Sem noção

Maurício Sellmann Oliveira
Resumo da Ópera
Published in
10 min readFeb 25, 2024

--

Decidindo no escuro

Donald Rumsfeld em cena do documentário The Unknown Known (Errol Morris, 2013)

“Há desconhecidos desconhecidos.”

Foi assim que o secretário de defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, respondeu, em 2012, a um jornalista que lhe perguntara sobre a falta de evidências de armas de destruição em massa que justificassem a invasão do Iraque. Rumsfeld inventara uma saída para não ter que admitir que se fiava na fé em vez do fato, mas a sua frase não era inédita.

Os conceitos de coisas conhecidas, conhecidas ignoradas, e desconhecidas ignoradas foram elaborados no campo da psicologia em 1955. A Janela Johari (dos psicólogos Joseph Lutz e Harrington Ingham, daí o nome) era um modelo de representação para avaliar o autoconhecimento e o estado das relações entre pessoas e grupos. Um dos objetivos terapêuticos do uso dessa ferramenta era a expansão da área de conhecimento não-ignorado. Quanto mais uma pessoa se conhece, tem mais possibilidades de uma vivência saudável. O mesmo vale para suas relações com os outros e dentro de grupos sociais.

É possível extrapolar essa ideia. Quanto maior a quantidade de fatores desconhecidos mas importantes numa sociedade e que as pessoas sequer ignoram que existem, mais disfuncionais serão as relações sociais. E no entanto, cidades, países inteiros parecem resolutos em manter esta condição.

Tipos desconhecidos

No Brasil, esse panorama tem até uma ilustração simbólica. Desde 2014, o orçamento para a ciência e o ensino superior encolheu R$ 117 bilhões — houve um pequeno aumento em 2023, logo apagado pelos contingenciamentos orçamentários de 2024. Educação e ciência, juntamente com saúde, costumam ser as primeiras baixas quando um governo precisa aumentar o quinhão de parlamentares para agradar, sem qualquer projeto público, ranchos eleitorais em troca de votos. No mesmo período em que ciência e companhia murcharam, o valor destinado a emendas parlamentares obscuras triplicou.

Uma das formas mais simples de se esconder uma informação é deixa-la à vista sem alarde. A linguagem da burocracia e das leis faz isso muito bem. Basta um empurrão das manchetes nos jornais e dos títulos nas redes sociais para mostrar que o poder público está fazendo sua parte, e desviar a atenção de um detalhe importante lá no meio do texto legal.

A maioria das leis, decretos, e decisões de alcance amplo do Supremo Tribunal Federal não se realizam sem a elaboração de um outro tipo de norma que descreva — “na forma da lei” — como se vai colocar tudo em prática. Algumas das regulamentações demoram anos para serem formuladas e aprovadas; muitas vezes, são esquecidas. De acordo com o Senado, 35 anos após a promulgação da Constituição Federal, ainda existiam 163 dispositivos nela sem regulamentação, isto é, eram normas ocas seja por falta de vontade ou por muita vontade mesmo.

Outras vezes, as leis e jurisprudências ainda geram mais confusão, o que demanda mais normas para esclarecê-las num novelo sem fim. No fim de 2023, o STF aprovou tese da responsabilização de empresas jornalísticas por “entrevista em que o entrevistado imputa falsamente prática de crime a terceiro” quando não for observado “o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos.” Mas o que é esse “dever de cuidado”? Como cada juiz pode interpretá-lo? O conceito é tão aberto que um dos ministros, Gilmar Mendes, admitiu que a tese carece de revisão.

A informação vaga é um substituto conveniente para a ausência de qualquer informação: na dúvida sobre o que ela significa, não se faz nada. Em 2021, representantes de 38% das escolas no país disseram, em questionários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ter dificuldades em lidar com o bullying. O resultado pode não ter sido maior porque muitas escolas ainda funcionavam remotamente no meio da pandemia. Porém, este é um problema reconhecido há mais de uma década e que está na raiz de massacres. Por muito tempo, escolas foram deixadas para lidar com o assunto por conta própria. Agora, vem do governo uma alteração do Código Penal que tipifica o bullying como crime mas não ataca o que está por trás dele. O MEC promete um programa coordenado para “apoiar as secretarias municipais e estaduais de Educação no desenho de suas políticas e programas locais de prevenção e combate à violência.”

O que vai significar isso na prática? Todos os funcionários escolares (além de professores, pessoal da limpeza, cantina, administração) receberão treinamento básico? Quem providenciará o treinamento? Esse treinamento será em hora extra e remunerado? Os alunos discutirão as implicações e consequências do bullying? A Noruega tratou de tudo isso com a criação, em 1983, do Programa Olweus de Prevenção de Bullying, que vem sendo testado com sucesso em várias partes do mundo. Não se pode esquecer das adaptações a realidades locais. Como isso seria adaptado para o contexto de violência na sala de aula já enfrentada por professores do ensino público brasileiro? Planejamento malfeito e pronunciamentos cosméticos não resolvem o problema. Todas as pessoas afetadas pelo bullying reconhecem que ele precisa ser combatido, mas precisam saber como fazê-lo.

