Vanitas de Pieter Claesz

saiba morrer

Não existe boa vida, sem antes haver uma excelente relação com a morte

Ricardo Silva
Retalhos de Tudo
Published in
3 min readJul 14, 2016

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É preciso morrer. O que há hoje é uma preguiça da morte. Encarar a vida como se fosse uma contínua experiência da existência, e que essa tem um quê de eternidade, é dessas consequências podres — e pobres — de pensar que há algo além. Não há. Por mais que algumas decisões pensem em anos que não existem — lá no futuro -, viver é temporário: só acontece no agora.

E não tem volta. É só o agora que acontece e quando ele aconteceu, deixou de ser “agora”. É passado. E passado não existe. É morte, inexistência pura. Morte do tempo, morte do que ficou preso lá. O passar dos dias é uma contínua etapa de mortes. Pequenas mortes. E teima-se em insistir numa vida que mire no futuro, no além — seja no céu ou na casa do caralho, não importa: é uma estupidez pensar a vida assim.

Por isso, saiba morrer. Melhor que isso: se permita morrer todo dia. Bem possível que você tenha morrido tantas vezes no decorrer da sua vida — independente da extensão que ela tenha agora. Mas ainda não aprendeu que morrer é importante. Aprendeu a fugir da morte, a ignorá-la e mesmo sabendo que ela vem, se surpreende com a sua chegada. Contudo, o fato é: ela não vem, ela está. Ela já é presença constante.

Molha-se água. Não tem novidade aqui. Inclusive essa é uma conclusão bem óbvia de se obter, mesmo com pouco esforço mental. Porém, nunca há o questionamento: por que diabos se vive como se a morte já não fosse uma presença real? A morte está aí, do seu lado, enquanto esse texto passa pelos seus olhos. Talvez ela até te convide para uma pequena morte ao final da leitura: que tal deixar morrer agora esse babaca que vive em você? Ela pode sugerir.

A noção da morte constante é importante porque — olha só como são as coisas! — saber dessa presença potencializa esse lance curioso que você gosta mas não valoriza que se chama vida. Não vida com v maiúsculo, nem aquela vida lá, aquela que você não tem, ou aquela lá que você inveja sem nem saber porquê porras tem essa inveja. Saber morrer significa saber viver (dos clichês necessários. Não fuja dos clichês, entenda-os. Uma hora ou outra eles vão servir).

Então significa que se eu ignoro a morte, se finjo que morrer é só uma vez, não estou dando o valor devido ao viver? Isso! Não está. Pode pensar que está. Mas não está. Como saber morrer? Sabe aquilo que você acha que é e que isso nunca vai mudar? É uma mentira, você muda e mudar implica em substituir/reformular/refazer o jeito que algo tinha e não pode ter mais. Isso é morrer. Houve um rapaz grego que resumiu muito bem isso. Esse rapaz se chama Heráclito. O que ele dizia: que nunca mergulhamos no mesmo rio. Que tudo está em constante processo de mutação. Se você mergulha no rio e volta para mergulhar de novo, é preciso saber que você não mergulhará no mesmo rio e que nem você é a mesma pessoa. Passou, acabou, é outro rio, é outra pessoa. Pequenas mortes, lembra?

E ter essa consciência permite dar outra perspectiva à existência e as suas formas de ser. Saber da morte, ter uma convivência saudável com ela, permite que a vida tenha outras colorações. As chances, oportunidades já não podem ser desperdiçadas assim, como se elas existissem e fossem existir às pencas. Ledo, otário engano. Pode ser apenas aquela, ou elas podem se repetir, mas você não pode se permitir deixá-la passar. “Mas pode dar errado, pode dar merda, pode acontecer um monte de coisa!”. Talvez você não perceba, mas afirmações assim valem para tudo na vida. Tudo. Não esqueça de um outro rapaz, esse muito sabido do que dizia, que mandou a seguinte real, na lata: “Viver é perigoso!”. Não ignore o perigo, não ignore a morte. Brinque com fogo, queime-se, carbure, mas não desperdice vida não vivendo. É uma perda de tempo para todo mundo.

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