Crianças e adolescentes

Vítimas de violência doméstica têm acesso prejudicado na quarentena

Lucas Eliel
Reportagensespeciaisfapa
10 min readDec 14, 2020

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Durante confinamento, delitos deste tipo não deixam de obter protagonismo e subnotificação ganha ainda mais espaço

Na montagem acima, uma criança está prestes a sofrer violência| Foto: Lucas Eliel

Por: Lucas Eliel

“Tinha ideação suicida, tinha raiva de mim mesmo”. O relato é do hipnoterapeuta e comunicador Vítor Madureira, de 27 anos, que vive em São Paulo, capital. Quando ele tinha apenas sete foi abusado sexualmente por um vizinho. E se não bastasse a situação traumática, tempos depois ainda foi humilhado publicamente pelo agressor.

Histórias como a de Madureira são mais comuns do que as pessoas pensam e não deixam de existir em meio a crise sanitária provocada pelo novo coronavírus, que dentre diversos efeitos sociais, causa o agravamento das desigualdades e da violência. No confinamento, as crianças e adolescentes no Brasil continuam a sofrer física e psicologicamente. Aliado a isto, segundo especialistas, a quarentena dificulta o acesso das vítimas a redes de proteção, aumentando assim a subnotificação dos casos.

Apenas no mês de abril deste ano, o governo federal recebeu 19.663 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes. O balanço representa crescimento de 47% em relação a igual período de 2019.

No Rio Grande do Sul, mais especificamente, estatísticas disponibilizadas pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) do período de abril a agosto dos anos de 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020 apontam para uma diminuição no número de casos da maioria dos crimes cometidos contra crianças e adolescentes no estado.

Segundo o órgão, lesão corporal, estupro de vulnerável, maus tratos, outros crimes, estupro, abandono de incapaz, lesão corporal leve, homicídio doloso (quando há intenção de matar), e exploração infanto-juvenil são as violações mais acometidas contra o público durante o recorte do período de cinco anos.

Na sequência surgem os crimes de abandono intelectual (61), condutas relacionadas a pedofilia na internet e outros meios de comunicação (46), lesão corporal grave (44), pornografia infanto-juvenil (32), violência sexual mediante fraude (cinco) e lesão corporal gravíssima (três).

Somente o crime de pornografia infanto-juvenil registrou aumento em comparação com 2019: de seis casos para oito este ano, crescimento de 33%. Já dos que registaram queda, as violações encaixadas na categoria de outros crimes tiveram a menor baixa: 7,1% do ano passado para este. No caminho contrário, abandono intelectual teve decréscimo de 75% durante o período.

A diminuição dos crimes em 2020, no entanto, não é motivo para comemorar. De acordo com a delegada da divisão da criança e do adolescente da Polícia Civil de Porto Alegre, Sabrina Teixeira, os dados tendem a diminuir porque a subnotificação dos crimes aumenta durante a pandemia, tendo em vista o fato das vítimas estarem agora longe dos ambientes de proteção, a exemplo das escolas. “Nós temos inúmeros casos com certeza, mas pode-se dizer que pouquíssimos chegam a conhecimento das autoridades. A grande parte fica na subnotificação, o que chega é a minoria”, destaca.

A youtuber Mickaely Farias, de 18 anos, que mora em Panorama, São Paulo, foi uma das vítimas que não denunciaram o agressor após passar por uma situação de violência. Quando tinha 11 anos, ela estava indo para a escola e um motorista estranho a ofereceu carona. Atenta aos avisos da mãe de não estar na companhia de desconhecidos, não aceitou a oferta. A partir disto, o homem avisou a menina que se ela não entrasse no carro, mataria sua família.

Após ser desacordada pelo criminoso e acordar em um ambiente completamente desconhecido, foi aí que sofreu o abuso sexual. Com medo da ameaça, ela resolveu não denunciar e por bastante tempo permaneceu quieta sobre o ocorrido.

O silêncio, no entanto, uma hora foi quebrado e em agosto deste ano ela publicou um vídeo no seu canal no Youtube abordando o assunto para encorajar que outras vítimas denunciem os casos e procurem ajuda. Na entrevista à reportagem, em uma espécie de volta ao tempo, ela afirma que seria mais complicado passar pelo problema se ele tivesse ocorrido durante o atual contexto sanitário. “Com a pandemia tá mais difícil de ajudar o próximo, muito por causa do medo (de infecção)”, diz.

