Violência contra a mulher: os formulários de avaliação de risco no Brasil

Comentário

Cartas do Litoral
Palavras em Transe
8 min readSep 17, 2019

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Em 2019 o uso de formulários de avaliação de risco na análise de casos de violência doméstica e familiar contra a mulher propagou-se nacionalmente. Espera-se com o instrumento realizar diagnóstico mais eficiente, gerenciando de modo eficaz os procedimentos e os recursos necessários para as diferentes intervenções cabíveis nessas situações. [1]

Frida

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) apresentou seu Formulário Nacional de Risco e Proteção à Vida (Frida), resultado da reunião de especialistas do Brasil e da Europa. Dentre os diferentes atores mencionados como cooperando ou apoiando a iniciativa do CNMP estão a União Europeia, o Ministério da Economia, o Ministério das Relações Exteriores. A iniciativa do CNMP foi apresentada na 63ª sessão da Comissão sobre o Status da Mulher da Organização das Nações Unidas (CSW63), realizada em Nova Iorque, a convite do Governo Federal. O CNMP ao tratar do Frida refere-se igualmente ao Cadastro Nacional de Violência Doméstica (CNVD). No entanto, o referido cadastro remonta a 2016, conforme Resolução 135, do próprio CNMP. Não resta claro o vínculo entre Frida e CNVD, já que aparentemente ele é alimentado com base em outra fonte de dados. O cadastro ampara-se no previsto na Lei Maria da Penha:

DA ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Art. 25. O Ministério Público intervirá, quando não for parte, nas causas cíveis e criminais decorrentes da violência doméstica e familiar contra a mulher.

Art. 26. Caberá ao Ministério Público, sem prejuízo de outras atribuições, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, quando necessário:

I — requisitar força policial e serviços públicos de saúde, de educação, de assistência social e de segurança, entre outros;

II — fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, e adotar, de imediato, as medidas administrativas ou judiciais cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades constatadas;

III — cadastrar os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

O Frida, tanto na forma como no conteúdo, é semelhante ao formulário usado em Portugal, ainda que aqui se tenha optado por uma gama maior de questões abertas. Existem outras diferenças. Uma delas é que em Portugal a entrevista inicial e as subsequentes são realizadas com formulários distintos, possivelmente por um mesmo tipo de equipe. Para o uso do Frida é esclarecido que "A avaliação de risco deverá ser realizada no primeiro contato que a mulher estabeleça com um serviço — seja uma delegacia de polícia, centro de referência, serviço de saúde ou através das equipes multidisciplinares de promotorias, defensorias ou juizados/varas especializadas" [ênfase adicionada]. Note-se que os equipamentos e procedimentos voltados para a intervenção em casos de violência contra a mulher em Portugal e no Brasil não são similares.

Formulário Nacional de Avaliação de Risco

Como apontado em post anterior deste blog, a 10ª edição do Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid), realizado em novembro de 2018, apresentou protocolo de prevenção ao feminicídio. Dizia-se à época que ele seria recomendado aos tribunais e utilizado pelo Sistema de Segurança Pública do país. Na ocasião não houve divulgação do conteúdo do protocolo mencionado. Contudo, ali se sinalizou a existência de diferentes formulários utilizados na avaliação e gerenciamento de risco, tanto no Brasil (Brasília) como no exterior (Portugal).

Em nota divulgada pelo TJPE, foi afirmado que havia projeto do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público para a implantação de protocolo de avaliação de risco em todo o país em 2019.

O que se constatou é que as iniciativas do CNMP e do CNJ eram distintas. Em junho de 2019 o CNJ publicou a Resolução 284 que "Institui o Formulário Nacional de Avaliação de Risco para a prevenção e o enfrentamento de crimes e demais atos praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher". Trata-se de "novo instrumento da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres instituída pelo Conselho Nacional de Justiça, tem por objetivo identificar os fatores que indiquem o risco da mulher vir a sofrer qualquer forma de violência no âmbito das relações domésticas e familiares (art. 7º da Lei nº 11.340/2006), para subsidiar a atuação do Poder Judiciário e dos demais órgãos da rede de proteção na gestão do risco identificado" [art. 2o, ênfase adicionada].

A Resolução estipula que "O Formulário Nacional de Avaliação de Risco deverá ser aplicado preferencialmente pela Polícia Civil no momento do registro da ocorrência policial, ou, na impossibilidade, pela equipe de atendimento multidisciplinar do juízo, por ocasião do primeiro atendimento à mulher vítima de violência doméstica e familiar" [Art. 3o, ênfase adicionada]. O documento menciona ainda que "Faculta-se a utilização do modelo de Formulário Nacional de Avaliação de Risco por outras instituições, públicas ou privadas, que atuem na área da prevenção e do enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher" [Art. 3o, parágrafo único, ênfase adicionada]. A Resolução esclarece que o "Formulário Nacional de Avaliação de Risco será aplicado por profissional capacitado, admitindo-se, na sua ausência, o seu preenchimento pela própria vítima" [Art. 4o, ênfase adicionada].