Quem trabalha ou trabalhou numa escola, pública ou privada, sabe que essas medidas costumam funcionar somente no nível rarefeito das intenções. Assim, alunos com necessidades especiais são integrados a turmas sem que nem o professor nem os outros estudantes estejam realmente preparados para acolhê-los, tornando a experiência — impositiva — um desastre para todos os envolvidos, menos para o dono da escola ou o secretário de educação, que ganham no quesito marketing. Quando confrontados com essa ausência de plano, seus autores costumam recorrer a um contra-argumento cínico — “ou é isso ou não fazer nada” — como se as duas alternativas não fossem a mesma na prática.

É de praxe também jogar um novo conceito nos peitos da população sem se dar ao trabalho de informar por que ela está obrigada a mudar hábitos inculcados numa vida inteira. A consequência é que. especialmente em tempos de crise econômica, qualquer sugestão de mais sacrifício será recebida como afronta, que só merece ser respondida com agressividade.

Em 2019, o governo holandês anunciou um programa antipoluição radical que previa o fechamento de fazendas de gado para cortar a emissão de nitrogênio (80% proveniente da agropecuária). As medidas foram elaboradas sem participação dos próprios fazendeiros, que ficaram nervosos sem saber se perderiam suas terras na marra. Isso ainda vinha na esteira de meio século em que o próprio governo estimulou o endividamento deles para aumentar a produção enquanto cortava investimentos de infraestrutura no campo. Além disso, não tinham já conseguido cortar a emissão de nitrogênio em dois terços em 20 anos? Nenhum dos agricultores sabia bem porque aquilo se tornara urgente (diretrizes da União Europeia ao acordar para a crise climática) mas registravam uma agressão gratuita. O inevitável protesto dos fazendeiros transformou-se num ímã para insatisfações de vários setores da população, da mesma maneira que os protestos pelas tarifas de ônibus no Brasil em 2013. No fim dessa bola de neve, em 2023, a extrema-direita finalmente chegou ao poder na Holanda.

Há também os conhecidos que se prefere ignorar, vulgo viés de confirmação. Quando a informação contraria nosso senso de pertencimento a um grupo, o reflexo nos manda rechaçá-la mesmo que isso vá contra nossos próprios interesses. Não é por acaso que a palavra reacionário vem de reação.

Jair Bolsonaro pode ter sido bom para o agronegócio no curto prazo ao afrouxar regras ambientais e emprestar a fundo perdido, mas como lembrou o megaprodutor de soja Elusmar Maggi, sequer investiu em infraestrutura. Sua política de sucateamento de controles ambientais vai voltar para assombrar latifundiários e minifundiários em breve. Mas, nesse setor, Bolsonaro era “um dos nossos”. Com esse comando típico de como o cérebro humano evoluiu, revogam-se todas as disposições em contrário.

Uma luta para saber

Assim como os desconhecidos ignorados e o viés de confirmação, os conhecidos ignorados fazem a diferença para uma vida comunitária sadia.

Mesmo os cidadãos atentos para o uso da máquina pública terão dificuldade para fiscalizá-la. De acordo com levantamento do site Fiquem Sabendo, que busca informações governamentais por meio da Lei de Acesso à Informação, 77,36% de uma amostra de 100 portais de governos estaduais, prefeituras, assembleias legislativas, e câmaras municipais possuíam “algum recurso” de acesso a dados que deveriam estar ao alcance de todos. Entre os 23 portais restantes, a turma do apagão total de dados, encontram-se os do governo de São Paulo, do Amapá, e do Mato Grosso, e o da cidade de Salvador.

Muitas vezes, nem as próprias autoridades eleitas sabem quais são suas atribuições ou se interessam em saber. Iniciativas esparsas até existem para tentar melhorar a qualidade dos eleitos. A prefeitura de Santos (SP) ofereceu em 2020 um curso online sobre o papel do vereador que incluía aulas sobre a Constituição Federal e a lei orgânica municipal. Há um projeto de lei na Câmara dos Deputados obrigando representantes eleitos do Legislativo nas três esferas a participar de um “curso de formação”. Proposto somente em 2019, está em tramitação até hoje sem data para votação, um deixa-pra-lá eterno.

No setor privado, a automatização de serviços tornou-os mais rápidos. Graças a sistemas de inteligência artificial, o consumidor pode esclarecer dúvidas comuns sem enfrentar tempo de espera longo para ser atendido. Mas há muitas dúvidas que não são comuns, e problemas para os quais não há resposta preparada. Nesses casos, o sistema automatizado de atendimento ao cliente funciona como uma barreira intencional para que a empresa não o auxilie. Companhias aéreas, por exemplo, dificultam a busca por um endereço de e-mail ou um número de telefone para atendimento por um ser humano, se é que esses meios existem. Obrigam a aceitação dos termos de compra mesmo quando o cliente tem certeza de que está sendo prejudicado. Como numa história de Kafka, o consumidor está condenado por um sistema que se recusa a responder suas perguntas.

