Eu não vim aqui para fazer amigos

Em “Ser mulher não é para qualquer um”, Nany People revela que foi para o reality show A Fazenda para ganhar visibilidade

brille
resenhas
7 min readJan 19, 2020

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Ontem, a Rede Globo liberou a lista dos participantes da nova edição do reality show Big Brother Brasil. A novidade neste ano é que, além dos anônimos, o programa irá contar também com figuras já conhecidas do público, dividindo o elenco em “pipoca” e “camarote”. Entre os participantes que integram o “camarote”, estão a cantora e atriz Manu Gavassi, dona do hit “Garoto Errado” e querida no nicho teen, e a blogueira Boca Rosa, que conta com mais de oito milhões de seguidores no Instagram, uma linha de cosméticos e algumas polêmicas.

Boca Rosa nega que tenha feito lipoaspiração para alcançar o corpo enxuto, mas um diálogo dela com a mãe registrado durante o intervalo de um programa de rádio contradiz a informação. Na lista de intervenções estéticas confirmadas por ela, constam também rinoplastia e silicone. Apesar disso, a influencer busca promover a autoaceitação em seu perfil no Instagram.

“Pipoca” e “camarote” ficarão confinados na mesma casa durante três meses para disputar o prêmio de um milhão e meio de reais. A nova estratégia lembra o reality show A Fazenda, da RecordTV, que já vem misturando famosos e aspirantes a subcelebridades há algumas edições. Aliás, apesar dos contextos distintos — como o nome sugere, A Fazenda se passa no ambiente rural, enquanto o BBB transcorre em uma casa com ares de swing club — , os programas funcionam em uma dinâmica cada vez mais parecida. Em ambos os casos, a quantia financeira oferecida não parece ser o foco dos participantes, que aparentam estar muito mais de olho na visibilidade proporcionada pelos realities. Mesmo que sejam eliminados e saiam de mãos abanando, é provável que recebam convites para eventos, trabalhos e, quem sabe, outros realities, já que é cada vez mais comum que os competidores se tornem profissionais do ramo dos reality shows e transitem entre Big Brother, A Fazenda, De Férias Com o Ex e Power Couple.

Nany People é uma das personalidades da mídia que recorreu aos realities para conseguir alçar novos voos na carreira. Em sua biografia, Ser mulher não é para qualquer um: minhas verdades (2015), escrita pelo jornalista Flavio Queiroz, Nany revela que decidiu participar de A Fazenda 3, exibida em 2010, com o objetivo principal de mostrar que, por trás de suas performances extravagantes e figurinos espalhafatosos, havia uma pessoa comum. A experiência dentro do programa, nas palavras da ex-peoa, foi um filme de terror, mas sua meta foi atingida. Eliminada na quinta semana, Nany foi recepcionada de maneira calorosa pelo público: ela explica que passou a ser melhor aceita, e mais portas se abriram. Acima de tudo, a exposição em A Fazenda 3 rompeu com o bloqueio social que associava a artista exclusivamente ao meio LGBTQ+.

Em A Fazenda 3, Nany People pôde mostrar uma versão mais à vontade de si mesma. Tão à vontade que perdeu a paciência com o desrespeito de Monique Evans com os demais participantes e quebrou o pau no programa, acusando Evans de ser “pior que travesti” no quesito apelação. Do lado de fora, o público elogiou o caráter da artista.

Nany People, aliás, sequer começou sua carreira no meio LGBTQ+. Ainda na infância em Poços de Caldas, antes de se descobrir transexual, Nany foi incentivada pela mãe, com quem tinha um relacionamento muito próximo, a entrar em um curso de teatro. Na arte, encontrou um refúgio para se esquecer do bullying na escola e dos maus-tratos do pai, que não se conformava em ter um filho que não se adequava aos estereótipos masculinos. Inclusive, quando a criança tinha apenas dez anos, a família procurou a ajuda de psicólogos e psiquiatras para solucionar o “problema” por meio da cura gay. Mas não adiantava de nada: Nany nunca se sentiu menino, e conta que, ainda pequena, quando descobriu que não tinha o órgão genital igual ao das outras meninas, ficou pulando, na expectativa de seu pitico cair.

Vocação para os palcos: Nany cantou em um show do Chacrinha em Poços de Caldas e ganhou uma televisão como prêmio pela boa performance. Em uma segunda passagem do animador pela cidade, ela se apresentou novamente e ganhou outra televisão.

