Não identificado

se deixar alucinar pelo real

a vida através das letras de Belchior

Ricardo Silva
Retalhos de Tudo
Published in
4 min readApr 30, 2017

--

Existir é como cantar. Há cantos alegres, cantos tristes, cantos lacônicos, cantos sofridos, cantos insuportáveis, cantos chorosos, cantos secos, duros e arredios como o sertão. Isso de existir, o seu Rosa já sabia, é perigoso. No fim das contas nos resta cantar, de algum jeito, ou o silêncio, essa “tela que difícil se rasga e que quando se rasga não demora rasgada”[1], chama para o combate. A vida também é essa luta entre as palavras soltas e a tela que não se rasga ou, quando se rasga, “se apressa em se emendar”[2].

Nisso de viver esse perigo, desse caminhar no deserto das vontades, dos medos e das indecisões, aparecem as miragens, as alucinações, as teorias orientais, os romances astrais, mofos que não acrescentam nada nas páginas da existência. Mas não se foge das alucinações. Elas, carregadas da potência do mistério, nos atravessam. Porém, de alguma outra forma obscura, nos cabe escolher nossas alucinações, escolher certos caminhos — os outros, o perigo escolhe por nós. Por aqui, a “alucinação é suportar o dia-a-dia e meu delírio é a experiência com coisas reais”. Que escolher a realidade, já é optar pela maior das loucuras, a mais profunda das alucinações. A realidade, com seus arranjos e rearranjos, é um delírio surreal, como se fosse uma verdadeira laranja mecânica sem pé e nem cabeça. Pode ser que seja isso que nos falte: se deixar alucinar um pouco mais pelo real. Nisso de tentar escapar do chão, dos reles da terra, e abraçar-se nas fantasias, no “algo a mais”, vai fazendo-nos esquecer que “amar e mudar as coisas me interessa mais”.

Só de falar no amor, já nos sobe rodopiantes ideias nas caixolas — da cabeça e do coração. Mas não se preocupe, que “não há amor. Só existem provas de amor. Mas, no amor, provas não bastam. Tudo mentira. Tudo cinema”. Amor também é dessas alucinações que vamos construindo no meio do deserto da existência. Um belo monumento que não serve para muita coisa. Mas amar não é crime. Pode ser que lá pelas telas do cinema, se pense “que os bandidos são úteis e nós, os amantes, fúteis”, mas não tem problema, o amor é parte dessa insanidade da vida. O que pode nos salvar mesmo, talvez, seja a paixão, essa visceralidade impulsiva da realidade, que nos “redime da obsessão do sublime, do ideal”.

E nessa “divina comédia humana onde nada é eterno” nos resta o canto. Cantar o existir, que “enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não” possamos cantar. Existir é dolorido, a realidade nos joga na cara nossa insuficiência e nos faz engolir a seco tantas e tantas vergonhas. Contudo, viver ainda vale a pena, de alguma estranha forma. Vale, mesmo sagrando, mesmo apanhando demais, mesmo chorando pra cachorro.

Ainda temos muito que brigar com o silêncio da noite, que a “noite é vida e vida é jogo e jogo é sorte e sorte é vária”. E já que não contamos com o sucesso ou com o dinheiro, temos “que ter sorte bastante, para escapar salvo e são das balas de quem lhe quer bem”. Nessa luta vamos pensar nas desistências, vamos pedir “Vida, pisa devagar meu coração cuidado é frágil”. Algumas vezes ela vai nos ouvir, em outras vai se fazer de surda e pisar com força. Se dá medo? Dá. Medo, medo, medo, medo, medo, medo. E tudo bem ter medo.

Nesse pequeno mapa do tempo, o sertão da vida, nesse cabralino canto a palo seco, se expande e se encolhe; nos encolhe, nos agiganta. E assim seguimos, brincando com a vida, brincando com fogo, já que a “vida está sempre por um triz”, e é esse ciclo que se fecha e se abre, que nos joga, na hora do fim, para outros tantos recomeços. Mas “um novo momento precisa chegar. Eu sei que é difícil começar tudo de novo, mas eu quero tentar.” No fim de tudo, viver é apenas gritar. Um monte de som, fúria, um clamor no deserto, onde a gente se cansa “de não poder falar palavra sobre essas coisas sem jeito que eu trago em meu peito e que eu acho tão bom”. Mas, meu leitor amigo, não se preocupe “com os horrores que eu lhe digo. Isso é somente uma canção. A vida realmente é diferente, quer dizer, a vida é muito pior.”

É muito pior. Tão pior quanto ver o Diabo rodopiando no redomoinho e ao olhar o furdunço das areias das nossas decisões, enxergar um Narciso às avessas: ao invés do encantamento com nossa beleza, se vê que não somos tão nobres assim como nos pintamos. Como se a raça humana fosse dotada da bela feiúra, que passa e repassa, de geração em geração, talvez para mostrar que somos como nossos pais. A aridez da vida mescla-se com a secura que carregamos cá dentro. Mas ainda temos a opção da revolta, de fugir da sina do errante, e descobrir que “o que transforma o velho no novo bendito fruto do povo será. E a única forma que pode ser norma é nenhuma regra ter; é nunca fazer nada que o mestre mandar. Sempre desobedecer. Nunca reverenciar.”

O caminho não é fácil, a briga não é só com esse perigo que é a existência. É também brigar com os sujeitos que ficam cá dentro no peito disputando nossa atenção. Mas, com um pouco de tempo, a gente aprende. Aprende que o bom da vida mesmo é não se preocupar com as respostas: é saber mais sobre as perguntas. O seu Guimarães, o Rosa, homem sabido dos sertões e de suas veredas, sabia bem que “vivendo se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.”[3]

[1] Trecho do poema “A palo seco” de João Cabral de Melo Neto. [2] Idem. [3] Trecho do romance “Grande sertão: veredas” de Guimarães Rosa.

Curta o Retalhos no Facebook // Siga Ricardo no Twitter //

--

--