Crime de recuperação de tesouro
A memória audiovisual da humanidade é caso de polícia
Foi uma daquelas coincidências. Às vésperas da comemoração dos 60 anos de Doctor Who, a série de ficção científica da BBC sobre um extraterrestre viajante do tempo, dois episódios da temporada de 1963-64, considerados perdidos para sempre, foram encontrados com um colecionador. À primeira vista, uma beleza de notícia, mas não para o colecionador, que reluta em entregar as fitas.
Episódios perdidos dessa época não são raridade. A BBC, como quase todo serviço público, sempre teve um orçamento apertado e os videotapes de gravação eram caros. Outro problema era falta de espaço. Assim, muitos programas eram simplesmente apagados para dar lugar a outros ou jogados fora. Estima-se que 70% de tudo o que a rede de TV britânica produziu entre as décadas de 50 e 70 tenha se perdido –– noticiários, doumentários, telenovelas, séries, shows, a memória audiovisual de várias gerações. Via-se a televisão como coisa sem valor.
Hoje, o resgate de raridades como esses episódios do Doutor Who se dá porque alguma cópia do programa foi encontrada numa sucursal da BBC no exterior e alguém resolveu guardar. Ou um funcionário da empresa em Londres salvou as fitas do lixo e montou sua coleção privada. O problema é que eles eram proibidos de se apropriar de qualquer bem da empresa onde trabalhavam, incluindo o que fosse descartado. Vir a público com uma cópia de filme ou programa de TV pode dar cadeia no Reino Unido.
E já deu: em 1975, o comediante Bob Monkhouse chegou a ser preso (pelo Esquadrão de Crimes Graves!) sob acusação de conspirar para fraudar as distribuidoras dos grandes estúdios norte-americanos. Na verdade, Monkhouse, um cinéfilo doente, tinha montado uma inestimável cinemateca de cópias em 16 mm compradas, legalmente, de segunda mão de outro colecionador ou doadas por amigos. O juiz mandou acabar com a palhaçada do julgamento em questão de semanas. Monkhouse foi para casa, mas parte da sua coleção se perdeu para sempre porque ele teria que provar a propriedade de cada um dos títulos de sua coleção na justiça.
Agora, você entende por que nosso colecionador do início dessa história ficou cheio de dedos. Para vir a público com as fitas, ele quer garantias da BBC de que não será processado e nem seu acervo apreendido.
Essa história caminha para um final feliz. Um brasileiro não teve a mesma sorte.
Leandro da Silva Evangelista, com outros três colaboradores, tocava um site chamado Carol Novelas, de onde se podia adquirir cópias em excelente qualidade de telenovelas antigas e recentes na íntegra por R$ 220 cada. Entre as obras raras e jamais reprisadas havia Gaivotas (1979), uma das últimas da extinta TV Tupi, e Olho no Olho (1993), o trash da Globo que antecipou Os Mutantes da Record. Tratava-se de um acervo de respeito, mas também de pirataria como negócio.
Em setembro, a Rede Globo entrou na Justiça para tirar o site do ar e exigiu suspensão da venda do catálogo além de R$ 100 mil em direitos autorais. Evangelista se antecipou à emissora, sumiu com o site e sumiu. Não se sabe o que vai ser de sua coleção.
A Globo alegou “concorrência desleal”. De fato, a comercialização das suas novelas por Evangelista quebrava leis e direitos autorais. Porém, o caso não é tão simples.
Muitas daquelas telenovelas não constam do catálogo da plataforma de streaming da emissora, a Globoplay, seja por terem sido fracassos na exibição original ou por outra razão qualquer. Entre 2010 e 2017, a Globo Marcas lançou 23 novelas e séries em DVD em versões compactas porque seria inviável disponibilizar uma obra dessas, para lá da centena de capítulos, na íntegra. Felizmente, há a Globoplay, o canal a cabo Viva, ou as reprises editadas na TV Globo para as campeãs de audiência e pedidos (no Vale a Pena Ver de Novo das tardes). Mas o que acontece com os fracassos de qualidade, como As Filhas da Mãe (2001–2), ou curiosidades históricas com baixo potencial de público?
