A vida após o diagnóstico de quase morte

Roberto V. Belmonte
Reporteros
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12 min readJun 21, 2018
Eduarda de Carvalho em sua festa de 15 anos comemorada em Passo Fundo em 2016 — Crédito: DS Fotografia/Divulgação

Adolescente que venceu o câncer mostra que acreditar na própria vida é a melhor forma de encarar a doença. Acompanhe nesta reportagem a luta de uma família que percorreu 280 quilômetros em busca do extraordinário.

Por Camilla Swider, Gabriele Torbis, Juliana de Faria e Willian Cardoso

Ficar na expectativa sobre o que o médico tem a dizer da saúde do filho, que já não está bem há semanas, parece uma eternidade para muitas mães, sabendo que um diagnóstico pode mudar tudo. Essa é a realidade de muitas famílias no Brasil, segundo pesquisa realizada no ano passado pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca), que confirmou que a cada hora uma criança ou adolescente morre vítima de algum tipo de câncer. Ainda conforme a pesquisa, cerca de 5% dos cânceres nos jovens são causados por mutações genéticas passadas de pais para filhos.

Depois de consultar tantos profissionais que não sabem ao certo o que há de errado, chega o dia em que um deles diz de maneira taxativa: “Seu filho tem câncer”. Apesar do medo do desconhecido, nasce a coragem para lutar e a esperança que nem mesmo essas famílias sabiam que tinham. Segundo a assistente social Letícia Barreto, cinco anos atuando no Instituto do Câncer Infantil (ICI) de Porto Alegre, a grande maioria das famílias, além de encarar o medo da morte, carrega consigo a necessidade financeira. “É difícil auxiliar uma pessoa que precisa de algum recurso. Já aqui essas questões não acontecem, cobrimos a demanda”, explica.

Marinete de Carvalho e sua filha Eduarda em uma das salas do Instituto do Câncer Infantil — Crédito: Gabriele Torbis

Dona Marinete Fátima Batista de Carvalho, 40 anos, e a filha Eduarda, hoje conhecem bem o caminho do prédio 850 da Rua São Manoel em Porto Alegre. Elas aprenderam na marra a encarar com certa intimidade procedimentos médicos complexos, que há alguns anos atrás sequer imaginavam o que se tratava como o linfoma, neuroblastoma, sarcoma ou retinoblastoma — definições para alguns dos tipos de câncer mais comuns em crianças e adolescentes no Rio Grande do Sul. Vocabulário estranho e assustador quando anunciado num diagnóstico para uma filha.

Traduzir este dicionário desconhecido a elas começou cedo, logo na infância. A adolescente e tímida Eduarda Carvalho Ribeiro, 16 anos, conhecida carinhosamente como Duda, viveu literalmente na pele como é passar por uma doença cancerígena ainda na infância. Na época com 12 anos, ela passava mal constantemente na residência da família e na escola. Certo dia a dona Marinete recebeu uma ligação da escola Firmino Frizzo — onde a filha estudava na cidade de Capão Bonito do Sul, singelo município do nordeste gaúcho. Duda havia desmaiado na aula.

No primeiro momento, a família se perguntava o que houve com a Duda. “Ela nunca havia tido desmaios repentinos”, conta a mãe. Foi então que, com uma espécie de instinto materno, Marinete levou a filha até o hospital São Vicente de Paulo no município vizinho de Passo Fundo, e lá foi constatado pelo oncologista Pablo Santiago que sua filha sofria um estágio inicial de Leucemia — câncer que ocorre na formação das células sanguíneas, dificultando a capacidade do organismo de combater infecções. “Somente pelos sintomas o médico constatou que minha filha tinha leucemia”, diz a mãe com um olhar triste relembrando o passado.

Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Nacional do Câncer (Inca), em 2017, a leucemia é o tipo de câncer mais frequente em crianças e adolescentes na maioria dos países, inclusive no Brasil, representando em números, 25% e 35% de todos os tipos, e sendo a leucemia linfóide aguda (LLA) a de maior ocorrência em crianças de zero a 14 anos. Em uma matemática básica, de 100 crianças e adolescentes com câncer, 90 delas tem a faixa etária menor do que 14 anos, o que assusta os pesquisadores.

