O abandono, a questão racial, a adoção internacional e a busca das origens: Retratos da Guerra da Coreia

Cartas do Litoral
Palavras em Transe
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4 min readMar 18, 2015

Fotografias e memória

Matéria publicada no Sítio Eletrônico da Revista Life em dez/2014 nos revela com delicadeza traços de uma história que talvez, no Brasil, nem pudéssemos imaginar. Embora, de certa maneira, uma linha nos ligue a essa narrativa.

Ali são apresentadas pouco menos de 20 de fotos, feitas nos anos 60 do século passado, pelo então jovem fotógrafo Joo Myung Duck. Elas nos revelam filhos que nasceram da relação entre mulheres coreanas e estrangeiros (militares norte-americanos na maioria) que foram deixados em instituições de acolhimento, perdendo, muitas vezes para sempre, qualquer possibilidade de contato com representantes de sua família de origem. Essas crianças foram, se pode ser dito assim, filhas da Guerra da Coreia (1950–1953).

Como esclarece a matéria, “quase três milhões de pessoas morreram ou desapareceram ali, nos embates entre tropas norte-coreanas, chinesas e uma força internacional capitaneada pelos EUA”. Desses três milhões, continua, “mais da metade eram civis, em particular coreanos. Ao lado disso, desde meados da década de 1950 o exército americano mantinha forte presença na Coreia do Sul, o que revela, de certo modo, o substrato das ligações entre os dois países”.

As fotos que a Life nos apresenta retratam crianças que foram, em maior ou menor medida, abandonadas por quase todos, como enfatiza a reportagem: “pelos seus pais, que raramente permaneceram na Coréia; por suas mães, que experimentaram ostracismo e estigma social; e pelo governo coreano, que endossou a política de pureza racial e procurou erradicar crianças de raça mista do país”.

Esse quadro, embora resumido, apresenta as linhas gerais da importância que a adoção internacional assumiu na Coreia do Sul. Trata-se de país com maior número de crianças enviadas ao exterior com o objetivo de adoção: aproximadamente 200.000 entre 1953 e 2006. Cerca de 100.000 dessas crianças foram adotadas por residentes dos EUA (MCGINNIS, 2012). Em 1980, cerca 1,5% de todos os nascidos vivos da Coreia do Sul foi disponibilizado para adoção internacional (JACOBSON, 2008).

Devemos enfatizar que 1953 não é uma data casual, pois se trata do fim da Guerra da Coreia, embora um grande contingente de adoções internacionais tenha ocorrido entre 1970 e 1980, período de crise econômica no país. Com as Olimpíadas de 1988 a Coreia do Sul ficou em evidência em todo o mundo e, com isso, sua prática maciça de adoções internacionais também. A partir dali, o governo sul-coreano começou a rever os mecanismos de funcionamento dessa prática.

Hoje a política relativa à adoção internacional por parte da Coreia do Sul está em franca reversão, havendo a explícita intenção de reduzir paulatinamente o número de crianças passíveis de serem incluídas nesse tipo de adoção (BUREAU, 2012). Todavia, essa questão ainda não se encontra assimilada pela sociedade coreana, sendo, inclusive, tema para discussões sobre a cobertura e a eficácia das políticas públicas de saúde e assistência social utilizadas para apoiar as famílias (PBS, 2012). Além disso, a adoção nacional ainda não é uma prática corrente ali (MCGINNIS, 2012).

Dessa forma, a diáspora coreana encontra hoje na Web um vasto campo de expressão, atualizando-se nas diversas plataformas existentes (GOAL, 2012). Esses canais, bem como comentários em geral sobre casos de adoção, enfatizam, muitas vezes, a identidade comum que subsistiria entre o adotado coreano e os demais coreanos que permaneceram no país, a despeito de sua família adotiva (RACINES, 2012; RAMIREZ, 2012).

Interessante apontar que cerca de 2000 coreanos adotados no exterior retornam todos os anos à Coreia do Sul (YNGVESSON, 2010). Diante desse cenário e do seu significado, do número de coreanos no exterior e, inclusive, do potencial econômico envolvido, foi criado em 1997 o Overseas Korean Foundation, ligado ao Ministério de Relações Exteriores e Comércio. Sua missão é a de “[…] prover suporte a coreanos do mundo todo” (JOIN, 2013) e seu objetivo principal “é ajudar coreanos no exterior a manter um senso de identidade [grifo nosso], segurança e aumentar seus direitos e status social em seus países de residência […]” (JOIN, 2013).

Dentre as diversas atividades da fundação, está a organização de viagens à terra natal, denominadas motherland tours, embora sejam conhecidas popularmente por orphan bus (YNGVESSON, 2010, p. 163).

Referências

BUREAU of Consular Affairs — U.S. Department of State. Intercountry Adoption: South Korea. Disponível em: http://adoption.state.gov/country_information/country_specific_info.php?country-select=south_korea. Acesso em: 20 ago. 2012.

GOAL. Global Overseas Adoptees. Disponível em: http://www.goal.or.kr/ . Acesso em: 19 ago. 2012.

JACOBSON, Heather. Culture keeping: White mothers, international adoption and the negotiation of family difference. Nashville: Vanderbilt University Press, 2008.

JOIN the leaders. Disponível em: http://www.jointheleaders.com/post/Overseas-Korean-Foundation.aspx. Acesso em: 30 mar. 2013.

MCGINNIS, Hollee. South Korea and Its Children. Disponível em: http://relativechoices.blogs.nytimes.com/2007/11/27/south-korea-and-its-children/. Acesso em: 30 ago. 2012.

PBS. A history of adoptions from South Korea. Disponível em: http://www.pbs.org/pov/archive/firstpersonplural/historical/skadoptions.html. Acesso em: 31 ago. 2012.

RACINES Coréennes. Association Française des Adoptés d’Origine Coréenne. Disponível em: http://www.racinescoreennes.org/. Acesso em: 18 ago. 2012.

RAMIREZ, Mark. Adoptees: Identity can be a long journey. Disponível em: http://www.azcentral.com/families/articles/0202adoptees02.html. Acesso em: 16 ago. 2012.

YNGVESSON, Barbara. Belonging in a adopted world: Race, identity and transnational adoption. Chicago: The Chicago University Press, 2010.

  • Parte deste texto pauta-se na Tese de Doutorado ‘O que resta da adoção? O comum e o testemunho sobre a busca das origens’, defendida por mim em 2013 no Programa de Pós-Graduação em Memória Social, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro — UniRio.
  • Publicado originalmente em Empório do Direito
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