The Lovers de René Magritte

deixar o outro desaparecer

Chega a hora onde se percebe que, não há jeito, o outro se foi

Ricardo Silva
Retalhos de Tudo
Published in
8 min readSep 12, 2016

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Antes de tudo, é preciso saber como alguém surge, aloja-se dentro, cá no peito. Pense que esse peito é uma casa ainda desmembrada, vaga, com algumas poucas mobílias espalhadas pelos cômodos, mal ajambrada, pouco limpa; com nítida necessidade de reparos imediatos. Uma casa quase abandonada. Quase porque ainda se vive por lá, ainda se frequenta aquele espaço, mas a ida é com tédio, e com a ciência de que chegar lá vai ser um desgosto. O vazio do espaço incomoda, irrita e toda aquela bagunça da ausência sempre causa certa repugnância por causa daquele espaço de onde você não pode se mudar. Essa possibilidade não existe. Das tantas condenações da vida, viver nesta casa que fica aí nesse peito de respiração lenta é uma delas, sem chance de negociação. Se vire.

Sem vizinhos, vive-se só na casa do peito. Evita-se visitas. Elas podem também ficar incomodadas com toda aquela sujeira e bagunça e irem embora pensando que quem tem uma casa assim talvez não esteja muito interessado em viver bem. Dessas raras visitas, aparece uma de raridade ainda maior. É aquela visita que ao ver como a casa está, se dispõe a ajudar. Sempre estranha-se essas visitas. A desconfiança é natural para todo solitário. Até recomenda-se. Porém, para todo desconfiado há alguém capaz de quebrar esse bloqueio, e pular esse muro com uma facilidade acrobata. Essa visita chega, começa arrumar as coisas, traz algumas coisas suas, diz que podem ajudar no ambiente. Se fica ali olhando a visita intrometer-se no seu tão surrado e escondido espaço. A visita bebe um pouco de ousadia e chama também para a faxina. “Não posso sozinhx”, é o que a visita diz. E chega-se a conclusão de que a visita está certa, é impossível arrumar a casa sozinho — ao menos ali, naquele agora, era muito improvável que sozinho algo acontecesse. Então firma-se a ajuda, a visita já não desperta desconfiança e já se fala do porquê aquele pedaço de pizza estava fazendo aniversário debaixo do sofá, da razão daqueles livros terem quase sumido debaixo da poeira, e da falta de vontade de comprar algo novo para comer. Depois de uma faxina inicial, é aí que a visita deixa esse posto para ir à outro, que é o de morar na casa do peito. Já se destravou as amarras, já se baixou as principais guardas e aquela presença enche a casa.

Agora a casa é outra: limpa do chão ao teto, algumas flores para dar alegria e cor ao ambiente, a sala enfim recebeu aquela poltrona prometida pra si há anos, a pequena biblioteca aumentou, recebeu novos livros; finalmente aquela varanda protelada desde sempre, foi feita com muito esforço para que se possa curtir o clima ameno e gostoso com companhia e de forma confortável. Tudo pacífico, tudo parecendo encaixar-se exatamente no lugar que lhe compete. A casa agora tem vida e mantê-la assim parece ser o novo objetivo da existência. Quem era novidade, agora faz parte da casa e divide um quarto, de longe o melhor cômodo, o mais aconchegante, aquele para prolongar as horas preguiçosas sentindo o corpo do outro fixado ao seu. A harmonia firmou-se por aquela casa do peito.

Porém sabe-se que, da numerosa lista de condenações que se tem ao chegar para viver por cá nesse mundo, uma delas é a das mais cruéis — e necessárias: tudo finda-se, acaba. Aquela harmonia inalterada, de alguns tempos para cá, começa alterar-se, e o normal fica estranho. As razões para aquela pequena desordem só os dois, ou nem eles, sabem. Os risos ficam esparsos, um fica na sala e o outro no quarto, um pequeno abismo forma-se entre os dois e aquela existência compartilhada já demonstra ser inviável. É hora de cada um seguir caminhos distintos. E o outro que ali morava, volta a ser visita, com ida cada vez mais distantes uma da outra, até que chega o tempo em que não há mais visita, e aquela casa está vazia de novo. Não totalmente vazia. Ficou tudo do outro que morava ali. Os livros, as roupas, e o eco daquela risada em cada parede da casa. O outro foi, mas não sumiu.

O narrador do livro “Uma casa na escuridão”, do português José Luís Peixoto, é um escritor que vive um dilema típico de um romântico — que ele é, na realidade: ele encontra-se às voltas com uma musa que lhe apareceu dentro de si e que converteu-se nesse amor de uma vida. O protagonista do livro atravessa duros episódios durante todo o livro — lhe cortam os braços e as pernas, e ele é testemunha de crimes escabrosos; contudo, ela está lá, dentro do peito, ela lhe acompanha em tudo. É o seu amor, ingênuo, um tanto quanto estúpido, mas seu amor. Vivo, pulsante, e, para aquele homem, real. “Ela não era nem material, nem imaterial. Ela era o sentido das palavras (…) Ela era aquilo que existia, porque era sentida por mim.”. O livro segue carregado de metáforas e essa de uma existência de dentro é a mais forte. O narrador fere-se ao perceber que não consegue desvencilhar-se dessa moradia. Ele eterniza essa habitação de dentro nas folhas de um texto que ninguém nunca leu, onde ela morava. Até que, por razões inúmeras, ele ver-se num momento em que precisa libertar-se das folhas, das palavras e daquela lhe habitava a moradia de dentro. E então percebe que aquela que ali dentro vivia desaparecera. Não existia mais. Que aquela que lhe tinha todos os traços de eternidade, eternizou-se no fim, no sumir. Desapareceu.