Segundo a delegada Sabrina, outro motivo que pode fazer as vítimas não abordarem o assunto é o constrangimento de relatar a violência, ainda mais quando são os casos envolvendo abuso sexual.

Esta dificuldade em tentar sair das amarras da violência, segundo a autoridade, também ocorre porque os crimes contra as crianças e adolescentes acontecem em sua maioria dentro de casa. E quando é extrafamiliar, o agressor é um conhecido, a exemplo de um amigo dos pais ou um funcionário do condomínio onde a vítima vive. “A grande maioria dos casos que chegam para nós são de crianças e adolescentes sofrendo no ambiente intrafamiliar. De fora é exceção”, justifica.

Dados do Centro de Referência em Atendimento Infanto-Juvenil (Crai) corroboram com o certo “perfil” dos agressores. Localizada em Porto Alegre, a organização é uma parceria entre a Prefeitura de Porto Alegre e a SSP, e funciona por meio do Instituto-Geral de Perícias (IGP) e da Polícia Civil. A entidade é especializada em atender crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Elas chegam para atendimento e passam por uma perícia, para depois serem encaminhadas para acompanhamento legal.

De acordo com o Crai, em 2017 foram realizados 10.183 atendimentos, em 2018, 10.646 (alta de 4,5% em relação ao ano anterior), e em 2019 foram atendidas 8.866 vítimas (queda de 16,7% comparando com o ano antecedente).

Em 2020, por sua vez, até o mês de agosto, o centro atendeu 4.017 casos. Neste ano, a instituição passou também a fazer uma análise dos agressores das crianças e adolescentes e pôde constatar que de fato a maioria dos criminosos são conhecidos das crianças e adolescentes, pois com base em 304 vítimas nunca antes atendidas pela organização, 60,2% declararam que o abusador era próximo (27,3% amigo/conhecido, 18,4% pai e 14,5% padrasto).

De acordo com a socióloga e psicóloga Elizabeth Mazeron, uma das razões para a violência, e esta de forma geral, contra crianças e adolescentes ser amplamente difundida é porque ela é enraizada culturalmente na sociedade como uma forma de educar. “Nós somos educados como a violência sendo um instrumento. A gente quer filhos que sejam sensatos, mas pra que elas atinjam isso eles vão levar umas palmadas, então, é uma cultura da violência”, pontua.

Para a especialista, é difícil conhecer alguém na qual, por exemplo, não apanhou sequer um pouco dos pais durante a convivência, e no cotidiano existem diversos jargões naturalizando a agressividade. Outro tópico importante a ser ressaltado pela socióloga é que a violência contra crianças e adolescentes está presente em todas as classes sociais, não sendo exclusiva dos menos afortunados.

Segundo a psicóloga do Crai, Ana Hornos, os crimes atingem a sociedade como um todo, e o que pode diferenciar é a forma como a violência contra as crianças e os adolescentes chega nas autoridades. Para a especialista, as agressões tendem a ser menos expostas em famílias com mais dinheiro por conta do receio da exposição ligado a interesses. “A violência, talvez ela seja mais visível nas famílias mais pobres, mas ela tá presente em todas as famílias. A diferença tá de repente nos meios pra isso. Talvez um pai de classe alta, ele não pegue um cinto pra bater no filho, talvez uma coisa mais branda, ou isso fica mesmo no sigilo”, explica.

A violência contra crianças e adolescentes pode resultar em diversos traumas para a vida das crianças e dos adolescentes. Segundo a psicóloga Ana, no entanto, é imprescindível ressaltar que não há um receituário pronto sobre como as vítimas irão se comportar após terem passado por experiências violentas, pois as vivências de cada um são complexas e podem estar atreladas a outros tipos de problemas. “A gente pode comumente associar tudo a abuso, por isso a gente tem que ver o contexto e juntar mais de um sintoma desse tipo de questão”, enfatiza.

A especialista, contudo, aponta para comportamentos que podem vir a estarem presentes em vítimas de violência sexual, por exemplo. Um deles é o desencadeamento da depressão, a presença de ideias de morte e a automutilação, como forma de colocar o mau sentimento para fora.

