Casadas liberadas pelo corno

O cuckolding na obra de Jun’ichirō Tanizaki

brille
resenhas
3 min readApr 20, 2019

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O escritor japonês Jun’ichirō Tanizaki em 1951.

Eu não sou uma grande entendida de livros. Na verdade, até o final de 2017, eu lia majoritariamente tuítes, mas o final da graduação e o consequente ócio de me tornar uma nem-nem foram um incentivo para me aprofundar na literatura. Com tempo livre, era uma atividade edificante que ajudava a afastar o constante sentimento de inutilidade.

Foi nessa época que, passeando pela seção de literatura japonesa na biblioteca, decidi emprestar “Amor insensato” (1924), de Jun’ichirō Tanizaki. A justificativa para a escolha é simples: sou uma mulher que ama demais e me identifiquei com o título. Mas a leitura logo revelou que até que não sou tão insensata assim.

O livro acompanha a história de Joji Kawai, um rapaz bem empregado de quase 30 anos que fica fascinado pelos traços ocidentais de Naomi, uma garçonete humilde de 15 anos. Problemático, não? Mas não para por aí: apaixonado, o protagonista oferece à família da garota a possibilidade de ser seu tutor, bancando seus estudos e proporcionando casa, comida e roupa lavada. A família prontamente aceita a proposta, e Naomi vai morar com ele, dando início à total derrocada emocional, social e financeira de Joji.

Apesar de “Amor insensato” datar da década de 1920, trata de um tema bastante atual: as casadas liberadas pelo corno. Joji inicia a obra em uma posição de poder, mas, na ânsia de transicionar Naomi para uma empoderada musa ocidental, o personagem acaba tolerando uma série de comportamentos diferenciados, como dormir separado da esposa para que ela mantenha seus affairs com homens estrangeiros sob o mesmo teto que ele.

Interação em grupo de cuckolding no Facebook. Assim como Joji, de “Amor insensato”, os homens adeptos da prática não veem problemas em suas esposas se relacionarem sexualmente com outros.

Estarrecida com esse arrombamento de tabu, decidi descobrir mais sobre a obra de Tanizaki. Minha escolha seguinte foi “Diário de um velho louco” e, ainda que o foco da narrativa seja a sexualidade na terceira idade, a figura do corno manso novamente está presente, além de outros temas polêmicos como o incesto e o fetiche por travestis.

Depois disso, li “As irmãs Makioka” (1943–1948), retrato da sociedade japonesa da época apresentado a partir da decadência de uma família tradicional, “Há quem prefira urtigas” (1929), sobre o processo de divórcio de um casal, e “Voragem” (1928–1930), turbulento triângulo amoroso bissexual. Todos títulos que abordam em alguma medida o chifre consensual.

Seria a popularização do cuckolding um efeito da abertura do Japão para o ocidente na Restauração Meiji? Ou ainda, seria uma metáfora de Tanizaki criticando a degeneração da sociedade japonesa ao se enxergar de maneira inferior perante aos gaijins e adotar os costumes ocidentais? Ou, quem sabe, talvez o tesão por ser corno sempre tenha sido encarado de maneira natural na cultura nipônica…? Bem, somadas a essa provocações, deixo uma curiosidade: pesquisando sobre o autor, descobri que ele encorajou sua primeira esposa, Chiyoko, com quem se casou em 1915, a ter um relacionamento com seu amigo e também escritor Haruo Satō, inclusive concordando com o divórcio para que os dois pudessem se casar em 1930. Então, talvez fosse só um interesse pessoal.

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