Ao lado de uma das baratas morta por uma de minhas gatas, escrevo

Camila Bahia
republiceta
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2 min readApr 29, 2021

Quando eu tinha por volta de 19 anos, cursando a graduação em Comunicação Social, entrei num processo seletivo para ser trainee na montadora de automóveis FIAT. Ao final de uma das etapas, a funcionária do RH que conduzia o encontro pediu para falar comigo a sós. Ela me confessou que havia gostado muito de mim, que via potencial em mim. Mas que eu havia tirado as sapatilhas e cruzado as pernas em cima da cadeira no momento da atividade em grupo. E que aquela atitude não seria bem vista por nenhum quadro da FIAT.

Preciso agradecer a essa mulher, que com sua boa intenção me ejetou daquele processo. Não sei dizer o quanto minha atitude foi racional na época, mas não voltei mais ao tal programa de trainee.

Esse texto podia ser sobre os bons atravessamentos da vida, que aprumam o leme na direção da ilha onde hoje estamos, com certo orgulho. Mas quero dizer dos lugares onde cabemos.

Estava eu me batendo com a ideia de escrever um romance, contos, resenhas literárias, críticas cinematográficas. Tudo distante, eu crua ou muito mal passada, destra escrevendo com a mão esquerda. E então fui lembrada da crônica. A cada linha de grandes autores e autoras lida, eu me assegurava: nisso eu caibo. Cabem meus chinelos remendados com arame, meus pés descalços e calcanhares rachados. Cabe minha canela russa, minhas tatuagens esverdeadas. Me cabe sentada no chão empoeirado, preterindo poltronas.

Me agoniei por semanas vendo a escrita literária derivar para longe, até chegar à professora que lê com voz por vezes trêmula, como a minha quando falo em público. Precisei chegar à professora que alterna o carregador do celular com o do computador, para lembrar da escrita que é possível
a mim e às minhas pernas dadaístas, que não conseguem escutar as etiquetas sociais porque não têm ouvidos.

Se na crônica cabe minha infância vivida de cidade em cidade, por diferentes casas e quintais; com teatro sobre quadrinhos da Turma da Mônica, usando um lençol de cortina e tendo a amada tia com síndrome de Down no elenco; se tem lugar minha observação compulsória e inútil sobre os detalhes da ação das pessoas no mundo; se cabem meu espanto, meu deleite e minhas saudades; então te convido para a tarde.

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