiu o Fundo Municipal de Combate ao Coronavírus (Funcovid-19) e o Programa Municipal Temporário de Transferência de Renda aos cidadãos atingidos social e economicamente pela pandemia do novo Coronavírus. No caso deste auxílio, recebem as famílias inscritas no Cadastro Único do Governo Federal (CadÚnico) e que atendam aos critérios descritos na Lei Complementar nº 887, de 24 de julho de 2020.

Os valores, assim como o Auxílio Emergencial do Governo Federal, variam em cada caso e de acordo com a renda familiar per capita, sendo a renda máxima permitida de R$522,50. Outro fator que influencia são as características de cada grupo familiar: a cada membro, é acrescido o valor de R$50,00 ao total recebido pela família.

Dentro da prefeitura, o setor responsável pela assistência social é a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC). De acordo com a assessoria do órgão, vinculado à Secretaria Municipal do Desenvolvimento Social e Esporte (SMTE), foram também realizadas iniciativas para auxílio de pessoas em situação de rua e de vulnerabilidade, como o oferecimento de refeições através do Programa Prato Alegre, além do aumento das vagas em hotéis, casas de passagem e no Centro Popular.

Já no âmbito econômico, além dos auxílios, a prefeitura possui a Secretaria do Trabalho, Emprego e Renda. A Diretora-Geral do órgão, Susana Hoff Santos, cita que tem sido realizado contato direto com empresas para abertura de vagas, além da disponibilização dos serviços de intermediação de mão de obra. Sobre a diferenciação entre homens e mulheres, Susana diz que “todos no Sine são atendidos de maneira igualitária e orientamos as empresas a procederem da mesma forma”.

O que diz a população

Entretanto, ainda existem relatos de dificuldades por parte da população, especialmente mulheres e idosos. Além da falta de auxílios mais permanentes por parte da prefeitura, a ausência de iniciativas que ajudem na inserção no mercado de trabalho também afetam a vida de muitos gaúchos e gaúchas.

É o caso de Gelmi Pérez, de 66 anos, que ficou desempregada antes mesmo da pandemia e, desde então, tem se mantido com o apoio do Auxílio Emergencial Federal. Segundo ela, a recolocação no mercado de trabalho é muito difícil sendo mulher e, especialmente, tendo acima de 60 anos. “Não recebo aposentadoria e sempre trabalhei, mas desde que perdi o emprego tem sido complicado retomar alguma atividade, por conta da idade. Sinto falta de apoio por parte da prefeitura nesse sentido, não digo de auxílio financeiro, mas de recolocação para voltar a trabalhar”.

Ela ainda afirma que, mesmo inscrita no CadÚnico, não pôde receber o auxílio municipal por conta do valor que já vinha recebendo do Governo Federal. “Entendo que não é possível receber os dois ao mesmo tempo, mas assim que acabar o Auxílio Emergencial não tenho outra fonte de renda e não sei se posso contar com o apoio de qualquer medida pela prefeitura pra conseguir voltar a me manter, trabalhar”, completa.

A situação não é muito diferente para Daniele Quintana. Mãe de dois e desempregada há sete meses, ela diz que mesmo sendo inscrita no Sine, tem recebido poucos avisos de vagas por e-mail em vista do que recebia antes. Ela também conta que não conseguiu o Auxílio Emergencial Federal. “Recebi assistência do emprego por um mês e nesse tempo, de maio até agora, tentei três vezes o auxílio, mas sem sucesso”.

Quanto às diferenças no mercado de trabalho, por conta de gênero e também pela maternidade, ela afirma sentir as dificuldades na pele. Especialmente pelo filho pequeno, a dependência de creche ou escola interfere diretamente na vida profissional. “Um exemplo foi a busca de vaga para meu filho para escola. Três anos tentando e quando consegui, a pandemia veio. Além disso, nesses nove meses longe da escolinha do Estado, só recebi a ajuda de alimentos duas vezes”.

O auxílio que vem da sociedade

Sem depender somente do poder público, mulheres em situação de vulnerabilidade também contam com redes de apoio formadas pela sociedade civil. Um dos grupos que tem fornecido apoio à essa população, especialmente durante a atual crise sanitária, é o Fundo de Amparo ao Combate à Fome para Mulheres em Situação de Vulnerabilidade em Porto Alegre.

O coletivo, formado por mulheres, tem agido engajado na luta contra a desigualdade social. Atendendo comunidades e ocupações nas regiões periféricas da Capital, especialmente nas zonas norte, leste, sul e extremo sul, o Fundo já auxiliou ao todo mais de 6.500 famílias chefiadas por outras mulheres, sendo que o principal perfil atendido pelo Fundo é de mulheres negras com filhos pequenos.

--

--