As últimas do Coiote
Jair, Eduardo, e o culto a Nazaré Tedesco
Reconhecida até hoje como um dos maiores vilões da TV brasileira, Nazaré Tedesco fez o sucesso da telenovela Senhora do Destino (2004–2005), de Aguinaldo Silva. Como uma grande má de novela, Nazaré era uma combinação imbatível de pouco caráter com enorme carisma. No capítulo em que foi desmascarada como a mulher que roubou a filha da mocinha, quase todo o elenco da novela estava presente na cena. No Complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso (BA), a ponte de onde ela saltou para entrar na História hoje é conhecida por seu nome.
Há uma boa explicação para a popularidade perene da personagem. Ao contrário de um Leôncio (Escrava Isaura) ou uma Flora (A Favorita), o seu pacote de maldades costumava redundar em fracasso, quando não em ridículo. Comeu o pão que o Aguinaldo amassou tanto quanto raptou filha dos outros e matou desafetos. No saldo final, era menos Cuca e mais Coiote Coió. Não havia esquema tão maluco ou humilhação tão braba que seu autoengano não transformasse em triunfo. Brilhante, gostosa, irresistível — segundo a própria — , tinha uma autoestima à prova de balas. Não havia buraco tão baixo do qual não pudesse atirar veneno contra homossexuais, pobres, negros, desdentados, nordestinos, num festival de preconceitos de não dar margem a dúvida sobre seus padrões éticos e morais. Provável que alguns espectadores lhe tenham até admirado isso, vendo nela um espelho liberado de suas ideias reprimidas.
Nazaré jamais desistia: como o Coiote, lá estava ela no capítulo seguinte urdindo o próximo plano contra o seu Papa-Léguas, a heroína Maria do Carmo (Susana Vieira), provavelmente uma bomba da fábrica Acme que explodiria ainda na sua mão. Sua comicidade fazia toda a diferença numa obra dramática. Renata Sorrah a interpretava sem freios, hipersexualizada (“Eu preciso de homem, delegado!”), enfatizando a caricatura que seria imortalizada em memes na internet décadas mais tarde. (Digite “confused math lady” no seu mecanismo de busca.)
Gerou mais que fãs: fez discípulos dispostos a incorporar sua filosofia de se dar bem sem ver à custa de quem. Dois deles, em especial, têm lugar de destaque no seu culto.
Pastor Jair
Durante seu mandato, ele já prestara homenagem à diva tentando roubar paternidade de vacina contra a covid-19. Também já demonstrou pouco apreço a homossexuais, negros, pobres, jornalistas, mulheres, asiáticos, enfermos, os próprios apoiadores, enfim, um país inteiro. Agora, cada vez mais encalacrado em investigações sobre presentes não-declarados de autocratas árabes e autoria intelectual de tentativa de golpe de estado, o ex-presidente Jair Messias “mas não faço milagres” Bolsonaro não esqueceu a tradição que representa. Continua na estrada para se manter relevante como cabo eleitoral da extrema direita apesar de estar, ele próprio, inelegível — repetindo, inelegível — por oito anos. Sua agenda mantém-se tão agitada quanto a de um candidato em campanha.
No dia 20 de outubro, ele se desbandou para Belém do Pará. “Multidão recebe Bolsonaro em Belém”, capricharam as manchetes na imprensa e nas assessorias de imprensa. A multidão de apoiadores dedicou-lhe uma motociata-surpresa, uma amostra de como o ex-presidente é querido por lá.
Levou consigo a ex-primeira-dama, Michelle, que mostrou ser boa política e engoliu em seco a aversão à adoradores de imagens para pisar na cidade em pleno mês de adoração da imagem de Nossa Senhora de Nazaré, padroeira dos paraenses. A festa religiosa, uma das maiores do mundo, começa no início do mês, com a procissão do Círio de Nazaré (2,3 milhões de pessoas segundo dados oficiais de 2023), e termina algumas semanas depois com o Recírio, no dia 23.
