"Saturno devorando um filho" (detalhe), by Francisco de Goya

algum tempo ao tempo

a ousadia de tomar um tempo para si

Ricardo Silva
Retalhos de Tudo
Published in
3 min readApr 17, 2017

--

Apenas calma. Talvez seja o que nos falta. A paciente calma, a calma quieta, a calma mansa e apaziguadora. O ponteiro gira em outra velocidade. Tudo se encurtou. A vida precisa desdobrar-se para ser contorcionista e caber na minúscula caixa do dia. Tudo um pouco mais curto. Não é uma novidade desses nossos dias, mas esses dias nossos deixaram as sensibilidades para a percepção disso ainda mais afloradas. Fazer tudo no curto tempo que corre e encolhe-se a cada minuto de procastinação, este oitavo pecado capital.

O ócio aristotélico já não é mais admitido no meio de nós. É preciso comer, pagar as contas, ter alguma diversão, dar conta do recado. E na secretária eletrônica da vida, a lista dos recados dos quais têm-se que dar conta é penelopiana, e em constante acréscimo de recados. É um sem-fim de recados novos a cada segundo que tiquetaqueia no relógio. E nenhum pode ser adiado, posto para o fim da lista. Alguns, os pecadores mais sinceros irão admitir, são colocados para mais tarde e se vai mudando as prioridades de minuto a minuto. Preciso ler mais, preciso destravar aquele texto, a série ainda está na metade, o relatório já está atrasado em duas semanas, vou ter que deixar aquela transa pra depois (de novo). Talvez a transa não se deixe para depois, mas ela vai ter que passar por cima do tempo do relatório que, por sua vez, já estava esmagando o tempo das séries que faz pesar ainda mais a culpa que paira sobre o tempo das leituras, que estão soterradas sob os tempos de outras tantas coisas mais importantes.

Nisso do tempo ir nos devorando com pressa e afinco, vamos correndo para que consigamos fazer o máximo no mínimo. Mas não é possível. O humano não pode deixar de ser humano. A máquina sim, processa, corre, não mastiga, avança sem olhar para os lados. Também podemos correr, processar, avançar sem olhar para os lados enquanto não se mastiga. Mas somos humanos, nosso tempo é um tempo diferente do da máquina.

Assusta esse orgulho do muito fazer, do não respirar, do engolir sem deglutição, desse ranking que lista quem mais produz e que pune a exaustão como um pecado, como uma manifestação funesta da nossa natureza mortal.

Pois somos mortais e há certas contemplações necessárias para que consigamos deixar com que esse ato, perigoso por si só, que é viver, seja menos atribulado. Parar e sentir prazer no tempo parado. Se o prazer vai ser em poder comer aquele prato recheado e sentir cada mastigada, cada colherada ser processada pausada e gostosamente, tudo bem; se vai ser de sentar-se, em qualquer lugar, com o seu livro e poder lê-lo sem culpa, e voltar quantas vezes for necessário nos parágrafos obscuros, que seja; e se for trocar aquela transa cansada de final de dia por uma transa energética e que a textura das peles seja sentida com gosto, ainda melhor.

O que precisamos é de calma. Dar algum tempo ao tempo. Não crer mais que ser rápido é ser bom. Não tem problema nenhum em ler tantas e tantas vezes a mesma coisa, em parar para compreender nas entrelinhas assuntos preferidos ou novos. Para descobrir certos tesouros é preciso cavar, e para cavar você vai precisar de tempo, um tanto de dedicação e vontade. É bom se dar o luxo de poder ter algum luxo para se dar. O tempo é o luxo que qualquer um pode ser dar — mesmo aqueles que já foram se armando, ao ler essa última frase, da impossibilidade de abrir um espaço livre na agenda. Foda-se a sua agenda. Você não tem tempo, ninguém tem tempo, tempo se faz.

Aperte o freio. É uma ousadia, bem sei, mas você vive, não é? Impossível eu te dizer uma ousadia maior do que essa. E se quiser, leia esse texto de novo.

Curta o Retalhos no Facebook // Siga Ricardo no Twitter //

--

--