A memória coletiva de um passado difícil impediria a reconciliação?

Cartas do Litoral
Palavras em Transe
Published in
3 min readJun 29, 2016

O Centro Internacional para a Justiça de Transição promoveu em maio deste ano um debate entre Pablo de Greiff e David Rieff em torno da questão:

A memória coletiva de um passado difícil impediria a reconciliação?

O que segue é a livre tradução de parte dos argumentos dos debatedores. A apresentação completa do tema e das questões associadas a ele, realizada pela moderadora Marcie Mersky, pode ser lida aqui. No primeiro parágrafo dessa apresentação pode-se ler:

Em sociedades que emergem de um violento conflito, os eventos passados serão negados por alguns e confirmados por outros. As narrativas e análises, até mesmo quanto aos fatos básicos, sobre o que ocorreu e por que — o modo como eles são discutidos e lembrados por diferentes grupos — serão sempre contestados. Isso significa que esforços de memória ou, mais especificamente, esforços para permitir uma ampla plataforma de discussão sobre o passado, inclusive pelas vítimas, cujas vozes podem ter sido silenciadas, ou com grupos cujas perspectivas e preocupações não aparecem nas histórias oficiais, impedirão a reconciliação ou conduzirão a mais conflito?

O dever de lembrar

[…] Recordando que o que está em jogo aqui não é memória, mas o reconhecimento público de grandes violações dos direitos, uma recusa a reconhecê-las, dar-lhes um lugar em nosso espaço público, envolve um juízo de valor do qual não há nenhuma maneira de escapar sem rebaixar o valor das vítimas ou a importância dos direitos — não apenas os seus direitos, mas os direitos em geral […]

À parte o que se diz sobre aqueles que persistem na recusa em reconhecer a dor dos outros quando o assunto diz respeito às maiores atrocidades conhecidas pelo ser humano, no limite, persistir na recusa em reconhecer grandes danos gera novas feridas. Lembrem-se, mais uma vez, de que as formas de lembrança em jogo nessa discussão não são manifestações privadas, mas manifestações públicas de reconhecimento.

Na medida em que esperamos que os outros façam parte de uma comunidade política, devemos a eles reconhecimento suficiente para que esse projeto seja verdadeiramente compartilhado. Isso é muito claro no caso dos nossos concidadãos. “Concidadãos”, no entanto, não se refere apenas aos nossos compatriotas ou àqueles com quem compartilhamos uma nacionalidade. Somos hoje concidadãos em uma comunidade de direitos. Na medida em que esperamos que os outros tenham confiança nessa realidade, temos a obrigação de lembrar tudo que não possa razoavelmente esperar para ser esquecido por nossos concidadãos.

Pablo de Greiff é relator especial da Organização das Nações Unidas para a Promoção da Verdade, Justiça, Reparação e Garantias de Não-Recorrência.

Clique aqui para ler o ensaio de de Greiff.

A memória coletiva é ideológica, não imparcial

Nossa discordância centra-se em grande parte no que acontece mais tarde, quando aqueles que sofreram o dano e, no mesmo sentido, seus filhos e netos, não estejam mais vivos. Porque de Greiff está inquestionavelmente certo no que se refere a uma vítima da ditadura militar na Argentina ou na ditadura de Ben Ali, na Tunísia: o esquecimento não é uma opção, pois as lembranças estarão vivas tanto quanto as pessoas as retenham. Para dizer o óbvio: não há de fato nenhuma memória coletiva, mas apenas memória individual.

O que estamos falando quando invocamos a memória coletiva é o passado firmado em um certo consenso no qual as sociedades se desenvolvem e que evolui ao longo do tempo. É quanto à forma de memória coletiva que estou tão cético, porque, do meu ponto de vista, isso pode ser perigoso, redundando em ressentimento, ódio e guerra […]

Um último ponto, no que se refere ao apelo de de Greiff e Bensedrine [jornalista tunisiana, ativista dos direitos humanos] à quase exclusivamente no uso da linguagem dos direitos, como se esse uso pudesse ser distanciado da política. Como alguém que acredita que a lei é um artefato fundamentalmente político, eu não acho que isso seja possível. Gostaria apenas de salientar que, desconfortável, como muitos (embora não todos, certamente) dos seus defensores estão a admitir, os direitos humanos são uma ideologia tanto quanto o comunismo o foi ou neoliberalismo o é na atualidade. Pode uma construção fundamentalmente ideológica ter a séria pretensão de ser imparcial? Talvez até possa sê-lo, mas eu tenho que dizer que acho isso altamente improvável.

David Rieff é jornalista e escritor.

Clique aqui para ler o ensaio de Rieff.

--

--