Não que Jair demonstre fazer muita ideia do que trata o Círio. No ano anterior, em plena corrida presidencial, ele participara da Romaria Fluvial que antecede a festa principal. Postou vídeo da passagem na sua conta do Instagram com a legenda “Sírio”, fazendo com que todos se perguntassem se estivera mesmo no Rio Guamá, num bar suspeito de alguém chamado Bashar al-Assad, ou numa estrela da constelação Cão Maior. Ninguém assumiu o boletim de ocorrência: o prefeito de Belém e o governador do Pará criticaram a visita, e a Arquidiocese de Belém mandou dizer que não convidara. A coisa toda lembrou aquela vez em que La Tedesco entrou numa igreja de penetra, óculos escuros e peruca, para assistir ao casamento da filha.
Essa nem foi a única vez que Jair tentou capitalizar com a festa alheia em 2022. No dia 2 de julho, ousado feito Nazaré sambando na cama da inimiga, realizou uma motociata eleitoral em Salvador ao mesmo tempo em que ocorria o evento cívico mais querido da cidade, o desfile que marca a data da efetiva expulsão dos portugueses e independência de fato do Brasil em 1823. Correlação não é causalidade, mas Jair recebeu somente 29,27% dos votos para presidente na capital baiana.
Um ano depois do passeio de barco, o motivo oficial do retorno a Belém foi o Encontro do PL Mulher Nacional. Dito assim de supetão, fica a impressão de se estar diante do Congresso de Educadoras de Aias de Gilead. Alguém que se aventure pelo site do Partido Liberal e clique na aba “PL Mulher”, ficará decepcionado quando a página não abrir ou entrar em combustão espontânea. (Elas ganharam um site genérico só para elas, completamente separado da página do partido.) A palavra “mulher” nem aparece no manifesto do PL. Mas se você clicar no programa do partido, vai se deparar com um texto até avançado. Lá está, por exemplo, a “busca pela igualdade de salários entre homens e mulheres que desempenham a mesma ocupação” e “ações de combate ao feminicídio e na promoção de assistência às mulheres em situação de violência”.
Como Jair entra na história, difícil dizer. Em seu governo, ele foi contra projeto de lei que ampliava multa por discriminação salarial contra trabalhadoras, mesmo sob pressão da bancada feminina da Câmara e de empresárias do mercado financeiro. De resto, ele criticou direitos trabalhistas no atacado. Em plena pandemia de 2020, com o aumento do desemprego, especialmente feminino, só 25% do orçamento para políticas voltadas às mulheres foi executado; e desses, 74% foi para a central de denúncia — mas não de combate — à violência contra a mulher. Com a flexibilidade do registro e o aumento da circulação de armas, promessa de campanha dele, todos os índices de violência contra a mulher aumentaram. Em Belém, ninguém tampouco perguntou a Jair ou Michelle o que foi feito da denúncia sem provas de estupro e tráfico de crianças na Ilha do Marajó feita por sua ex-ministra e atual senadora, Damares Alves, durante um culto da Assembleia de Deus em Goiânia em 2022. Damares, por alguma razão, faltou ao Encontro do PL Mulher. No meio disso tudo, Jair subiu ao palco mesmo foi para falar de Israel e Hamas.
Na noite do 20, tal qual Nazaré indiferente aos maledicentes, armou seu palanque na Praça Santuário, na Avenida Nazaré, de frente para a Basílica Nazaré, na hora da missa. Talvez tenha pensado que a Nazaré adorada era a Tedesco, senão teria dado ouvidos ao conselho de Josivaldo (José de Abreu), comparsa de nossa vilã, quando ela invadiu o quarto de Maria do Carmo e ridicularizou seu altar católico: “Não bole com a santa que dá azar!”