Apesar de ter se formado como auxiliar técnico de laboratório de análise química industrial e trabalhar como auxiliar de escritório, a paixão pelo teatro só cresceu ao longo do tempo e, aos vinte anos, Nany percebeu que, se continuasse em Poços de Caldas, nunca conseguiria realizar seus sonhos. Então, para encontrar as oportunidades maiores que ansiava, ela pediu demissão do emprego e foi tentar a sorte em São Paulo. Lá, a jovem foi trabalhar no Teatro Paiol, onde começou na bilheteria, mas logo passou a desempenhar outras funções, como contrarregra, diretora de cena e comediante durante os intervalos das peças. Para complementar a renda, realizava outros serviços — Nany relembra que fez de quase tudo, mas, felizmente, nunca precisou se prostituir, permanecendo donzela até os vinte e dois anos de idade. Foi em um bico como vendedora em uma loja de vestidos de noivas que Nany fez amizade com estilistas e foi apresentada às vastas possibilidades do universo LGBTQ+ paulistano, descrito por ela como um espaço criativo, culto e inteligente.

A boate Corintho virou o rolê oficial de Nany, que fazia questão de se produzir de forma impecável para curtir as festas temáticas com as amigas drags. De tão garota, fisgou até um jogador de futebol famoso que frequentava o local — o nome, porém, ela não revela, mas adianta que foi apenas o primeiro de muitos. Certa vez, depois da gandaia, apareceu montada no Café Piu-Piu, onde também trabalhava, e acabou sendo convidada para ir com aquele figurino toda semana e fazer uma performance. Foi o começo oficial da carreira de Nany People como drag queen. O nome surgiu logo depois, como uma homenagem à atriz Nani Venâncio combinada com o apelido “People”, que fazia referência ao fato da jovem ser carismática e gostar do contato com as pessoas.

Nany People: uma mulher do povo.

No entanto, enquanto sua carreira artística ia de vento em popa, Nany enfrentava dilemas pessoais. Aos vinte e cinco anos, decidiu que queria passar pelo procedimento de transição de gênero e, com a supervisão de um médico, começou o tratamento hormonal. Aos vinte e sete, foi considerada apta para a cirurgia de redesignação sexual, mas não estava segura de que era aquilo o que queria. Havia pouca informação sobre a questão, além de que, das suas duas amigas que haviam feito a operação, uma havia cometido suicídio e a outra estava em depressão. A mãe de Nany, apesar de aceitar a transexualidade da filha, argumentou que “vagina não segura homem”, e fez a moça perceber que, ao contrário do que pensava na infância, não precisava fazer seu pitico cair para se sentir feliz com seu corpo. Desistiu, e só colocou as próteses de silicone. Mesmo assim, confidencia que vive sua sexualidade plenamente com namorados, affairs famosos e até mesmo garotos que debochavam dela na época da escola. Ah, e que adora chupar um suvaco asseado.

Na televisão, Nany People estreou em 1997, com um quadro no programa “Comando da Madrugada”, da Rede Manchete. Com a extinção da emissora em 1999, foi convidada por Amaury Jr. para ser repórter especial do “Flash”, na Rede Bandeirantes. Em 2001, conquistou a simpatia de Hebe Camargo e virou repórter do talk-show do SBT, onde permaneceu até 2006, ano em que migrou para “A Praça é Nossa”, ainda no mesmo canal. Paralelamente à TV, continuava com alguns trabalhos no teatro. Em 2010, foi a pausa para integrar o time do reality A Fazenda 3.

A amizade com Geisy Arruda nasceu dentro do reality e permaneceu firme fora das câmeras.

Com a visibilidade proporcionada pelo programa, foi júri do game show musical “Cante Se Puder”, no SBT, participou de sitcoms no Multishow e interpretou uma personagem transexual na novela “O Último Guardião”, da Rede Globo. Mais recentemente, em 2019, participou do programa musical “Pop Star”, também na Globo. Mas, para Nany, o mais marcante foi a turnê de dezesseis shows de stand-comedy no Japão em 2014. Além de ter sido recebida com carinho pelos brasileiros que vivem no país, ficou fascinada pela cultura nipônica, e confessa no livro um desejo de que o Brasil tivesse sido colonizado pelos japoneses.

Nany People se considera uma nipófila.

Ser mulher não é para qualquer um mostra Nany People como uma pessoa determinada, dinâmica e divertida. Senti falta de mais fofocas bombásticas, mas, ao longo da leitura, percebi que talvez elas nem existam –– Nany People parece ser discreta e buscar distância de baixaria. Com essa personalidade mediadora, ela é um forte nome para manter o equilíbrio dentro de uma edição all-stars do reality show A Fazenda. Será que ela participaria?

Nível de exigência da leitura: Baixo, mas decepciona quando comparada à títulos como A vida é uma festa, biografia de Amaury Jr., e As pedras no meu caminho, história da vida de Rafael Ilha, que, além de serem leituras com baixo nível de exigência, envolvem e escandalizam.

Obra passível de cancelamento? Sim, caso você se identifique com o feminismo radical.

Para quem a obra é indicada? Para aficionados pela televisão brasileira.

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