RIO GRANDE DO SUL

Violência doméstica, uma pandemia invisível e invencível

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10 min readDec 18, 2020

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Em um ano de isolamento social 78.817 gaúchas solicitaram medidas protetivas no estado em 2020

Violência doméstica/ foto: Jessica Cardoso

Por Jessica Cardoso e Amanda Barros

De março a outubro de 2020, durante o distanciamento social, mais de 30 mil mulheres solicitaram medida protetiva, quase um caso a cada 2 minutos no Rio Grande do Sul. Esse número é bem mais expressivo se for contado de janeiro a dezembro foram 78.817 solicitações. Nossa casa deveria ser o lugar mais seguro que poderíamos estar em meio a uma pandemia, mas para algumas mulheres gaúchas essa não é uma realidade. Um tapa, uma proibição, um xingamento são alguns exemplos de violência doméstica que elas enfrentaram durante este período de isolamento social ocasionado pelo coronavírus. Além de agredidas, muitas delas não estão inseridas no mercado de trabalho e dependem financeiramente de seus agressores, dificultando ainda mais a denúncia.

O isolamento social acabou jogando luz em um problema que já era recorrente nos noticiários do Brasil desde antes mesmo da instalação de Covid-19 no país. A pandemia invisível e invencível da violência doméstica. Onde cada mulher brasileira precisa além de vencer o coronavírus, vencer a violência doméstica. Segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMDH), o número de ligações feitas para o 180 relatando violência contra a mulher deu um salto, crescendo 40% em abril em comparação com o mesmo mês em 2019. Outro indicador: segundo o Atlas da violência 2020, 68% das mulheres assassinadas no Brasil em 2018 eram negras. Esta mesma fonte informa que a 2 minutos um registro de lesão corporal dolosa foi efetuado no Brasil, 263.067 casos ao ano.

Enquanto mulheres não agredidas se sentem presas em casa, seja em home office ou isolada de familiares por questões sanitárias, as mulheres vítimas de violência já são habituadas ao isolamento. O primeiro passo de um agressor geralmente é retirar a companheira do seu ciclo de amizade e familiar, o motivo é simples: não dar oportunidade para que ela tenha uma rede de apoio.

Em Porto Alegre, a Casa de Apoio Viva Maria foi inaugurada em 1992 e está sob a responsabilidade da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre. Lá é disponibilizado atendimento jurídico, social, ocupacional e de enfermagem para mulheres em situação de violência e seus filhos. Em relação ao agressor encontrar as vítimas na casa de apoio, a Assistente Social e Coordenadora da Casa de Apoio Viva Maria, Saionara Santos Rocha, diz que as abrigadas não ficam com o telefone celular, solicitam medida protetiva, além do abrigo ter endereço sigiloso e contar sempre com um guarda armado na porta.

VÍTIMA E MERCADO DE TRABALHO

A violência contra as mulheres possuem 4 faces, são elas: física, sexual, psicológica e econômica. Proibidas de trabalhar, agredidas e em extrema fragilidade, essas mulheres se sentem presas às situações de agressões, abusos físicos e psicológicos. Um fator importante neste quesito é a dificuldade que as vítimas encontram para encontrar e manter um emprego. Maridos ciumentos, baixa autoestima e vergonha em chegar ao trabalho com marcas das agressões fazem com que essas mulheres não estejam no mercado de trabalho. E com dependência financeira do agressor, se torna mais difícil sair deste ciclo.

Perguntada sobre porque muitas mulheres não denunciam, a psicóloga e especialista em terapia de família e de casal Janaína Zimmer ressalta que muitas vezes a mulher não consegue visualizar como ela se sustentaria sozinha financeiramente, sem outros auxílios e sem uma rede de apoio.

As mulheres que sofrem violência doméstica recorrentes não conseguem se enquadrar no mercado de trabalho por causa do nível de estresse delas, de depressão e outros transtornos. Geralmente elas são pessoas mais ansiosas, vão estar mais deprimidas, mais desmotivadas. Por conta desses traumas é inevitável o adoecimento psicológico” ressalta a psicóloga.

O QUE ACONTECE QUANDO DENUNCIAM

De acordo com a Secretária de Segurança Pública do Rio Grande do Sul (SSP-RS), durante o período da pandemia, de março a novembro, foram feitas 12.862 denúncias de agressão física pela Lei Maria da Penha em todo o estado. No mesmo período foram registrados 57 feminicídios. Esses dados nos mostram que, apesar de ser uma decisão árdua, muitas mulheres optam por denunciar seus agressores. Nesse momento surgem diversas dúvidas e medos.

