O pecado da tradução

Maurício Sellmann Oliveira
Resumo da Ópera
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9 min readJan 28, 2024

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Na encruzilhada das palavras, é fácil se perder

A Torre de Babel (grande), de Pieter Bruegel, o Velho (1563)

Papel para escrever já foi um negócio escasso. Os palimpsestos eram manuscritos em material reaproveitado, onde se podia identificar vestígios de textos apagados por baixo de outros. Essa prática muito comum começou a ficar mais comum na Idade Média, quando conseguir papiro egípcio estava cada vez mais difícil. O jeito era reciclar, complicando a ideia de “original” — um conceito que, aliás, só se desenvolveu mesmo a partir do século XIV.

A palavra palimpsesto vem do grego para “rasurado ou raspado outra vez”, uma imagem que ilustra bem o ofício da tradução. Cada pedaço de uma língua, sejam palavras ou números, carrega consigo o peso da cultura que a criou: os contextos de seu surgimento, as razões que a levaram a ser adotada com um significado no lugar de outra por um número considerável de pessoas, sua relação com as outras palavras para formar expressões, o que havia antes e o que deixou de haver depois. Quando um tradutor verte um texto para outra língua, ele precisa rasurar a fonte para dar espaço à bagagem de uma outra língua, com seus contextos, diferenças culturais etc.

A diferença entre as palavras árabes حب (hob) e حرب (harb) é só uma letra, uma informação que carrega uma multidão de significados perdidos na tradução para “amor” e “guerra”. A sigla da organização palestina Hamas coincide com حماس, “entusiasmo” ou “zelo” em árabe, que é como o grupo terrorista gostaria de ser visto. Mas os judeus israelenses pronunciam o nome deles como חָמָֽס (khamas), hebraico para “violência”. A palavra espanhola jamás não tem nada a ver com as duas nem em origem.

Num campo minado como o Oriente Médio, cada erro de tradução pode gerar uma batalha. Depois de uma explosão num hospital em Gaza, em outubro de 2023, a imprensa internacional divulgou que houve 500 vítimas fatais, segundo o Ministério de Saúde do Hamas, que governa a Faixa de Gaza. Logo, apareceu uma avalanche de artigos condenando os jornalistas por acreditarem tão rápido na informação vinda de quem veio. Ficou-se cego ao fato de que a ONU, o Departamento de Estado dos EUA, e a própria inteligência israelense também usam dados do órgão palestino, assim como de qualquer outro território envolvido em um conflito. Afinal, o problema não foi do Ministério da Saúde: foi uma tradução malfeita para o inglês de um vídeo postado pela Al-Jazeera na rede social XTwitter. O porta-voz do ministério falara em ضحية (vítimas), que significa todos os que sofreram consequências do ataque, mortos e feridos. Ninguém tinha se dado ao trabalho de usar um tradutor próprio.

Falsos cognatos nunca começaram uma guerra, mas já forneceram a faísca que faltava para quem já procurava uma desculpa. Na segunda metade do século XIX, a França estava preocupada com o aumento territorial do império prussiano. Os franceses conseguiram com que o Príncipe Leopoldo, da família do Rei Guilherme I da Prússia, não assumisse o trono na Espanha, mas não estavam satisfeitos. Em 13 de julho de 1870, o embaixador francês interpelou o rei pessoalmente, pedindo garantias de que ninguém da sua família se candidatasse a rei da Espanha nunca mais. O rei recusou e pediu ao chanceler Bismarck que comunicasse ao público o ocorrido. Bismarck não só condensou o ocorrido para dar uma ideia de que o rei “se recusara” a ouvir o embaixador. Ele também escreveu que Guilherme “mandara comunicar-lhe por um adjutant que Sua Majestade não tinha nada mais a dizer ao embaixador.” O uso de adjutant, cereja do sundae, foi deliberado: a palavra significa oficial de alta patente em alemão, porém trata-se de um mero ajudante de ordens em francês. Doidos por um pretexto e bêbados de ufanismo, os franceses anunciaram mobilização de tropas no dia seguinte, o 14 de Julho, comemoração da Queda da Bastilha. Bismarck teve a guerra que também queria num vocábulo bem-aplicado.

Ferdinand de Saussure dividiu o signo linguístico, na base da língua, em dois elementos: as palavras ou significantes, e as imagens que elas evocam ou significados. É um prédio com dois pisos, um para a forma e outro para o conteúdo. Agora, tente construir esse mesmo prédio o mais semelhante possível num outro lugar, com suas próprias regras de edificação.

