Vidas negras importam?

Camilla Swider
Reportagensespeciaisfapa
8 min readDec 18, 2020

O racismo estrutural fortemente exposto pela pandemia do novo coronavírus.

Retrato do racismo estrutural ainda mais escancarado na pandemia. Foto: Camilla Swider

Por Camilla Swider, Jonas Ramgrab e Nayara Souza

O racismo está enraizado na história da humanidade. No Brasil, são séculos de descaso com aqueles que, hoje, são considerados a maioria da população. Com a chegada da pandemia do novo coronavírus, que assola o planeta, a morte de brasileiros negros por covid-19 e a dificuldade de acesso dessa parte da população a saúde, evidencia ainda mais essa discriminação. Segundo o Ministério da Saúde, a taxa de letalidade de negros e pardos é de 45% e em algumas regiões do país, o número de óbitos é cinco vezes maior que o da população branca.

A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) aponta que 67% dos negros dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS), sendo que, esses pacientes também são os que mais apresentam quadros considerados agravantes para o covid-19, como a diabetes e a hipertensão. Em São Paulo, o risco de negros morrerem pela doença é de 62%, conforme a Secretaria Municipal da Saúde.

Esses dados revelam uma situação alarmante de negligência com a saúde da população negra. Quando se fala em saúde, não se trata do atendimento, mas da estrutura, que há milhares de anos é carente. Quem sofre com a falta de investimentos nas políticas de atenção básica, consequentemente são os 56% dos brasileiros que se declaram negros e pardos, equivalentes há mais de 100 milhões de pessoas, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

No Brasil, o valor per capita que o governo (federal, estadual e municipal) gasta ao dia por habitante em saúde é pouco mais de três reais, ou seja, menos de R$1.400 ao ano, segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM). Um número insignificante e que expõe a necessidade de um olhar mais empático com a estrutura da saúde brasileira, que também inclui o saneamento básico. “Se eu não tenho água, como vou reproduzir a minha higiene de lavar as mãos?”, questiona Ubirajara Toledo, integrante do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra (CODENE).

A indiferença que perdura há séculos. Foto: Camilla Swider

Para ele, é fundamental um investimento pesado na estratégia da saúde familiar, que abrange a qualificação e preparação dos profissionais para atender essa população carente, cadastros detalhados dos perfis dessas pessoas, água potável, esgoto tratado e habitações dignas. Ubirajara criticou o discurso dos governos de investir em modernidade e abertura de vias nos bairros mais pobres, enquanto há o descaso com a saúde, ainda mais perceptível diante de um cenário pandêmico. Essa atenção básica na saúde é imprescindível para fazer a diferença em situações como a que o país vive.

O médico Tony Sander da Silva , que atua há quatro anos na Estratégia de Saúde da Família (ESF), em Sapucaia do Sul, destaca que as ESF’s tentam melhorar o conhecimento da população em relação às doenças, principalmente, agora com a covid-19: “Por se tratarem de pessoas mais humildes acabam tendo dificuldades para assimilar as consequências de uma pandemia”, afirma. Já a médica Maite Domingues, que atua na ESF da Família Natal, também em Sapucaia, relata que a demanda de pacientes com coronavírus é bastante variável, mas em relação as mortes, ela disse que a maioria dos óbitos não ocorre com a população negra: “Eu tenho visto mais pacientes brancos que negros”, finaliza.

Atuante na Região Metropolitana e na Serra, o médico Rodolfo Monteiro, afirma que no momento atual, muito do que as pessoas sabem sobre saúde vem dos veículos de comunicação, mesclando o conhecimento científico e responsável com informações irresponsáveis e com viés político. Porém, sobre o atendimento ele destaca: “Infelizmente, não podemos dizer que o atendimento dessas populações é adequado, mas o Sistema Único de Saúde já consegue chegar muito próximo dessas pessoas, com uma verdadeira revolução na assistência a essa maioria desde a sua criação”.

Pandemia agravou problemas da população negra

Segundo Ubirajara, integrante do CODENE, quando se trata de saúde, a população negra vivia em condições sub-humanas desde a escravidão, então essa parcela da população vai sofrer diversas patologias ao longo do tempo: “essa população que é a cliente do Sistema Único de Saúde (SUS)”, ainda sobre a temática de saúde, ele fala sobre a necessidade de uma maior atenção dos órgãos públicos com os negros: “Políticas que garantam a inserção da população negra que às vezes estão fora desse processo de crescimento e inclusão social, na sociedade que a gente vive”, conclui.

A população negra é a mais prejudicada diante da pandemia do novo coronavírus, as dificuldades não são apenas no atendimento à saúde, mas também no mercado de trabalho. Segundo dados do IBGE, no segundo trimestre de 2020, o primeiro sob os impactos do coronavírus, a taxa de desemprego atingiu 13,3%. Ao analisar os dados pela cor da pele, a população negra atingiu a marca de 17,8% contra 10,4% de brancos, sendo essa a maior diferença, desde 2012.

O alto índice de desemprego consequentemente gera a falta de alimentação na mesa das comunidades mais carentes. A assistente social Susane Souza, destaca que não existem projetos em tramitação para prestar assistência a esta taxa mais vulnerável da população durante a pandemia de covid-19: “As políticas públicas devem ser para o acesso de todas as pessoas, no entanto, ao falarmos na política pública da assistência social, a população que mais acessa é a população negra”, confirma. Susane conta que algumas ações estão sendo feitas, através de movimentos e da sociedade civil, para tentar ampliar benefícios assistenciais, como a doação de cestas básicas.