No Brasil inteiro vigora a Lei Maria da Penha, que foi criada com o objetivo de coibir a violência contra mulheres. A lei foi sancionada em 2006 e, nos seus 46 artigos, protege as mulheres dos 5 tipos possíveis de violência de seus parceiros e familiares: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Além disso, a Lei Maria da Penha garante delegacias e patrulhas especiais da Brigada Militar especializadas no atendimento a mulheres.

A coordenadora da Patrulha Maria da Penha de Porto Alegre, Major Karine Brum, explica que o acionamento da patrulha em casos de emergência é feito pelo número 190 e pode ser realizado tanto pela vítima quanto por outras pessoas que percebam que existe uma mulher em situação de violência. Ainda de acordo com a major, a percepção no seu trabalho é de que os casos de violência doméstica cresceram durante a pandemia.

Os registros policiais desses delitos, como ameaças e lesões corporais, caíram no período, mas o isolamento social dificultou as denúncias formais e muitos casos seguem subnotificados”, afirma.

PANDEMIA E MEDIDAS PROTETIVAS

O isolamento social torna o processo de denúncia para quem sofre violência doméstica mais difícil. 24 horas por dia ao lado do seus agressor, muitas vezes com dificuldade financeira, filhos e auto estima lá no chão, muitas mulheres perdem suas expectativas de vida, seus sonhos. Além do agressor estar sempre por perto, muitas delas perdem suas redes de apoio por pressão do companheiro. Sem família, sem amigas, sem colegas de trabalho, o ciclo tende a se perpetuar. Um beco sem saída, até que aparece uma luz ao fim do túnel.

As medidas protetivas, nesses casos, são a maneira mais recorrente que as vítimas tem de tentar garantir que o agressor não volte a se aproximar da casa depois da denúncia. De acordo com a Major Karine Brum, o mais comum, de acordo com a legislação, é que o agressor seja tirado do lar no momento da denúncia.

A vítima pode manifestar o desejo de ir para outro local seguro ou até mesmo para casa de passagem onde haja. A questão da obrigatoriedade depende da avaliação do poder judiciário”, afirma a Major..

No entanto, na prática, nem sempre essa é a realidade. Ana (nome fictício) fez a denúncia na Delegacia da Mulher, porém não ficou satisfeita com a forma que a medida protetiva é aplicada, pois o agressor frequenta casa de parentes próximo de sua residência, como se nada tivesse acontecido. Por medo, ela resolveu se mudar a fim de se afastar do agressor.

A medida só funciona se a pessoa for pega no ato, se descumprir e for até a vítima ou a vítima sofrer agressões. Liguei pra delegacia da mulher para pedir a ronda Maria da Penha e foi isso que me disseram”, afirma a vítima.

Já Paula (nome fictício), 37 anos, fez a denúncia em uma Delegacia da Mulher na região metropolitana de Porto Alegre. Foi a delegacia efetuar a denúncia e dois dias após o pedido da medida protetiva, foi notificada pelo fórum.

“Ainda é recente, mas a medida tem ajudado”, ressalta a vítima.

Perguntada sobre haver algum tipo de prisão ao agressor, Paula afirma que apenas entram em contato com ele para dizer que não pode se aproximar. Porém, também acredita que a medida serve para cientes de que se acontecer alguma coisa com ela, existe um culpado.

MUDANÇAS COM A PANDEMIA

Tendo em vista a dificuldade que o isolamento social criou, impedindo as denúncias, o Governo Federal sancionou, em julho, uma lei que assegurou o pleno funcionamento de todos os órgãos que atendem denúncias de crianças, mulheres, idosos e pessoas com deficiência vítimas de violência doméstica ou familiar. A lei também assegurou que os exames de corpo de delito continuassem sendo feitos com o prazo normal e as medidas protetivas de urgência passaram a poderem ser feitas online.

Além da iniciativa do Governo Federal, diversas outras instituições produziram campanhas para auxiliar no processo de denúncia. Uma das campanhas que ficaram famosas foi a da Máscara Roxa, criada pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul. A vítima, ao ir a uma das farmácias participantes e pedir por uma máscara roxa, é ajudada pelo atendente, que pega as informações da vítima para denunciar.

