Amor entre primos

“O museu da inocência”, de Orhan Pamuk, gira em torno da obsessão de Kemal pela prima Füsun

brille
resenhas
5 min readSep 23, 2019

--

Em 2015, uma notícia no Twitter sobre a estreia de uma novela turca na Band chamou minha atenção. Por que a emissora exibiria uma novela turca? Com tantas novelas brasileiras na televisão, quem assistiria um produto de origem tão exótica? Curiosa, decidi conferir do que se tratava e comecei a assistir Fatmagul em 240p no Youtube sem grandes pretensões.

Logo no primeiro capítulo, Fatmagul, a mocinha, é vítima de um estupro coletivo. Quando a notícia vem à tona na pequena vila onde vive, ela é abandonada pelo noivo, julgada pelos vizinhos e desencorajada pelos familiares, que acham melhor “deixar pra lá” o que aconteceu, já que os responsáveis pelo crime são homens ricos e influentes. No entanto, mesmo sabendo que será um caminho árduo, Fatmagul decide denunciar os estupradores e lutar por justiça. Mas não se deixe enganar pela aparência empoderada do enredo: para “manter a honra”, a protagonista é obrigada a se casar com Kerim, amigo dos estupradores que testemunhou os abusos sem intervir, e acaba se apaixonando por ele.

De início, Fatmagul sente total repulsa por Kerim, mas ele a conquista com seu jeito meigo e ela o perdoa por ser um merda.

Apesar da narrativa controversa, joguei fora meu senso crítico e não fiz nada naquele mês que não fosse assistir Fatmagul. Assistia de madrugada, no ônibus, no intervalo entre as aulas… E não fui a única a ficar envolvida daquela maneira com uma novela turca: no Brasil, as narrativas vindas da Turquia conquistaram uma legião de fãs, composta em maior parte por senhoras insatisfeitas com as temáticas das novelas da Rede Globo. Nos demais países da América Latina, como Chile, Argentina, Peru e Uruguai, a ficção televisiva turca passou a liderar os rankings de audiência, cativando o público que até então consumia as tradicionais produções brasileiras e mexicanas –– dois países com uma indústria televisiva consolidada desde a década de 1970. E o que começou como um questionamento despretensioso sobre os motivos para a exibição de novelas turcas na Band se tornou meu trabalho de conclusão de curso, no qual abordei a recepção de Fatmagul no Brasil. Agora, no mestrado, estou levando o estudo adiante e comparando a recepção das novelas turcas no Brasil e no Uruguai, um dos países em que as novelas brasileiras começaram a flopar total e foram substituídas pelas produções da Turquia. Com a pesquisa, a intenção é entender melhor as mudanças no consumo de ficção televisiva.

Acontece que, tirando as novelas turcas, artigos acadêmicos e uma obsessão antiga por documentários sobre o genocídio armênio, eu pouco sabia sobre a cultura e a história da Turquia, conhecimentos cruciais para melhor desenvolver minha pesquisa. Por isso, decidi unir o útil ao agradável e descobrir mais sobre a literatura turca. Foi aí que me deparei com Orhan Pamuk, um dos escritores mais populares do país e vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 2006.

Orhan Pamuk foi o primeiro turco a ganhar um Nobel.

As obras mais famosas de Pamuk são Meu nome é vermelho (1998) e Neve (2002), mas achei os dois livros muito complexos para uma pessoa com dois neurônios e comecei por O museu da inocência (2008), que parecia uma leitura mais leve e adequada à minha condição cognitiva. A escolha logo se mostrou perfeita: apesar das assustadoras 568 páginas, o romance não exige tanto esforço do leitor, e a história, por coincidência, contemplou perfeitamente meus objetivos acadêmicos, pois tem as transformações na Turquia da década de 1970 aos anos 2000 como pano de fundo, além de se aprofundar no histórico do cinema e da televisão do país.

Kemal, o protagonista, é um herdeiro que está para casar com Sibel, outra herdeira, mas acaba se apaixonando por uma prima pobre, Füsun, doze anos mais nova. Kemal é correspondido em seus sentimentos, mas o problema é que ele não se sente preparado para romper o noivado com Sibel –– principalmente porque eles já tinham bimbado, e o sexo antes do casamento era um tabu para a sociedade da época. Quando ele finalmente decide colocar um ponto final em seu noivado para ficar com a prima, já é tarde demais, porque Füsun simplesmente desaparece sem dar notícias. Kemal acaba ficando sozinho, apenas encontrando conforto em objetos que surrupiou da amada durante o breve affair do casal.

É um pouco maçante acompanhar as várias dezenas de páginas que abordam exclusivamente o sofrimento adolescentizado do trintão Kemal, mas, para quem tem paciência para enfrentá-las, a recompensa é uma reviravolta no paradeiro de Füsun: cansada das humilhações de ser a outra, ela foi incentivada pelos pais a se casar com Feridun, um amigo de infância & aspirante a cineasta. Ao ficar sabendo da notícia, Kemal se aproxima da família, passando a realizar visitas rotineiras para jantar, ver televisão e sair com Füsun e Feridun, inseridos na cena cinéfila de Istambul. É aí que o protagonista chega ao nível mais degradante do homem apaixonado e decide se fingir de cinéfilo, se oferecendo para bancar um filme dirigido por Feridun que tivesse Füsun como atriz principal –– o que era na verdade apenas uma desculpa para passar mais tempo perto da jovem. Nesse ínterim, ele continua cometendo pequenos furtos na casa, maneira que encontrou para acalentar seu coração obsessivo.

O enredo é simples e sem grandes surpresas, mas uma ótima introdução à história recente da Turquia. Aliás, ciente disso, Pamuk inclusive transformou o museu da inocência de Kemal em um museu real: em 2012, o autor inaugurou em Istambul o Masumiyet Müzesi, que reúne os objetos citados no livro em 83 vitrines –– uma para cada capítulo. A ideia é oferecer um panorama da vida na Turquia nas décadas em que se passa o livro.

O museu da inocência propriamente dito em Istambul.

Divulguei O museu da inocência nos grupos de fãs de novelas turcas no Facebook e as senhoras já organizaram um clube de leitura para ler o livro e descobrir mais sobre o país que veem em baixa resolução no Youtube. Mas outras tribos também podem se interessar pela obra: seja você intelectual, cinéfilo ou pessoa romântica em geral, vale a pena conferir.

--

--