Agentes insubmissas: Rompendo imaginários moldados pela democracia racial

steffane santos
Retomadas Epistemológicas
7 min readAug 16, 2021
Fonte: Sérgio Moraes

Lélia Gonzalez em “Debate: A cidadania e a questão étnica” (1985), aponta sobre brancos falarem por nós e nos convida a tornar-nos sujeites de nosso próprio discurso, de nossas próprias práticas. E há algum tempo, o lixo tem falado e numa boa (GONZALEZ, 1983). Os feminismos negros brasileiros, se movimentam, principalmente, a partir da década de 1970, com uma agenda ampla organizada de lutas, emergindo dos movimentos negros e do movimento feminista hegemônico. E por que corre a falácia da nossa não movimentação? Seria algum aparato político-ideológico que tange o inconsciente brasileiro?

Não conseguiria desassociar ao que Lélia Gonzalez (1983) denomina de neurose cultural brasileira. A ideologia do branqueamento e a democracia racial, definem a identidade negra brasileira, formando um duplo nó, para antropóloga (GONZALEZ, 1995). A democracia racial que torna o racismo à brasileira suficientemente sofisticado, para ser incorporado politicamente, socialmente, psicologicamente e institucionalmente, para Abdias Nascimento (2016). A democracia racial propaga a mentira de um conflito não existente, e logo a falácia da presença de harmonia racial, corrobora com o silêncio dos conflitos étnico-raciais no país. O silêncio, o não dito, por sua vez, se apresenta como uma característica do racismo à brasileira, segundo Kabengele Munanga (2017). Nascimento (2016), aponta ainda que a imagem desumanizante da “mulata”, é acionada como uma forma de ratificar a democracia racial brasileira.

Retornando ao ponto de partida, a falácia da não resistência que impera no imaginário coletivo brasileiro perpassa a democracia racial. A perspectiva que aponta para essa não reação, não incorpora a grandiosidade da resistência negra (e indígena, aqui não em pauta mas cabe o parêntese) frente à opressões interseccionais.

Me coloco à retomar no presente, não o discurso de Sojourner Truth, que por sua vez inaugura um dos questionamentos mais importante e que abala estruturas dos feminismos hegemônicos, quando se questiona se não é ela, uma mulher. A ideia de quem merece ser incorporada nessa categoria de “mulher” nos rendeu décadas de estudos sobre uma categoria que passa a representar não o segmento de mulheres como um todo, mas um grupo específico. Proponho-me a demarcar Esperança Garcia.

Em 1770, Esperança Garcia, escravizada, escreveu carta ao governador da província do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, reivindicando seu direito de batizar seus filhos. A carta denuncia graves abusos e maus tratos sofridos por ela, seus filhos e demais escravizadas que viviam em região que, atualmente, é o município de Nazaré do Piauí. No passado, a região pertencia à fazenda de Algodões da Inspeção de Nazaré. Segundo relatos de pesquisas como o projeto de pesquisa A Carta de Esperança Garcia: Uma mensagem de coragem, cidadania e ousadia, desenvolvido na Universidade Federal de Pernambuco, Esperança Garcia nasceu em Algodões e foi alfabetizada pelos jesuítas. A carta se tornou pública pelo antropólogo Luiz Mott em 1987, surpreendendo pelo fato de uma mulher negra escravizada tê-la escrito. Algumas informações apontam que Esperança Garcia foi alfabetizada por jesuítas e reivindicou seu único direito de professar sua fé, frente ao governador (SANTOS, 2020).

Fonte: Instituto Esperança Garcia

Esperança Garcia é somente um dos exemplos de mulheres negras escravizadas que nunca se calaram. Não há registros de silêncios por nossa parte. Não em um país com a presença de organizações quilombolas, tendo a primeira república das améfricas livre, a República de Palmares (GONZALEZ, 1979).

Não hesito em colocar também o epistemicídio como um vetor de aprofundamento em uma gama de falácias. O colonialismo e sua perpetuação pela colonialidade, engendrou a raça e o racismo, e nos colocou nesse lugar de subalternidade, Outroridade, como prefere Grada Kilomba (2019), enquanto condição do que o branco europeu não quer se parecer, como o negativo e indigesto.

E quando falamos, principalmente onde acham que não podemos falar, geramos esse nó na garganta daqueles que ousam não querer nos engolir. Quando Gayatri Spivak (2010), em seu trabalho “Pode o subalterno falar?” [1], diz que a subalterna é aquela que não pode ser ouvida ou lida e se encontra em lugar ainda mais periférico de subalternidade. E mesmo que tapem seus ouvidos, nós temos falado, em alto e bom som.

