Patrona mulher na Feira do Livro potencializa debate sobre o machismo na literatura

Francisco Amorim
Reporteros
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4 min readNov 19, 2017
Autoras femininas figuraram entre os livros destacados na Feira. (Katiele Nunes)

(Por Andressa Schütz, Katiele Nunes e Laura da Silva)

A Feira do Livro de Porto Alegre, atualmente na sua 63ª edição, recebe anualmente milhares de visitantes. Neste ano, a patrona do evento é a escritora e professora de história Valesca de Assis. Ela é uma das seis mulheres que já ocuparam essa posição, num total de 57 patronos ao longo das edições, o que é um número pequeno. A literatura, assim como o cinema e muitas outras mídias, sempre possuiu certo machismo e opressão ao sexo feminino. O papel da autora foi, e por vezes ainda é, visto como apenas escrever romances e livros infantis. Possuir uma patrona mulher em uma das Feiras de literatura mais importantes do Brasil é, sem dúvida, um passo muito grande.

Valesca conta que no início da carreira foi bastante difícil conseguir editores. “Muitos pensavam que um homem havia escrito meu primeiro livro. Também por ser mais velha, tive diversas recusas. Hoje, uma editora grande prefere investir em autores já consagrados, ou em jovens muito promissores”. Sobre o momento atual das mulheres não apenas na literatura, a autora se mostra esperançosa. “Por milênios estivemos reduzidas aos cuidados domésticos, no interior das casas e sem nenhum protagonismo. Alguns ainda pensam que não devemos ter voz. Porém, vencendo obstáculos de toda ordem, estamos chegando aos lugares que desejamos. O fato de termos duas mulheres patronas seguidas na Feira do Livro de PoA, onde somente seis chegaram ao patronado, é prova disso.”

Já a autora Marta Lagarta, conhecida por escrever livros infantis, e que participou da feira neste ano como uma das convidadas, acredita que pelo fato da mulher ainda possuir muitos compromissos ligados à casa e a família, sobra pouco tempo para escrever. “A gente vê que em feiras de livros, quem possui maior disponibilidade para viajar para lá e para cá são os homens, já que a mulher muitas vezes tem filhos, netos, uma casa. […] Acredito que quanto mais a mulher for conquistando seu lugar na sociedade, e dividindo as responsabilidades domésticas com os homens, elas poderão ter mais tempo disponível para escrever, e talvez surjam mais autoras, com mais tempo para se dedicar à literatura.”

Na história da literatura, existiram mulheres que possuíram um papel essencial para a quebra destes paradigmas. Por exemplo, na década de 1920, a escritora britânica Agatha Christie alcançou o sucesso com seus romances policiais, e até hoje é a autora que mais vendeu livros no mundo: mais de quatro bilhões de cópias, publicadas em 103 idiomas diferentes.

Mais recentemente, Joanne Kathleen Rowling, mais conhecida por J.K. Rowling, lançou o fenômeno mundial Harry Potter, tornando-se a escritora britânica que mais lucrou com seus livros. Em diversas entrevistas, a autora conta que seu pseudônimo veio a partir de uma sugestão de editores, para que ela deixasse apenas as suas iniciais, assim ninguém saberia que havia sido uma mulher a escrever a saga, e os leitores homens também possuiriam interesse nos livros. Isso só reafirma como ainda há um forte preconceito com a mulher nesta mídia.

Porém, em relação ao público, as mulheres se destacam como leitoras, segundo os livreiros. Neiva Piccinini, que trabalha na Feira do Livro há 25 anos na Livraria Província, diz que “Hoje elas (as mulheres) procuram livros de empreendedorismo, relacionados ao feminismo […] Títulos associados a isso costumam vender bastante. E as mulheres lêem todas as áreas, muitas vezes desde pequenas. Elas são mais engajadas, mais apaixonadas pela leitura”. Joelson Carrasco, também livreiro há mais de 10 anos, complementa: “O interesse dos homens e mulheres nos livros é bem misturado, não é direcionado a só um tipo de literatura. O que eu noto é que mais mulheres compram livros do que homens.”

Uma das autoras apontadas como destaque da Feira por estes mesmos livreiros é Clarissa Pinkola Éstes, autora de Mulheres que Correm com os Lobos. O livro, lançado em 2014, aborda, ao longo de 19 contos, lendas e mitos, como a mulher foi sendo ‘domesticada’ ao longo do tempo, escondendo seus instintos e, ainda, afirma que é possível restaurar a independência roubada, despertando a “corajosa loba que vive em cada mulher”.

E, como trata o livro de Éstes, existe a esperança de uma renovação. Se há, de fato, um aumento no engajamento do público feminino, por consequência, mais autoras se sentirão seguras a escrever e lançar suas obras, e talvez num futuro, poderá haver mais igualdade, não apenas na literatura, mas na sociedade.

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Francisco Amorim
Reporteros

Jornalista, mestre e doutor em Sociologia. Professor de Jornalismo. Pesquisador nos grupos Violência e Cidadania (UFRGS) e Jornalismo Digital (UFRGS).