O site Poder360 fez um compilado de vídeos do evento sob o título “Bolsonaro é ovacionado em visita à Basílica de Nazaré, Pará”; por quantos, é outra história. Na foto que abre a matéria, pode-se ver um grande espaço vazio à esquerda, junto a uma estátua gigantesca de Nossa Senhora de Nazaré. Ao fundo, encarando Jair, há um grande telão na porta da basílica, exibindo a cerimônia religiosa ocorrendo ali dentro. No vídeo, a câmera atrás do ex-presidente e outra num drone, não se arriscam muito para fora do ângulo da frente do palco. Quando isso acontece, pode-se ver as ruas laterais desimpedidas.
A última parte do vídeo mostra Jair no alto de um carro de som deixando a praça pela Avenida Nazaré enquanto seus apoiadores se aglomeram para saudá-lo na saída. Mas outro vídeo nas redes sociais mostra a cena do ângulo do telão na frente da basílica. As pessoas que estão ali na frente ignoram todo o oba-oba para se concentrar na transmissão da missa em curso dentro da igreja. Sim: Jair fazia seu discurso bem na hora da eucaristia. “Alucicrazy”, diria Nazaré.
Retroceder nunca, render-se jamais. Na terça-feira 24 de outubro, quando o mundo comemorava o nascimento de Rafael Trujillo (1891–1961), ditador da República Dominicana, Jair resolveu alfinetar seu nêmese no eX-Twitter.
“A Transposição do Rio São Francisco após décadas de atraso e inúmeras suspeitas de corrupção foi concluída por nossa gestão”, escreveu ele, o filho Carlos, ou seja lá quem controle sua conta por esses dias. Até aqui, quase tudo bem: mentiras e propaganda política nascem de meias-verdades. A gestão Bolsonaro concluiu, em fevereiro de 2022, os 10% que faltavam da controversa obra, cuja construção vinha de 14 anos e três presidentes. Jair talvez tenha ficado sem espaço para acrescentar que o tal esquema de corrupção envolvia Fernando Bezerra Coelho, que teria recebido propina como Ministro da Integração Nacional de Dilma Rousseff. O mesmo Bezerra também foi líder aguerrido do governo Jair no Senado. Da mesma forma, não deu para acrescentar que, até o fim do seu mandato, não deixara nem fundos para manutenção da obra no orçamento de 2023 nem fechara acordo com os estados sobre quem deveria pagar por ela.
Detalhes! Imagem é tudo. Bolsonaro ilustrou a postagem com um vídeo. Começava com um homem mergulhando nas águas escuras de um canal artificial com a legenda “Governo Bolsonaro Março de 2022” abaixo de uma tarja branca. Em seguida, uma câmera passeava pelo que, entende-se, é o mesmo canal, agora seco. Um piano triste soava na trilha acompanhado da legenda “Governo Lula Setembro de 2023”.
No portal da Folha de S. Paulo, o jornalista Guilherme Seto descobriu: que a tarja branca escondia a origem do vídeo, o perfil do Instagram Jeito Nordestino; que o vídeo não era de 2022, mas de maio de 2023; e que, segundo a esposa do mergulhador no vídeo, o nível da água “está bem alto nos últimos meses”. O vídeo continuou no ar mesmo depois da matéria e até a postagem deste texto. Se você ainda não o recebeu de algum parente pelo WhatsApp, espere mais alguns dias. Nas palavras de Euclides da Cunha, um Bolsonaro é antes de tudo um trote.
Pastor Eduardo
É um trote, um meme, ou os dois quando o trote é autoinfligido. O terceiro filho do presidente e deputado federal (SP), Eduardo Bolsonaro, especializou-se nisso. Em março de 2020, saiu um perfil dele na revista Piauí, escrito por Thais Bilenky. A entrevista ficou célebre pelo trecho em que a jornalista pergunta àquele que já fora candidato à embaixada em Washington se ele sabia quem era Henry Kissinger, o ex-secretário de Estado dos EUA. “Não conheço”, foi tudo o que Eduardo tinha a dizer sobre notória figura.