Os formulários

Os formulários do CNJ e do CNMP possuem diferenças significativas:

  1. CNJ: Formulário Nacional de Avaliação do Risco [FNAR]; elaborado por grupo de trabalho formado por ministro do STJ, conselheiros do CNJ e juízes que atuam em Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; questões exclusivamente objetivas; não apresenta manual de uso; não se vale de parâmetros que permitam uniformizar e interpretar o resultado da aplicação do formulário, concluindo-se pelo grau de risco envolvido; 25 questões.
  2. CNMP: Formulário Nacional de Risco e Proteção à Vida (Frida); elaborado por especialistas brasileiros e da União Europeia; questões objetivas e abertas, as últimas denominadas 'Avaliação estruturada realizada pela(o) profissional'; apresenta manual de uso; vale-se de parâmetros que permitem uniformizar e interpretar o resultado da aplicação do formulário, concluindo-se pelo grau de risco envolvido [semelhante ao modelo adotado em Portugal]; 29 questões.

A falta de parâmetros para a interpretação dos resultados pode levar a análises equivocadas. Isso porque a valorização das respostas dependerá daquele que aplica o formulário, todas possuindo o mesmo peso. O uso de uma grade de interpretação das respostas, com peso ponderado para cada uma delas, colabora para o entendimento de aspectos do caso concreto, embora não configure necessariamente a resposta final a ser dada a ele. Essa característica é tão mais importante quanto se tenha em perspectiva a amplitude de profissionais que poderá fazer uso do formulário. Esse tipo de documento, em Portugal, é instrumento usado para orientar a intervenção de equipes, aplicado em diferentes oportunidades. O Frida aparentemente também se prestaria a isso, citando como usuários em potencial: "psicóloga(o)s, assistentes sociais, assessora(e)s jurídicas, policiais civis e militares, defensora(e)s pública(o)s, promotora(e)s de justiça e magistrada(o)s, médica(o)s e enfermeira(o)s […] serviços que formam as redes de atendimento a mulheres em situação de violência nas áreas da assistência psicosocial [sic] e jurídica, segurança, saúde e justiça". Para o uso do Frida é ainda mencionado que "Uma vez concluído o preenchimento do documento, a(o) profissional deverá, juntamente com a mulher, tomar decisões quanto às medidas a serem aplicadas e os encaminhamentos que serão realizados" [ênfase adicionada].

O FNAR, por seu turno, é apresentado também para um uso relativamente amplo de profissionais, mencionando-se como usuários a polícia civil e as equipes dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher. Sabe-se que, ao menos no Rio de Janeiro, integrantes da Patrulha Maria da Penha também se valem dele. No entanto, talvez ele esteja voltado, de fato, para subsidiar o magistrado na tomada de decisão acerca da concessão de medida protetiva. Isso pode ser deduzido do modo distinto como FNAR e Frida foram constituídos, dos atores envolvidos nas respectivas elaborações, em que pese o artigo 2o, da Resolução 284/2019, do CNJ. Há relação estreita entre o FNAR e o subsídio à decisão judicial, conforme artigo 5o da mencionada Resolução: "Após sua aplicação, o Formulário Nacional de Avaliação de Risco […] será anexado aos inquéritos e aos procedimentos relacionados à prática de atos de violência doméstica e familiar contra a mulher, para subsidiar a apreciação judicial de pedidos de medida protetiva de urgência e/ou cautelar".

O uso de questões abertas pode ser problemático no tipo de formulário em vista aqui, tal como apresentadas no Frida. A quantidade delas pode trazer dificuldades no preenchimento, na análise e na posterior coleta de dados, caso isso se mostre necessário. Imagine-se uma situação hipotética: preenchimento do formulário em delegacia de polícia, não especializada, momento no qual também se fará o preenchimento do registro de ocorrência…tudo ao mesmo tempo em que ocorre a entrevista com a vítima, seu acolhimento, e, algumas vezes, também o contato com o suposto agressor. Não são poucas as dificuldades a serem enfrentadas, como se nota.

Para onde os formulários apontam?

Deve-se observar que há algumas notícias de treinamento para o uso do Frida, o que não ocorre, ao menos por enquanto, na mesma proporção quanto ao FNAR, a despeito dos artigos 8o e 9o da Resolução 284/2019.

Feita a apresentação das linhas gerais que caracterizam os formulários comentados, algumas perguntas acabam por permanecer: haverá uso concomitante do Frida e do FNAR? Efetivamente, quando um ou outro seria utilizado? Há comunicação possível entre eles? Isso será necessário? Os dados do FNAR estão sendo reunidos e analisados, conforme previsto no artigo 11 da Resolução 284/2019? Que usos têm tido o CNVD? Haverá um banco de dados a partir de dados extraídos do FNAR?

Pode-se continuar: Há possibilidade de um alinhamento quanto ao uso dos dois formulários, dada a previsão do artigo 10 da Resolução 284/2019 e no princípio de cooperação reivindicado no Frida?

O Frida e o FNAR colaboram na disseminação da ideia de que avaliação e gerenciamento de risco são propostas de trabalho importantes e que não devem contar apenas com o voluntarismo e a opinião dos que se encontram no campo. Eles também ajudam na análise dos casos recepcionados nos diferentes segmentos envolvidos. Por conseguinte, precisam estar integrados às suas rotinas e processos de trabalho, constituindo-se como ponte para o diálogo com todos os atores que intervêm no horizonte da garantia de direitos e responsabilização da violência doméstica e familiar. Trata-se do início de um percurso. Resta, por ora, aguardar os passos que virão.

Veja também:

Resolução CNJ 284/2019

http://200.142.14.29/portal/atos-e-normas-busca/norma/5075

[1] Atualizado em 24.03.2020

Novo formulário foi editado, firmando entendimento comum entre o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público. O comentário está disponível no link abaixo

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