Um lar inesquecível

O Hall de entrada do Instituto do Câncer Infantil em Porto Alegre (RS) — Crédito: Camilla Swider

A sede do Instituto do Câncer Infantil (ICI), localizada no bairro Santa Cecília, tem por objetivo quebrar a sobriedade do ambiente onde os pacientes oncológicos permanecem ao longo do tempo em tratamento. Logo na entrada um leão de braços abertos recepciona quem chega. No peito, o mascote exibe uma medalha com a frase “coragem”.

O presidente do Conselho Deliberativo do ICI, Lauro Quadros, explica a escolha da história do Mágico de Oz para representar o instituto: “Existem duas razões, o leão representa a coragem que crianças e adultos precisam para vencer a doença; e a estrada dos tijolos amarelos representa a estrada dourada da saúde, que está sendo construída tijolo a tijolo, e simboliza a construção do caminho da cura”.

O Instituto do Câncer Infantil é uma entidade filantrópica, sem fins lucrativos, referência no tratamento para a cura do câncer. Foi criado em 1992 pelo oncologista pediátrico Algemir Lunardi Brunetto, e pelo radialista Lauro Quadros. Nas paredes da sede estão gravados os nomes de empresas e pessoas que fizeram as primeiras doações para a fundação do instituto, até hoje a entidade se mantém com doações e campanhas de arrecadações de fundos, como a Corrida Pela Vida e o Mc Dia Feliz.

Um novo destino da futura artista

A torcedora gremista acompanhada de Jair Kobe — Credito: Eduarda de Carvalho/Arquivo pessoal

Uma viagem de quase seis horas é o que separa o percurso da família Carvalho até Porto Alegre, no Instituto do Câncer Infantil. De acordo com Mônica Gottardi, coordenadora do Núcleo de Atenção ao Paciente da ONG, assim como as duas, a maioria das famílias tratadas no instituto são de cidades do interior do estado. Em números a coordenadora explica que, em 2017, a quantidade de pacientes jovens atendidos do interior gaúcho representou 59%, seguido dos municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre com 24%.

Abrir mão do emprego para dedicar mais atenção a sua filha doente; novas despesas com viagens à capital distante — aproximadamente 280 km da cidade natal; passar menos tempo com o filho recém nascido, o pequeno Ollyver e com o marido; ter que parar de estudar por tempo indeterminado. Estas foram algumas questões que a família Carvalho foi obrigada a deixar para trás — mas não na memória. “Tenho muitas saudades de casa”, diz a jovem Duda. Marinete, sua mãe, conta que sempre sonhou conhecer Porto Alegre, mas nunca pensou que realizaria seu desejo de forma tão triste e inesperada.

O nome Eduarda quer dizer “protetora de riquezas”. Talvez por isso, a menina de 16 anos que hoje passa a maior parte de seus dias entre as salas do instituto seja uma das adolescentes que mais estuda e desenvolve o que é aprendido dentro da instituição, como uma protetora de conhecimentos: sua maior riqueza. “Sempre gostei de artesanato, e aqui eles têm outras ideias originais com o trabalho manual”, relata.

Essa sabedoria vem a partir dos cursos oferecidos pelos voluntários do Instituto do Câncer Infantil. Entre os trabalhos com feltros, pintura em panos de pratos, guirlandas, bordados e crochê, o predileto da jovem artista é o bordado. O mesmo que no dia 22 de maio de 2018 estava produzindo em homenagem ao aniversário do irmão Pablo, hoje com 23 anos de idade. A escolha: uma toalha personalizada com seu nome acompanhado do símbolo do Grêmio. Apaixonada por artesanato, Duda comparece semanalmente nas oficinas que acontecem no instituto, principal motivo de sua presença. “Venho sempre pelo artesanato”, informou.

Difícil encarar um câncer?! Não para a jovem

Todas às manhãs das terças-feiras no ICI, quem faz o acompanhamento das crianças e adolescentes, em conjunto com os pais, é o voluntário Gustavo Pergurara, que acredita que os jovens costumam encarar momentos difíceis como esse de forma mais positiva que os adultos. “As crianças mostram uma força que geralmente um adulto pode não ter. Dificilmente tu vês uma criança depressiva”, afirma. Gustavo também é vencedor de um câncer, e, para ele, o segredo é encarar a doença com maior naturalidade, é preciso muita determinação e esperança.

A assistente social Letícia Barreto acredita que talvez seja porque elas tenham outra concepção da morte e da finitude. “As crianças e os adolescentes sabem muito o que acontece com elas aqui. Mas aqui, por não ser um local parecido com um ambiente hospitalar, elas acabam esquecendo a realidade”, constata. Fica claro que a perda e o fim das coisas são mais simples para elas, em comparação com os adultos, tornando o processo bem mais difícil para os pais, que imaginam coisas horríveis e se enchem, naturalmente, de preocupações.

