Resenha: Dengos e Zangas das Mulheres-Moringa

Letícia Pereira
Retomadas Epistemológicas
5 min readMay 28, 2021

Aspectos da vivência afetivo-sexual de mulheres negras

A obra Dengos e Zangas das Mulheres Moringa: Vivências Afetivo-Sexuais de Mulheres Negras (2020) é fruto da tese da socióloga Bruna Jaquetto e fala sobre os “dengos” — as paixões — e as “zangas” — as desventuras amorosas — de mulheres negras. A autora pontua como o machismo e o racismo interferem na percepção que elas têm de si mesmas, nas escolhas de seus parceiros e parceiras e na forma como lidam com sua sexualidade.

A pesquisa se baseia em relatos que vão desde a infância até a idade adulta, protagonizados por mulheres negras de idades, orientações sexuais e contextos diversos, e utiliza da ideia de Interseccionalidade para expandir conceitos da Teoria Social.

Le déjeuner sur l’herbe: les trois femmes noires (2010) — Mickalene Thomas

A autora contextualiza a evolução na forma como homens e mulheres conceberam suas relações ao longo da história, contando com períodos de elevado cerceamento para as mulheres e também de suposta equiparação entre os gêneros com os adventos da modernidade. Neste sentido, levanta que, além das relações sociais, as relações afetivo-sexuais também são significadas pela branquitude. As escolhas de parceiros e parceiras, bem como do tipo de relação, não partem exclusivamente das subjetividades de cada indivíduo. Isso porque as noções de modernidade e colonialidade informaram quais são os relacionamentos legítimos e os ilegítimos, a partir de articulações de gênero e de raça, que criam uma moralidade sexual dual na sociedade brasileira.

Os Progressos das Nações (2017) — Rosana Paulino

Para mulheres negras, a empreitada colonial importou em violências sexuais por parte dos colonizadores. Estupros foram traduzidos em estratégias de dominação e branqueamento e justificados pela suposta hiperssexualidade. A partir daqui, temos a diferenciação de gênero pela raça, além da definição das bases da mestiçagem como uma relação ilegítima, porém, que se alia aos preceitos da democracia racial. Ou seja, pelo corpo negro e feminino perpassa de maneira violenta o processo eugenista de “melhora” daqueles que viriam a nascer, preferencialmente, mais próximos da mestiçagem que da negritude.

Muitas das entrevistadas foram ensinadas desde a infância que atributos físicos ligados à negritude representam feiura, ao passo que traços que aproximam-se das feições da branquitude são bem vindos. O conceito de feminilidade negra é complexo, traz a ambiguidade entre negritude e feiura de maneira velada, pois os termos utilizados para se avaliar a estética da mulher negra criam significados quanto à raça sem precisar mencioná-la.

Nos primeiros espaços de socialização, família e escola, perpetua-se a visão de que a raça é um elemento que impede mulheres negras de desempenhar o papel modelar do gênero feminino.

O ambiente familiar reproduz ao gênero feminino os primeiros ensinamentos sobre moralidade sexual. No seio de famílias negras, essa prática se dá a partir do imaginário social de que pessoas negras têm tendência a formar famílias desestruturadas. A figura da “mãe solteira”, por exemplo, aparece nos relatos como um destino a ser temido e evitado. Além disso, dentro das escolas, meninas negras passam por situações vexatórias bastante específicas. Muitos dos relatos apontam para episódios aparentemente ingênuos, como por exemplo as quadrilhas de festa junina e a convivência com os colegas que as preteriam ou as apontavam como “a menina mais feia da sala”.

A socióloga traz, também, uma análise aprofundada sobre as dinâmicas de flerte e de abordagens em alguns espaços de socialização no DF, quais sejam, eventos de samba que são frequentados por muitas pessoas brancas e a festa Batekoo, iniciativa pensada por e para pessoas negras. Além disso, se debruça sobre o grupo de facebook Afrodengo.

Nos sambas, aparece de forma bastante clara a figura da “mulata” como a face hiperssexualizada e “atrativa” da mulher negra. É comum que homens brancos abordem mulheres negras de maneira abertamente sexual, como se seus corpos estivessem ali para servir, como parte da diversão do evento.

É possível observar uma hierarquia entre homem branco e mulher negra que é diretamente ligada ao sexo e ao enaltecimento da mulher negra por sua suposta hiperssexualidade. No entanto, esta sexualidade, ao mesmo tempo que exaltada no discurso racista, é tratada como um advento que pertence ao homem branco. Ou seja, as camadas compostas por enaltecimento e dominação os permite acionar ora um sentido, ora outro.

Por outro lado, na festa Batekoo e no grupo de facebook Afrodengo, a presunção sobre a sexualidade da mulher negra também acontece. A autora aponta uma certa imposição e cobrança para que mulheres negras não se relacionem com homens brancos, como condição para o pertencimento e para serem consideradas “politizadas”.

Em algumas discussões do grupo Afrodengo, foi possível notar que os padrões de rejeição à negritude afetam ambos os gêneros. Percebe-se que alguns homens negros se utilizam desta ferida histórica para supor que mulheres negras não estão em condição de negá-los. O conceito “amor afrocentrado”, por vezes, aparece como mais uma forma de opressão à mulher negra, perpetuando o descaso quanto ao afeto, ignorando a autonomia de seus corpos.

A Redenção de Cam (1895) — Modesto Brocos

A socióloga conclui que, para se opor à dupla moralidade sexual, mulheres negras “optam” por caminhos que a aproximam do isolamento, ou, como põe a autora, de uma “prisão subjetiva”, e que não necessariamente a afastam da vulnerabilidade. Viver entre o desejo fugaz e a rejeição as encaminha para um quadro de escolhas bastante limitado: ora performam sua sexualidade livremente, percebendo que associações racistas lhe dariam uma suposta vantagem; ora fogem do estereótipo da negra sensual, “travando” — como coloca uma das entrevistadas — o exercício de sua sexualidade.

Conhecer as regras do jogo não exime estas mulheres do banzo. Trata-se de um jogo dúbil, permeado por comportamentos opressores de brancos e negros. O medo do abandono e da solidão controla a sexualidade de muitas mulheres negras, a partir do espelhamento em imagens de controle (COLLINS, 2009) narradas pela branquitude. Se seguidas as regras desse jogo, tudo flui harmoniosamente para a construção do mito da democracia racial, possível graças aos sentidos dados sobre o corpo negro e feminino.

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