Parte destes fatores é o caso de Vítor Madureira, como foi explicitado no começo da reportagem. Em decorrência da violência que sofreu, ele chegou a ter pensamentos suicidas. Além disso, ao longo do tempo, foram diversas as complicações psicológicas em razão do abuso, que foram desde insegurança até problemas de ordem sexual.

Foi buscando o método alternativo de hipnoterapia que, segundo ele, conseguiu estar mais em paz com o histórico de violência. Hoje, hipnoterapeuta, ajuda as pessoas a lidar com o passado de uma forma melhor. E assim como Mickaely, ele também lançou este ano um vídeo no Youtube contando melhor a sua trajetória.

Outro ponto essencial visto por Ana, é que é comum que crianças e adolescentes vítimas de violência se tornem extremamente desconfiadas de pessoas em seu núcleo social, pois elas começam a pensar que se o próprio avô ou pai, por exemplo, cometeu uma atrocidade com elas, não há perspectiva de se sentir segura com o restante das pessoas. Embora tenha sido um estranho que a violentou, Mickaely conta que em um ponto da sua vida, ela não confiava em ninguém, algo na qual a impossibilitou de viver uma vida comum com a dos outros jovens.

De acordo a delegada Sabrina, alterações no comportamento das crianças e adolescentes podem também não indicar que estejam passando por uma situação de vulnerabilidade, mas é importante dobrar a atenção a partir disto. “Aquela criança que começa a andar e de uma hora pra outra retrocede é algo a ser investigado, questão de mudança de humor, o baixo rendimento escolar”, exemplifica.

A exposição à violência também é capaz de tornar as vítimas agressivas, criando assim um ciclo de violações. Segundo a psicóloga Ana, isto acontece por vezes até em indivíduos com pouca idade. Em sua rotina de trabalho, ela relata que são acolhidas crianças de 12 anos, por exemplo, já com histórico de atividades sexuais com meninos ou meninas de oito, ou ainda com faixas etárias ainda mais diferentes. “Dependendo da idade não é um jogo sexual. Um de 15 com outro de oito já não é porque um é adolescente e o outro é criança. A gente entende como uma certa violência”, analisa.

É árduo o caminho para um futuro onde o cinza da violência possa ser colorido pelo respeito ao corpo e a mente dos pequenos. De acordo a socióloga e psicóloga Elizabeth, a sociedade está acostumada com a vulnerabilidade das crianças e adolescentes. “A gente tem que exercitar a empatia, uma palavra que tá tão moderna hoje, e que pode fazer com que a gente possa olhar o outro e pensar como seria se a gente estivesse no lugar dele. Mesmo que tu não bata numa criança, a gente pratica essa violência quando a gente não faz nada”, enfatiza.

A delegada Sabrina, por sua vez, destaca a educação como forma de lutar contra o problema. De acordo com a autoridade, as escolas deveriam desde cedo ensinar as crianças sobre a importância de saber que ninguém tem o direito de violar os seus corpos, sempre fazendo uso de uma linguagem condizente com as faixas etárias. “O ideal seria seria se elas soubessem nomear cada parte do corpo, diferenciar o que que é um toque bom e ruim, saber que é inadequado qualquer adulto tocar em uma parte íntima”, expressa.

Sabrina ressalta o papel de cidadão de cada um em denunciar supostos casos de violência. Segundo ela, muitas pessoas acabam não recorrendo à polícia com receio de fazer uma acusação sem provas, mas o que deve ser considerado acima de tudo é a suspeita, pois ela não é uma acusação em si.

Já para Madureira, é importante que a sociedade também esteja apta a ouvir os relatos de quem já passou por uma situação de violência, para que o sofrimento delas seja validado. E Mickaely deixa outra importante mensagem: busque ajuda profissional.

Disque 100: recebe denúncias contra crianças e adolescentes por todo o país.

Brigada Militar: pode ser acionada pelo número 190 em qualquer cidade do Rio Grande do Sul.

Polícia Civil: basta ir à delegacia ou passar a informação via telefone, pelo Disque Denúncia, que atende pelo número 181.

Conselho Tutelar: as denúncias podem ser realizadas através do Disque 100, diretamente no Conselho Tutelar mais próximo do local onde se dá a ocorrência e no Balcão de atendimento do Ministério Público.

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Lucas Eliel
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23 • Esteio, RS • Jornalista • Movido por conteúdos que tragam uma visão humanizada dos fatos