O processo de tratamento

A psicóloga da instituição, Roberta Medeiros, acredita que o acompanhamento psicológico durante o tratamento traz benefícios às crianças e adolescentes, pois é importante que compreendam todo o processo a ser enfrentado , que evidentemente é desgastante; e que saibam questionar os médicos sobre os procedimentos realizados e os efeitos das medicações, além da melhora na autoestima, principalmente quando se trata de adolescentes, que estão na fase de construção da identidade e precisam lidar com o inchaço e a queda do cabelo. “Muitos chegam tristes, angustiados e saem melhor, mais aliviados da ansiedade e da tensão”, diz.

Sobre o amparo educacional que esses jovens recebem no instituto, a psicóloga comentou ainda que ocorrem através de dois núcleos (pedagógico e psicopedagógico), onde os profissionais auxiliam nas tarefas escolares. “É uma lei (decreto-lei n° 1.044), onde a escola tem que mandar a matéria, a família traz e a gente repassa aqui”, salienta. Os voluntários responsáveis pelas áreas buscam reduzir as dificuldades causadas pelas ausências nas aulas e pelo tratamento agressivo, que influencia diretamente no desenvolvimento dos pacientes.

“Sinto mais falta pela parte do aprender”, informa Duda, que começou a frequentar o reforço escolar oferecido no instituto. A jovem que atualmente estaria cursando o segundo ano do Ensino Médio, no qual compareceu a apenas algumas aulas devido ao seu tratamento, acabou perdendo muito dos conteúdos e acredita que o reforço servirá para tirar suas dúvidas. A lei exposta pela profissional do ICI refere-se sobre o amparo educacional que as crianças e os adolescentes têm direito constitucional, assim como a Duda, que há pelo menos quatro meses não frequenta a escola.

Diagnóstico e recuperação

A vaidade da redescoberta. — Crédito: Eduarda de Carvalho/Arquivo pessoal

O diagnóstico precoce foi um fator determinante para a recuperação de Eduarda, pois ela desenvolveu a leucemia Linfoblástica aguda (LLA) Filadélfia positiva de tipo T, caracterizada pela formação de linfócitos (glóbulos brancos) imaturos na medula óssea. Ela é uma das 2.824 pacientes atendidas anualmente no ICI, segundo informações do relatório do instituto e também faz parte do principal diagnóstico de doença registrado no grupo porto-alegrense, a leucemia. A cada 100 crianças e adolescentes atendidos 48 deles possuíam a doença em seus diversos níveis, somente no ano passado. Seguidos dos linfomas (11%), e neuroblastomas (6%).

A menina de sotaque marcante não se recorda sobre a descoberta do câncer, “eu não lembro muito bem, porque foi em 2014 e nem quero”. Já a mãe conta que a filha foi descobrindo aos poucos e acabou entrando em depressão profunda, rejeitando a ajuda de psicólogos. Durante o período de internação no hospital, Duda não assistia televisão, não queria conversar, ficava irritada e até mesmo cobria o rosto quando um médico se aproximava dela. “Eu acho que ela pensava que não ia melhorar, então pensava coisas ruins, a gente sofreu muito”, desabafa.

Eduarda enfrentou intensos dois anos e meio de quimioterapia, teve períodos de fraqueza, náuseas e vômitos — reações comuns ao tratamento; além da radioterapia, no dia 21 de maio de 2017 recebeu o transplante de medula óssea — procedimento que tem por objetivo a reconstrução de uma medula saudável; porém ficou bastante debilitada e passou por uma recuperação difícil, não conseguia caminhar e precisou se alimentar por sonda, pois desenvolveu estomatite. Após seis meses do transplante seu organismo reduziu o quimerismo — junção de mais de um tipo de DNA em uma pessoa, ou seja, perdeu uma parte do transplante do doador e precisa fazer um reforço, que é aplicado a cada 21 dias.

Porém, a aplicação mais recente resultou em mais uma internação, 24 dias no total, em razão da doença do enxerto contra hospedeiro (DECH crônica), quando as células do doador atacam a do receptor, uma “briga de medulas”, nomeou Marinete. No caso da Duda ela apresentou uma condição grave, causando despigmentação da pele, náuseas, vômitos, entre outros sintomas, atualmente ela vem sendo medicada com o uso de corticóides para combater a DECH. Na reta final do tratamento contra a leucemia, a mãe da menina confirma que ela não tem mais a doença.