Evangelista tinha dessas, e também de outras emissoras. Além de coisas da Tupi, obras da extinta Rede Manchete, cujas fitas originais, depois de muitas tentativas fracassadas, foram vendidas em leilão em 2021, por uma ninharia devido à péssima qualidade de conservação. Preservar arquivos audiovisuais dá trabalho e custa dinheiro. Evangelista pode até ter tirado uns trocados com a venda de cópias mas dificilmente fez R$ 100 mil para pagar danos morais. Preferiu fechar sua quitanda. Caso a ação da Globo prossiga na justiça, o que acontecerá com essas outras obras sem casa? Podem desaparecer no novelo burocrático como as raridades em 16mm de Monkhouse.
Ou Evangelista podia ser condenado a trabalhar num renovado departamento da Cinemateca Brasileira para conservação da telenovela nacional, financiado em parte pela Fundação Roberto Marinho, que alojaria coleções como a de Evangelista e outros aficionados. A criminalização da memória se dá no cruzamento do capitalismo com a arte, mas essa história não precisa terminar em colisão de veículos.
Novas tecnologias costumam nos dar a ilusão de que nossa bagagem cultural está mais segura e mais acessível. No entanto, livros impressos são vulneráveis a fogo e água. Assim como fitas magnéticas: o incêndio que consumiu uma década de produções da Rede Globo em 1976 está aí para provar. A Cinemateca Brasileira já teve bem umas cinco tragédias anunciadas, até porque filmes antigos eram gravados e armazenados em películas de nitrato de celulose, material facilmente inflamável. (O sistema antiincêndio do nosso utópico departamento de telenovelas da Cinemateca deveria ser a primeira coisa a ser pensada.) Arquivos digitais precisam de centros de processamento físicos tão ou mais sensíveis que as antigas películas.
As plataformas de streaming tornaram bem visível um outro problema para o público: o acesso. Na teoria, trocamos a qualidade dos filmes (arquivos comprimidos são transmitidos mais rapidamente) pela quantidade, mas a prática é outra. Basta ver a quantidade de títulos que saem dos catálogos dessas plataformas todo mês –– ou que nunca vão entrar. No site Just Watch, pode-se saber se um filme ou série encontra-se em exibição em qualquer das plataformas de streaming nacionais. Puxe pela memória e digite um nome. Da série Westworld ao filme O Americano Tranquilo, é vasta a lista que “não está disponível”. Com o declínio de vendas de DVDs e Blu-Rays, houve também uma redução drástica de lançamentos em mídias físicas. De qualquer forma, boa sorte em achar uma videoteca pública.
Filmes nacionais, mesmo os que não nasceram já na precariedade, sofrem mais ainda. São os colecionadores os heróis sem capa que disponibilizam títulos antigos ou fora de circulação na íntegra, às vezes em qualidade espantosa, no YouTube. Você pode ver Brasil Ano 2000 (Walter Lima Jr., 1969) lá, caso não queira ver se o filme entra na programação do Canal Brasil ou de uma plataforma como a Mubi. Para outros mais raros ainda, de qualquer nacionalidade, a última esperança encontra-se nalguma versão mais nova do site Pirate Bay, misturados aos campeões de bilheteria pirateados, quem sabe.
Seria bom pensar nos colecionadores de artefatos culturais como versões pré-distópicas das “pessoas-livros” de Fahrenheit 451, o romance de Ray Bradbury. Num futuro em que ler é crime, eles memorizam obras palavra por palavra. Realizam um retorno à tradição oral para que nosso legado não se perca para sempre.
Fahrenheit 451 está disponível em português na tradução de Cid Knipel pelo selo Biblioteca Azul. A versão cinematográfica de 1966 não se encontra em serviços de streaming, mas a de 2018 ainda está na HBO Max.
Fontes e sugestões:
https://www.atlasobscura.com/articles/bbc-missing-horror-show