Nesse ramo complexo da engenharia, trabalham os poetas. E os tradutores de poetas. Chico Buarque brincou com a palavra Cálice na sua canção para tapear os censores (cale-se!). Como cantar isso em mandarim em Hong Kong? Paula Fernandes desistiu de qualquer sentido ao traduzir “We’re far from the shallow now” (Estamos longe do raso agora) da canção de Lady Gaga e foi de “Juntos e shallow now”. Já Lewis Carroll deu sentido a palavras que não existem ao colocá-las dentro de versos com estruturas lógicas no poema Jabberwocky. O tradutor precisa prestar atenção não só no significado original, como também no som das palavras para encontrar similares em sua língua. É agradável? É desconfortável? É uma repetição? É difícil de pronunciar quando se lê?

“Sobretudo o tom é fundamental”, explica Regina Przybycien, tradutora da poesia da Nobel de Literatura polonesa Wisława Szymborska para o português. “Toda tradução é uma tentativa de recriação em outra língua, com outros sons e outros recursos poéticos, do sentido do original.”

Toda tradução é uma tentativa.

“Manter as referências da cultura original e se valer de notas explicativas parece uma opção pouco poética”, prossegue Przybycien. “Por outro lado, utilizar referências da própria cultura, que o leitor possa identificar, desloca o sentido e inevitavelmente cria outras conotações.”

É trabalho de equilibrista seja na poesia ou na prosa. Alguns têm ajuda do próprio escritor, o que não anula os riscos de controvérsias. Deborah Smith foi criticada por acrescentar palavras à escrita esparsa da sul-coreana Han Kang, em obras como A Vegetariana, mas as duas trabalharam no processo juntas e continuam até hoje. Outros tiveram casamento mais tranquilo. Lia Wyler manteve contato com J.K. Rowling para reinventar em português os nomes de feitiços e neologismos do universo de Harry Potter. A francesa Alice Raillard virou amiga de longa data de Jorge Amado, chegando a publicar um livro de entrevistas com ele.

Já quem não tem esse privilégio, não raro precisa sacrificar uma coisa por outra. Um bom exemplo disso é uma frase cômica da novela A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua, de Amado. Lá pelas tantas, os amigos levam Quincas, o morto que pode estar vivo ou vice-versa, a um bar, onde encontram fregueses a fim de provocar briga. O inevitável acontece:

“Deu-lhe Quincas uma cabeçada, a inana começou.”

Há, pelo menos, três desafios para um tradutor aqui: a oralidade da frase; a ideia de velocidade na omissão de conectores (“quando” ou “e”); e a sonoridade da palavra inana, um termo popular para encrenca que ainda lembra banana, presente no imaginário cômico mundial. É muita coisa para uma linha. Na mais recente tradução para o inglês, de 2012, Gregory Rabassa preferiu “Quincas atingiu-o com a cabeça, e a diversão começou”, e o clima mudou. Podia ser Nick Carraway narrando O Grande Gatsby. Quincas deu-lhe uma cabeçada, mas Rabassa passou-lhe a perna.

“Tradutor, traidor”, diz a famosa máxima, e não é de hoje. Em 1539, Niccolò Franco escrevia: “Meus caros traidores, se não sabem fazer outra coisa que não trair um livro, vão se cagar no escuro!” Acabou morto não por traduzir errado, mas por difamar um papa. Já Antoine Galland traiu e viveu para contar as histórias de As Mil e Uma Noites. Ao introduzir o conjunto de narrativas tradicionais árabes ao mundo ocidental no século XVII, ele adicionou histórias, omitiu poemas e obscenidades, cortou passagens que considerava longas, enfim, achou que a casa era sua. Foi o que também fez o escocês C.K. Scott Moncrieff com Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Cathay (1915), a coletânea de poemas clássicos chineses em inglês do modernista Ezra Pound, foi feito com base em notas de um sinólogo, Ernest Fenollosa, já que Pound não entendia bulhufas dos originais. Mais palimpsesto, impossível.

Outros são mais diligentes; detetives à procura de pistas. Ao traduzir para o inglês Memórias Póstumas de Brás Cubas, Flora Thomson-Deveaux deparou-se com a palavra calabouço. Podia ter se conformado em usar a medieval e genérica dungeon. Porém, algo naquele parágrafo do romance de Machado de Assis a fazia suspeitar de algo mais. Estava certa: pesquisou e descobriu que o Calabouço era uma prisão para escravos a serem punidos pelo estado. Embora Machado tivesse escrito a palavra toda em minúsculas, Thomson-Deveaux resolveu-se por “the Dungeon”.