Em meio ao caos surge o inesperado

O zagueiro Pedro Geromel visita a menina no Hospital de Clínicas de Porto Alegre em 2017 — Crédito: Eduarda de Carvalho / Arquivo Pessoal

Duda, menina de poucas palavras, e sorrisos tímidos, tem duas grandes paixões: o estilo musical sertanejo universitário e o clube de futebol Grêmio. Mas a vida traria surpresas prazerosas para Eduarda. Além de já ter visitado o estádio do time do coração — Arena do Grêmio, na Zona Norte da capital, durante a última internação no Hospital de Clínicas em Porto Alegre, ela recebeu a visita de um jogador, o zagueiro gremista Pedro Geromel. Eduarda chegou a admitir que é fã mesmo do goleiro Marcelo Grohe. “Ele é muito bom goleiro”, disse acanhada. Mesmo assim, aproveitou cada instante com um dos ídolos do tricolor, considerado o melhor zagueiro brasileiro em atividade, conforme a Confederação Brasileira de Futebol.

Em 2016, através do projeto solidário “Desenhando Sorrisos” de Passo Fundo, a jovem teve a tão sonhada festa de 15 anos junto com cinco meninas que estavam em tratamento contra o câncer. Melina Rodrigues, coordenadora do projeto, conta que a ideia partiu de uma das meninas que sonhava com uma festa. “O hospital trouxe a demanda de fazer uma festa para todas as meninas, de 14 a 16 anos, e assim surgiu a ideia”, afirma.

Momentos de alegria durante a festa de 15 anos com o cantor Luan Santana. Crédito: DS Fotografia/Divulgação

Foram meses de organização e o evento só foi concretizado devido às doações de toda a comunidade, que se engajou para tornar esse sonho realidade. Por trás de toda essa organização havia uma grande surpresa para as jovens, durante a festa as debutantes foram surpreendidas com a chegada do príncipe, Luan Santana, que cantou e dançou a tão esperada valsa com elas e de quem Duda é extremamente fã. “A palavra é encantamento, ela parecia realmente estar vivendo um sonho. A maior realização para nós que organizamos, foi ver essa emoção e que contagiou todo mundo”, relata a coordenadora do evento.

Fim, ou um simples recomeço?

Eduarda Carvalho enfrenta o câncer com coragem — Crédito: Arquivo pessoal

Com o sorriso acanhado, cheia de coragem, nem a queda do cabelo incomodou a menina. “Eu aprendi muita coisa e cresci muito também”, disse Eduarda sobre sua doença, que ela acredita ter sido uma coisa positiva também. A jovem que tem um espírito destemido sonha em viajar e conhecer muitos lugares, entre eles a praia, o parque Beto Carrero, a Disney.

Além disso, ela pretende morar fora do Brasil. O lado valente dessa guerreira reflete também na escolha da sua futura profissão, dividida entre duas carreiras bem distintas. Duda explica que gosta das suas coisas bem organizadas como as casas planejadas, por isso, arquitetura e urbanismo, mas que também gostaria de ser policial e trabalhar na S.W.A.T (departamento de polícia dos Estados Unidos), em um futuro nem tão distante. “Seria um sonho morar em outro país”, diz com brilho no olhar.

A história humana pode ser contada pelo modo como cada sociedade, em diferentes períodos, olha, lida e vive com a finitude da vida. No século passado, a morte foi quase contagiosa, e aqueles que morriam portando uma doença (má), deveriam ser evitados a todo custo pelos vivos. Já no século XXI, este que vimos nascer e sobrevivemos, lidamos com a doença símbolo do século, o câncer. Seria a morte o contrário da vida? Por vezes calamos ao lidar com o envelhecimento, a doença, e perdemos a oportunidade para pensar sobre o que realmente importa; em especial sobre o que fazemos com o nosso tempo. Duda, que desde muito jovem entende o que é o diagnóstico de quase morte, voltou a ser uma menina que tem toda vida pela frente. Seu maior sonho é viver.

Reportagem produzida na disciplina Redação Jornalística do curso de Jornalismo do Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter). Supervisão: Prof. Roberto Villar Belmonte.

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Roberto V. Belmonte
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Jornalista interessado em ensino do Jornalismo, ambiente e economia.