Mulheres negras têm sido grandes agentes epistêmicas e políticas. Mulheres de bica d’água estavam e estão rompendo com estruturas [2]. Desde a década de 1970, temos demarcado opressões interseccionais, enquanto mulheres negras. Não à toa, o trabalho de Lélia Gonzalez é tão potente e pioneiro. Antecede o paradigma interseccionalidade ou encruzilhada como prefere Carla Akotirene (2019) [3]. O lugar de privilégio epistêmico que ocupamos evidencia isso e demonstra nossa percepção de uma sociedade racista e sexista, e nos faz grandes lideranças de movimentos e versáteis intelectuais [4].

Assim, nós, mulheres negras, nunca fomos senão, agentes insubmissas [5]. Organizadas nos cinco cantos do país em movimentos de bairros, de mães e no movimento feminista.

Estamos sempre nos movimentando. Desde o Nzinga — Coletivo de Mulheres Negras no Rio de Janeiro, ao Grupo de Mulheres Negras Mãe Andresa, no Maranhão. Em uma dialética entre opressão e ativismo, na medida em que sofremos opressões interseccionais estamos reagindo, para Collins (2019). De maneira organizada ou na nossa vida cotidiana, sendo amefricanas e criando o feminismo afro-latino-americano como um dos mais respeitados do mundo (CARNEIRO, 2003).

Notas

[1] Cabe ressaltar que “o subalterno” em Spivak, em tradução para o português faz entender um sujeito masculino, no entanto, não é isso que a intelectual indiana explora, isto é apontado por Grada Kilomba em Memórias da Plantação.

[2] Em uma ocasião, em um encontro de mulheres feministas em 1983, Lélia Gonzalez conta de um relato de uma das integrantes do Nzinga/RJ. Ao discutirem sobre quem representaria as mulheres no comício das Diretas no dia 21 de março, uma feminista branca, não aceitando a indicação de uma mulher negra e favelada para o comício declarou que: “mulher de bica d’água não pode representar as mulheres”.

[3] O trabalho de Lélia Gonzalez também, antecipa em 10 anos, a noção de imagens de controle de Patricia Hill Collins. Imagens de controle se tratam de imagens desumanizantes que são mobilizadas institucionalmente e socialmente para desumanizar mulheres negras. A imagem da mulata, da mãe preta e da doméstica, se aproximam em larga escala da imagem da jebezel, matriarca e mammy em Collins (2019).

[4] Com intuito de expandir o debate que permeia a interseccionalidade trago algumas críticas apontadas ao conceito. Para Ochy Curiel (2020), o conceito não questiona sobre a produção das diferenças presentes nas experiências de muitas mulheres. Para ela, a interseccionalidade tende a multiculturalismo liberal, que não se propõe a questionar as razões para a necessidade da inclusão desses marcadores, sendo definido a partir do paradigma moderno eurocêntrico. Assim, propõem que a compreensão desses marcadores são constitutivos da epistemologia moderna colonial. Pensamento esse, que se assemelha às contribuições de Espinosa Miñoso (2020), que entende que não se tratam apenas de intersecções ou entrecruzamentos, mas de uma matriz, a matriz moderna-colonial racista de gênero. Acredito que tencionar paradigmas metodológicos é um processo necessário para a construção e alargamento teórico. São campos de disputa dentro do fazer pesquisa. No entanto, acredito que argumentos que criticam o paradigma não devem invalidar seu uso, mas abrir os olhos para sua aplicação. Por isso, o utilizo aqui.

OCHY, Curiel. Construindo metodologias feministas a partir do feminismo decolonial. In: Heloisa Buarque de Hollanda. (Org.). Pensamento feminista hoje. Perspectivas decoloniais. 3ed.Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

ESPINOSA MIÑOSO, Yuderkys. Sobre por que é necessário um feminismo decolonial: diferenciação, dominação coconstitutiva da modernidade ocidental. MASP. Afterall. 2020.

[5] Uso agente a partir da perspectiva de agência de Sherry Ortner.

Referências Bibliográficas

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.

CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estudos Avançados. 17, 2003.

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 1. ed. São Paulo: Perspectivas, 2016.

GONZALEZ, Lélia. A mulher negra no Brasil. (1995). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. org. Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

_____________. A mulher negra na sociedade brasileira: Uma abordagem político-econômica. (1979). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. org. Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

_____________. Mulher negra. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. org. Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

_____________. Debate: A cidadania e a questão étnica. (1985). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. org. Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

_____________. Racismo e sexismo na cultura brasileira. (1983) Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. org. Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

MUNANGA, Kabengele, 2017. “As ambiguidades do racismo à brasileira”. In: KON, Noemi Moritz, DA SILVA, Maria Lúcia & ABUD, Cristiane Curi, O Racismo e o Negro no Brasil — Questões para a Psicanálise. São Paulo: Perspectiva.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Editora Cobogó, 2019.

SANTOS, Steffane Pereira. Movimento de Mulheres Negras no Brasil: Rompendo com os silenciamentos e protagonizando vozes. Revista de Ciências do Estado. Belo Horizonte: v. 5, n. 2, e24506. ISSN: 2525–8036.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

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steffane santos
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em catarse, catando versos descartados de palavras já ditas e que sufocaram por ecoar. terra.