Noutro livro, doutro português, esse de nome Valter Hugo Mãe no seu “a máquina de fazer espanhóis”, um personagem, esse também narrador de seu fim, seu António Jorge da Silva, está abandonado numa casa para idosos. Perdera a mulher, Laura, com que passara a vida inteira, e não sabia lidar com a “desumanidade de perder quem não se pode perder”. E num dos trechos do romance, ele diz algo que pode tomar algumas horas do dia para pensar sobre: “com a morte, também o amor devia acabar-se. acto contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir. pensamos, existe ainda, está dentro de nós, ilusão que criamos para que se torne todavia mais humilhante a perda e para que nos abata de uma vez por todas com piedade. e não é compreensível que assim aconteça. com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o fardo não se torne desumano. a desumanidade de perder quem não se pode perder. foi como se dissessem, senhor silva, vamos levar-lhe os braços e as pernas, vamos levar-lhes os olhos e perderá a voz, talvez lhe deixemos os pulmões, mas teremos de levar o coração, e lamentamos muito, mas não lhe será permitida qualquer felicidade de agora em diante.”

Duas mortes, as duas literais, mas que servem muito para o propósito da metáfora que nos resta aqui, a da perda, do desaparecimento do outro. Tanto o senhor Silva, quanto o narrador de Luís Peixoto — e de alguma forma todos (nós) — , perderam aquela companhia lhe moravam o peito e na hora dessa perda, desse desaparecimento do eterno, não sabiam o que fazer. Tudo indicava que não se estaria autorizado a ser feliz. Porque é assim que funciona este tipo de perda. É a perda daquilo que se considerava o pilar de uma existência, o complemento perfeito para deixar tudo ficasse equilibrado nos eixos. Quando perde-se isto, parece que a vida também se perde ali pelo meio do caminho. Tudo transforma-se em caco. É o fim.

Não, não é.

Lembre da casa de dentro, essa que aloja-se no lado esquerdo do peito. Aquela visita que ajudou tanto, agora não existe. E se viu que aquela casa maltrapilha e imunda podia ser uma casa desejosa se bem cuidada. Agora, porém, não há ninguém para ajudar a manter a casa assim e se sabe que não dá para cuidar só deste tipo de moradia. Uma grande mentira. Você constata isso com a única opção que sobra; constata isso sozinho. Ninguém quer perder uma boa casa. Aí então, depois de semanas sem querer mexer-se, com aquela fina camada de poeira voltando a impregnar os móveis da casa de dentro, se vê que não há jeito, é preciso mexer-se e entender que a partir de agora é de si pra si. Com sobre-humano esforço, que nos primeiros dias é desumano esforço, toda aquela poeira é retirada, a casa é faxinada de ponta a ponta. Nenhuma das lembranças da antiga visita se perdeu, estão todas lá: as roupas, os livros, a textura da pele, o som do sorriso, a sensação do afago, aqueles dentes insuportavelmente brancos, tudo lá. E tudo é recolhido para um novo cômodo, que sempre existiu ali naquela casa e que ainda não se tinha visto. Cabe tudo lá, até mesmo com certa folga e espaço para quinquilharias mil. Olha-se, com aqueles olhos gerais, para a casa. E ela está apresentável de novo, muito longe da antiga e primeira imagem. A visita que se foi deixou algumas — tantas — dores, mas deixou também aquela casa totalmente alterada e que jamais poderia voltar-se ao seu estado original. Era mais uma dessas condenações da vida.

Aquele cômodo não percebido e onde tudo coube com tanta folga, era o cômodo do tempo. Seu Silva de Hugo Mãe e o Escritor de José Luís, cada um no seu livro e na sua história, conseguiram viver com as vantagens do desaparecimento daquela visita da casa de dentro. Não foi o fim, e não lhe seria vetada “qualquer felicidade de agora em diante”. Ambos perceberam a tempo o desaparecer do outro. Daquela transformação de sólido para gasoso que o outro se tornara. Era tudo se transformando em tempo. Sabe-se que não é lá das mais fáceis situações, mas é importante deixar o outro desaparecer. Nasce-se só e é bom aprender a entender a solidão própria, entender que estar só é essa boa maneira de estar consigo e que a própria companhia precisa bastar — e que estar com o outro, e permitir-lhe morada nesta casa interna que carrega-se ao peito é sempre uma opção, contudo não a única — é uma forma de aprender que a vida é também solitária. E todas as solidões precisam ser opcionais — e saiba, nem sempre a opção e a escolha do outro vai coincidir com a sua e resta respeitar isso.

Porém quando o outro vai, ainda fica tudo por lá, orbitando nas nuvens das memórias e acaba-se confundindo lembranças com existência. Lembrar do que existiu não é fazer existir de novo, é tão somente a projeção de uma inexistência que um dia foi existente e hoje já não é. Não há erro em lembrar bem de quem fez bem — e fazer sumir as más lembranças de quem fez mal. Mas há a necessidade de saber que foi, agora não é mais, desapareceu. Permita que o outro desapareça, mas não deixe que as boas mudanças que aconteceram na casa de dentro se percam. Deixe tudo virar tempo. Porque, disse bem o protagonista de “Uma casa na escuridão”:

Devagar, o tempo transforma tudo em tempo. O ódio transforma-se em tempo, o amor transforma-se em tempo, a dor transforma-se em tempo. Os assuntos que julgámos mais profundos, mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis, transformam-se devagar em tempo. Por si só, o tempo não é nada. A idade de nada é nada. A eternidade não existe e, no entanto, a eternidade existe.”

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