A passagem ofuscou outro detalhe da matéria. Em seu apartamento em Brasília, Eduardo mostra a Bilenky alguns de seus livros e se deixa fotografar com eles. Na foto em preto e branco de Diego Bresani para a revista, o deputado aparece com um sorriso desarmado e o braço direito descansado sobre uma pilha de livros típicos de uma biblioteca bolsonarista básica, como a autobiografia do torturador Carlos Brilhante Ustra e O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota, de Olavo de Carvalho. Você não saberá que o título é esse vendo a lombada do livro, que mostra IDIOTA em letras garrafais ofuscando todo o resto. Aparentemente, o desenho de capa passou despercebido de todo mundo na Editora Record e, naquela sessão de fotos, do próprio Eduardo. O que se vê na foto é um homem sorrindo, debruçado sobre um livro que exibe enorme a palavra IDIOTA.
Eduardo é o filho que mais rivaliza com o pai no quesito memes midiáticos, com grande talento para a citação. Em 2019, após conquistar a liderança do PSL, o partido anterior de seu pai, na Câmara, saiu correndo do Plenário para não falar com a imprensa. Por três anexos do Congresso Nacional, com jornalistas em seu encalço, o deputado e seus seguranças avançaram em desabalada carreira, deixando pessoas esbarradas e ao menos um celular caído no meio do caminho. Toda a cena, claro, evocava a mais famosa debandada da internet brasileira: em 2015, uma servidora da Assembleia Legislativa de Goiás flagrada batendo ponto sem trabalhar fugia de uma repórter da TV Anhanguera, que tentava entrevistá-la aos gritos de “Senhora? Senhora?”
Era um presságio do que viria em 2022, quando Eduardo deixou de bater ponto na Câmara em dia de votar projeto de sua própria autoria, publicidade de armas de fogo. O motivo da falta foi uma viagem ao Catar. Lá, foi flagrado com a esposa em plena Copa do Mundo enquanto, no Brasil, apoiadores de seu pai se aglomeravam ao relento nas portas dos quarteis a pedir intervenção militar, o popular golpe de estado. Debaixo da saraivada de críticas, Eduardo gravou um vídeo explicando que estava no país para levar pen drives com “vídeos em inglês explicando a situação do Brasil.” Revelações bombásticas em pen drives remeteram a Nina, a mocinha de outra telenovela, Avenida Brasil (2012), que se embananou com fotos digitais e deixou tudo de mão beijada num pen drive para a vilã Carminha em vez de guardar os arquivos na nuvem. Eduardo, como Nina, não acredita em nuvens.
Eduardo — como Jair e Nazaré — acredita em oportunidades, não importa a crise. Argentina convulsionada com uma economia na UTI e uma eleição tensa, lá estava ele dando entrevistas à TV em apoio ao candidato anarcocapitalista à beira de um ataque de nervos Javier Milei. No dia da votação de primeiro turno, no meio de uma entrevista ao Canal 5 Noticias, foi tirado do ar e ridicularizado pelos comentaristas após defender “arma de fogo para os cidadãos”. Segundo a lei argentina, os meios de comunicação não podem veicular propaganda eleitoral de candidatos em dia de eleições sob pena de multa. O importante é que Eduardo apareceu.
Um mito só morre quando é esquecido, como Nazaré não se cansa de provar faz duas décadas. Seus fieis pastores estão aí para comprovar. Quando menos se esperar, lá estarão Jair e Eduardo de novo, após mais uma tentativa fracassada de capturar o Papa-Léguas, olhando para nós do alto de um abismo antes da queda. O Brasil só reza para que eles não o arrastem junto de novo.
A saga de Nazaré Tedesco em Senhora do Destino pode ser acompanhada na Globoplay. As desventuras do Coiote Coió estão nas diversas encarnações da série Looney Tunes, disponíveis na HBOMax.