E o que é, afinal, um original? Se voltarmos mais para trás, percebemos que a palavra no início de todo o processo é, ela própria, um instrumento imperfeito. Pense num vocábulo como malandragem. Dependendo da experiência de cada um, da cultura que assimilou, dos padrões morais que desenvolveu, ela vai ser entendida de forma positiva ou negativa. Mesmo que um escritor crie um tratado sobre os males da malandragem, o espaço entre a cabeça dele, a profundidade da palavra, e a cabeça do leitor é grande o suficiente para alguém fazer uma interpretação oposta. “Amai-vos uns aos outros como vos amei”, mas quantas cruzadas mortais foram travadas por causa dessas palavras?

Uma igreja inteira surgiu da tradução de um versículo bíblico na Bíblia versão King James. Em Marcos 16:18–19, Jesus diz que aqueles que espalharem o evangelho poderão “pegar serpentes; e se beberem algo mortal, nada os ferirá.” Na região dos Apalaches, nos EUA, isso motivou, no início do século XX, a fundação de cultos de manipulação de serpentes, em que os répteis venenosos são retirados de jaulas e passados de mão em mão entre os fieis. Acontece que em outras traduções do grego αρούσίν, optou-se por seguir a mesma solução de outros trechos que contêm a raiz da palavra: “matar”, “levar”, “remover”, em vez de “pegar”. Além disso, os versículos 18 e 19 do capítulo 16 do Evangelho de Marcos são apócrifos. Ele termina no versículo 8, e tudo o que vem depois é puxadinho para fazê-lo ficar redondo junto aos outros evangelhos do Novo Testamento. Dá para dizer, portanto, que morreu gente por conta de uma tradução ruim de uma falsificação.

Com todos esses perigos, a inteligência artificial aparece como remédio para as enxaquecas da tradução. Do treinamento com bilhões de textos e um sem-número de comparações, os modelos de linguagem poderiam chegar a interpretações mais exatas. Tecnologias de redes neurais artificiais prometem refinar contextos. No entanto, como vimos aqui, as línguas não são ciências exatas, menos ainda com multidões de colaboradores. Um erro pode se multiplicar simplesmente porque várias pessoas seguiram a opção de um só intérprete equivocado, contaminando o banco de dados da IA. E há todo aquele espaço entre o significante, o significado, e a tomada de decisão.

Quando usamos páginas como Linguee e Reverso Context para buscar compilações de traduções de expressões, a máquina apenas recolhe exemplos classificados como relevantes graças a uma série de parâmetros programados. Mas a escolha da melhor tradução é nossa, com base em parâmetros subjetivos que as atuais IAs ainda não conseguem replicar. A quantidade de nuances envolvidas numa “verdade” e as conexões que formamos para chegar a ela transcendem a capacidade da máquina. Um poema, como escreveu Roland Barthes, é uma vasta metáfora. Quanto mais original o texto poético, mais ele brincará com as palavras, entrando em colisão com o treinamento da inteligência artificial.

“Em vez de pedir a verdade, [a máquina] pede a opinião do planeta inteiro, na verdade de qualquer pessoa que já escreveu algo online”, escreveu o cientista da linguagem Guillaume Deneufbourg em 2021. Essa observação continua de pé após a aparição do ChatGPT e dos mais avançados modelos largos de linguagem. Sua verdade são as estatísticas, não os significados.

Você já falou ou provavelmente já ouviu alguém dizer que tal palavra ou frase de uma língua não tem uma tradução para nenhuma outra língua. Isso é uma meia-verdade. Cavando bem, dá para se dizer qualquer coisa em qualquer língua, inclusive a famigerada saudade. Podem ser necessárias várias palavras em vez de uma, porém com jeitinho dá. Por outro lado, continuaremos a ser vítimas da velha maldição: uma língua não é ciência exata, quanto mais duas. Há sempre algo que nos escapará. E que nos trairá — ou será usado para nos trair. É do ofício dos melhores tradutores.

Tradutores em ação: detalhe de A Morte de Júlio César (1804–6), de Vincenzo Camuccini.

Aqui você pode ver traduções de Jabberwocky para várias línguas, inclusive para o português brasileiro pelo poeta Augusto de Campos. A minha tradução do texto de Bismarck é de segunda mão, a partir de Bismarck: Uma Vida, a biografia de Jonathan Steinberg. As Mil e Uma Noites tem uma tradução bem cuidada do árabe ao português, trabalho de uma vida do pesquisador Mamede Mustafa Jarouche. A Companhia das Letras publicou três volumes de livros bíblicos, inclusive o Novo Testamento, vertidos do grego por Frederico Lourenço.

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Tentando entender o que acontece no mundo por meio da ficção. E vice-versa.

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Written by Maurício Sellmann Oliveira

PhD in Latin American Cultural Studies at the University of Manchester. Só por curiosidade. Também encontrado no Almanaque Semanal (Substack).

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