Black Lives Matter: uma luz diante do racismo

Judoca expõe nas redes sociais mensagem racista que recebeu. Foto: Reprodução/Instgram

Além desses problemas de acesso à saúde e o desemprego, na pandemia surgiu o movimento “Black Lives Matter” após a morte de George Floyd, um homem negro que morreu nos Estados Unidos após abordagem da polícia americana, onde um dos policiais o colocou no chão e pôs seu joelho em seu pescoço, matando Floyd por asfixia. O movimento ganhou força e apoio de pessoas do mundo inteiro, mas não foi um caso isolado. Acontece a todo instante, principalmente, no Brasil. Em outubro deste ano, a judoca brasileira naturalizada portuguesa, Rochele Nunes, recebeu de forma privada, uma mensagem racista em sua rede social e a tornou pública. A mensagem dizia: “Foi para a Europa, mas devia ir para o inferno, macaca de merda”.

Em relato abaixo, a mãe da judoca, Rosângela Nunes, conta um pouco sobre o início da carreira da filha e sobre o racismo que ela sofreu.

Rosângela fala um pouco sobre a filha judoca.

Um dos casos mais chocantes ocorridos na pandemia no país, foi o homicídio de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, um homem negro que foi espancado até a morte por seguranças do supermercado Carrefour, em Porto Alegre. O fato ocorreu no dia 19 de novembro, na véspera do Dia da Consciência Negra, e teve grande repercussão na mídia nacional e internacional.

Foram realizados protestos em frente as redes do Carrefour em todo o Brasil. Em Porto Alegre, local do fato, as manifestações aconteceram em frente ao supermercado onde o homem foi morto e em outra franquia localizada na avenida Bento Gonçalves, que liga a Região Metropolitana a capital, onde foram utilizados cartazes com a frase “Vidas Negras Importam” com o pedindo justiça pela morte de João. Já a rede Carrefour oficializou a criação de um fundo para promover a inclusão racial e social de negros e combater o racismo no Brasil.

Homicídio foi destaque nos jornais internacionais. | Diversos protestos ocorreram em Porto Alegre. Foto: Jean Costa

Sobre o referido caso, o senador Paulo Paim disse: “Tivemos alguns avanços, mas a morte de João Alberto espancado até a morte por seguranças do supermercado evidencia o que denunciamos com frequência no Senado”. Em 2015, ele apresentou o Projeto de Lei do Senado (PLS) 787 para incluir a previsão de agravante da pena de crimes praticados por motivo de racismo e que a mesma foi aperfeiçoada pelo relator de Minas Gerais, Rodrigo Pacheco do Democratas (DEM), ampliando a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional.

Muitos outros casos de racismo aconteceram ao longo da pandemia e causaram a perplexidade de todos. Para o auxiliar de serviços gerais, Carlos Albene Marques, de 63 anos, o racismo é uma pobreza de espírito. Ele afirma que se impõe e dedica todo o respeito a todas as pessoas independente da cor, credo ou opção sexual, e destaca que, ele não depende e não defende a cota para negros: “luto muito com a cabeça erguida, como homem e como cidadão, pois tudo que tenho vem graças a minha determinação” e ainda concluiu: “quanto a ser racista, pra mim é um invejoso, impotente, querendo ser “neguinho”.

Paim destaca que os movimentos negros no Brasil têm papéis essenciais para promoção da igualdade racial e o combate ao racismo. “A luta dos movimentos é secular e se hoje existem políticas públicas pontuais voltadas para a população negra é graças ao sangue e suor derramado pelos nossos ancestrais”, afirma. Ele ainda ressaltou que tem trabalhado em leis para os negros, como o projeto de lei n.º 4373 de 2020, tipificando como crime de racismo a injúria racial e a lei de cotas raciais nas universidades.

Vidas negras IMPORTAM! Foto: Camilla Swider

A esperança que vem das urnas e da iniciativa privada

Em Porto Alegre, nas eleições municipais de 2020, tivemos o surgimento da primeira bancada negra da capital, sendo formada por cinco vereadores. São eles Karen Santos e Matheus Gomes do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Bruna Rodrigues e Daiana Santos do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e Laura Sito do Partido dos Trabalhadores (PT). Bruna Rodrigues, que já havia sido candidata a Deputada Estadual nas eleições presidenciais em 2018, destaca que esta vitória é fruto de uma luta ancestral, histórica e de muita resistência de negras e negros gaúchos e afirma: “Viemos para mostrar que o combate ao racismo estrutural é o único caminho para a construção de uma cidade igualitária e democrática”.

Já pensando na inclusão de negros no mercado de trabalho, a rede varejista Magazine Luiza lançou um programa de trainee apenas para esta parte da população e que está previsto para ser executado em 2021. Sobre esse projeto, o senador disse: “o fortalecimento das redes é fundamental, para que ações como essa sejam feitas com a maior agilidade como ocorreu nesse caso”, finaliza.

A comunidade negra cumpre um papel importante no processo civilizacional do mundo, mas são considerados inferiores por essa onda de preconceito. São cerca de 300 anos de uma escravidão, em que os negros eram jogados à margem de uma sociedade sem qualquer tipo de política. Após pouco mais de 130 anos do fim da era escravista, a pandemia do coronavírus, em 2020, traz à tona a maior evidência de um vírus que sempre se fez presente na história do Brasil: o racismo.

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