Dados Violência Doméstica RS 2015-2020 fonte: Polícia Civil RS

INOVAÇÃO PARA ENFRENTAR VELHOS PROBLEMAS

Com a evolução tecnológica ficou mais fácil buscar uma rede de apoio, mesmo que virtualmente. O Mete a Colher é uma rede colaborativa que contribui com as vítimas de violência doméstica. Nele as mulheres que estão enfrentando essa situação podem contar seus relatos, trocarem informações e experiências, e recebem respostas de outras mulheres dispostas a ajudar de forma voluntária. O contato entre elas se dá via aplicativo mobile, nele as vítimas podem encontrar três opções para colaborar: apoio emocional, ajuda jurídica e oportunidades de trabalho. A iniciativa já conectou cerca de 13000 mulheres, ajudou 2000 em 63 cidades brasileiras. Para garantir a segurança das vítimas, as conversas são apagadas a cada 48 horas.

“Mete a Colher acredita muito no poder da informação e comunicação. Diariamente conversamos com mulheres sobre violência, onde buscar ajuda, falamos de delegacias, centros de referência, leis, além de fazer um acolhimento cheio de empatia. Tecnologia e Informação se unem para um bem maior: auxiliar mulheres que desejam sair dos relacionamentos abusivos que vivem”, comenta Renata Albertim, CEO do Mete a Colher.

Você encontra mais informações pelo site https://meteacolher.org/ ou na sua loja de aplicativo.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) lançaram a campanha “Sinal Vermelho”. As mulheres vítimas de violência doméstica pintam um X na cor vermelha na palma da mão e podem se dirigir a uma farmácia e solicitar ajuda. A medida funciona em diversas cidades do país. Além desta iniciativa, há no Rio Grande do Sul a campanha “Máscara Roxa”, que também funciona com o apoio de farmácias cadastradas, a vítima pode solicitar no balcão do estabelecimento uma máscara na cor roxa e as funcionárias solicitam os dados e avisam as autoridades policiais.

Essas foram algumas das ações encontradas pelas autoridades para auxiliar as vítimas, pois muitas delas ficam sem meios de comunicação para que possam denunciar já que com o isolamento social o agressor se encontra o dia todo no seu convívio, e muitas vezes só saem de casa para atividades essenciais como por exemplo farmácia e supermercado.

MUNICÍPIOS GAÚCHOS

As 10 cidades gaúchas com mais casos de agressão física (Lei Maria da Penha)

● Porto Alegre — 2.222

● Canoas — 503

● Pelotas — 503

● Caxias — 478

● Santa Maria — 405

● Passo Fundo — 336

● Alvorada — 323

● Gravataí — 315

● São Leopoldo — 308

● Rio Grande — 283

CICLO DE ABUSO

VÍDEO — psicóloga Janaína Zimmer

mural de frases que vítimas ouviram/situações com de os agressores.

[Nomes fictícios — idades reais na época da agressão]

DENUNCIE

Para efetuar denúncia entre em contato com os seguintes canais:

Via ligação para o número 180 ou com a Brigada Militar 190, funciona diariamente 24h por dia, se tiver acesso à internet pode entrar em contato com as delegacias online pelo site delegaciaonline.rs.gov.br. Também há a possibilidade de denúncias via WhatsApp (51) 98444–0606.

Débora (nome fictício) 32 anos, solicitou a medida protetiva em de 2018, renovando a cada 6 meses. Para efetuar a denúncia, foi a uma delegacia e registrou boletim de ocorrência. Após solicitou no Fórum a medida protetiva. Um obstáculo que ela relata é a demora para localizar o agressor e notifica-lo, fazendo com que a medida passe a valer apenas após ele ser informado.

Perguntada se ela tem algum contato de emergência para informar rapidamente as autoridades caso o agressor se aproxime ela relata que tem whatsapp direto do comando da Brigada Militar que cuida da Maria da Penha.

“Estou sendo muito bem assistida pela lei Maria da Penha, as meninas da Brigada Militar estão sempre à disposição.” Relata Débora.

A vítima se sente segura com a medida, e acredita que este tipo de mecanismo ajuda bastante as mulheres em situação semelhante.

Denuncie violência contra a mulher/ Foto: Jessica Cardoso

SUPERAÇÃO

“Quando a violência acaba a vida recomeça” são as palavras ditas por Maria da Penha em live sobre “Desafios na identificação e quebra do ciclo da violência”, transmitida no dia 4 de dezembro pela plataformas do Governo do Rio Grande do Sul.

Se ela que dá nome à lei máxima de proteção à mulher em nosso país, foi forte você também pode ser. Denuncie!

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