Conhecidos só de nome

E há os conhecidos ignorados que só parecem ser conhecidos.

Em 2012, os cientistas cognitivos Steven Sloman e Philip Fernbach perguntaram a vários eleitores norte-americanos o que pensavam sobre diversas propostas de política pública, como planos de saúde, imposto único, mercado de carbono, reforma no pagamento de professores. Em seguida, pediram que avaliassem, numa escala numérica, o seu grau de conhecimento de cada assunto. Depois, eles tinham que explicar da melhor forma possível o impacto de cada uma dessas medidas. Como contam em The Knowledge Illusion (A Ilusão do Conhecimento), os entrevistados engasgaram e empacaram. Quando Sloman e Fernbach lhes pediram que avaliassem seu conhecimento sobre os temas outra vez, eles foram bem mais cautelosos.

Geralmente, Sloman e Fernbach argumentam, o discurso sobre políticas públicas concentra-se “no motivo para acreditarmos naquilo, em quem concorda conosco, na razão para defendermos o valor ideológico daquela política, no que ouvimos sobre ela antes.” Ao requisitar de seus entrevistados uma explicação sobre causa e efeito do que defendiam, os dois forçaram-nos a encarar consequências concretas de suas convicções em abstrato.

Parece uma conclusão óbvia em retrospecto, que deveria guiar todos os que se dedicam a investigar, recolher e transmitir informação, mas cá estamos em 2024 e certas coisas não mudam.

No início de fevereiro, após operação da Polícia Federal que investigava a participação do ex-presidente Bolsonaro em conspirações para golpe de estado, o instituto AtlasIntel perguntou em pesquisa:

“Na sua opinião, se o ex-presidente Bolsonaro tivesse declarado o Estado de Sítio depois da organização do 2º turno das eleições presidenciais para tirar os poderes do Supremo Tribunal Federal e convocar novas eleições, você teria apoiado a declaração do Estado de Sítio?”

Dos 1615 respondentes, 36,3% disseram que sim. Noutra resposta, 32,8% afirmaram que a decretação de estado de sítio por Bolsonaro não constituía golpe de estado. Os pesquisadores não pediram para que os entrevistados explicassem como se decreta um estado de sítio, uma operação que só se realiza com autorização expressa do Congresso Nacional. Era o mínimo de cuidado num país em que cerca de 11 milhões juram que a Terra é plana. Dá para apostar que a turma do “não sei” teria aumentado.

A maioria das pesquisas de opinião se dá nesse tenor de conhecimento presumido. E informam horas e horas de programas e sites jornalísticos como se tivessem o mesmo valor de informação.

Um experimento diferente testou o valor da informação levando em conta o contexto de alta polarização. Em 2019, o presidente populista linha-dura Rodrigo Duterte estava no auge de sua popularidade nas Filipinas. Seu nome garantiria a vitória fácil de seus candidatos nas eleições para senador daquele ano. Três pesquisadores trabalharam com uma coligação de oito partidos de oposição, os Otso Diretso. Num universo de algumas cidades pequenas do interior, eles elaboraram esquemas com três tipos de abordagens a eleitores: uma baseada na emoção (para controle, pois foi a usada pela coligação em escala nacional); uma baseada na informação detalhada sobre os projetos de seus candidatos; e uma combinação de emoção com informação.

A abordagem da informação se mostrou a mais bem-sucedida para angariar votos entre indecisos. E mais: acompanhamento pós-votação mostrou que eleitores pró-Duterte de carteirinha, mesmo sem mudar sua escolha, diminuíram a resistência aos candidatos de oposição após a abordagem de informação com emoção calibrada. A abordagem menos eficaz foi exatamente a que a coligação decidiu usar na campanha que lhe garantiu derrota absoluta. Extrapolando seus resultados, os pesquisadores estimaram que a oposição teria eleito ao menos um senador se a abordagem informativa tivesse sido usada com 10% dos eleitores filipinos.

É impossível sabermos muito sobre tudo ou sobre muitas coisas, mas é possível criarmos consciência de nossa ignorância e de como outros tentam manipulá-la. Em algum grau, o efeito Dunning-Kruger — quanto maior o desconhecimento de algum tópico, mais o indivíduo superestima sua habilidade em lidar com ele — afeta todo mundo. Autorreflexão e informação costumam ser os melhores detergentes — se as pessoas souberem que essas coisas existem.

A Chegada do Cavalo em Tróia, por Tiepolo (1760).

O livro The Knowledge Machine ainda não está disponível em português. As histórias de Franz Kafka, porém, estão.

--

--

Maurício Sellmann Oliveira
Resumo da Ópera

PhD in Latin American Cultural Studies at the University of Manchester. Só por curiosidade. Também encontrado no Almanaque Semanal (Substack).