A fotografia analógica como forma de expressão

O filme, a criação e os desafios da mulher na fotografia analógica

Gabriella Tiscoski
Retratos e Relatos
7 min readJun 8, 2017

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“Já se prepara pro bullying que vão fazer comigo só por eu preferir a cor ao preto e branco.” Assim inciou-se minha conversa com a Júlia. Aos 22 anos, formada em Design de Moda, ela é apaixonada por fotografia analógica. Ao contrário de muitos fotógrafos que não abrem mão do preto e branco, o processo criativo de Júlia é feito em cores.

Júlia Brümmer

Como você encontrou a fotografia?

Eu entrei na fotografia na intenção de encontrar um escape para os problemas psiquiátricos que eu tenho e que estavam muito graves na minha adolescência. Eu possuo transtorno de ansiedade social e durante a adolescência eu tive um pico muito forte, essa doença se mostra por altos e baixos ao longo da vida e ela não tem cura, você vai tratando quando ocorrem oscilações e esses picos são desencadeados por gatilhos diversos. Eu sempre estudei tudo que remete a arte, justamente porque isso também foi um abrigo pra minha cabeça, depois fui pegando braços criativos como a moda e aí veio a fotografia. Dentro de moda eu comecei a me interessar por comunicação de imagem porque o que eu via não me representava, e até hoje não me representa, que é a questão de estereótipos corporais, de pele e raça. Na fotografia eu comecei tirando fotos de paisagens aleatórias e retratos, s quais futuramente convergiram pra dentro da moda, eu tinha uns 13 ou 14 anos quando comprei a minha primeira câmera, que era digital. No início eu tinha um pouco de receio de fotografar, eu só fui mostrar a minha câmera ao público mesmo perto dos meus 16 anos. Eu achava que estava fazendo alguma coisa errada, que eu tinha gasto dinheiro em algo estúpido e que as pessoas iam brigar comigo. Depois de experimentar bastante com o digital um belo dia eu simplesmente descobri uma câmera compacta analógica na gaveta da casa dos meus pais, era bonitinha e tinha aquela coisa vintage que chama atenção e aquilo instigou a minha curiosidade. Quando eu caí de cabeça no filme eu não quis mais fazer outra coisa e depois fui descobrir que a maioria das minhas fotos de inspiração eram analógicas e eu não sabia, coincidências que a vida apronta pra gente. Mas mais uma vez: foi o escape de problemas psiquiátricos que me fez entrar de corpo e alma dentro das áreas criativas, em especial a fotografia, e hoje eu consegui tornar isso tudo a minha profissão.

Entrando agora na questão da analógica, o que você acha que tem no analógico que não é possível alcançar com o digital?

O analógico lida essencialmente com luz e com o efeito que essa luz produz em cima da química. Existe uma defesa clássica de que o analógico produz efeitos de luz, de cores e texturas que outras mídias não produzem, que o analógico é diferente, que tem uma coisa mais humana, que guarda memórias de uma forma mais sentimental. Tudo isso é verdade, a gente concorda, mas já saturou utilizar essa justificativa. Pessoalmente, o que torna o analógico muito mais interessante é trabalhar com o processo artesanal. Eu gosto de bordar, gosto de cozinhar, gosto de fazer as coisas com a mão e o analógico é isso, é um processo artesanal. É quase 100% manual. Existe um cuidado e uma aproximação muito forte e um controle muito forte que você precisa ter pra atingir o que almeja. Ao mesmo tempo, isso te proporciona uma liberdade absurda, porque a quantidade de formatos e possibilidades que você consegue tirar é infinita. Pra mim é diferente e faz mais sentido porque é um processo artesanal.

Júlia Brümmer

Como é teu processo criativo? De onde você tira inspiração e quais são suas referências?

É uma bagunça, porque eu penso demais. Inspirações? vêm de todo canto. Primeiramente da internet num todo, depois das artes no geral: literatura, música, cinema, poesia, pintura. Eu também funciono no modo aleatório, pode ser alguma frase que alguém escreva, uma pichação, o que passa rápido pelos meus olhos quando estou no carro, algum animal. De qualquer outra coisa que eu observe ou com a qual eu tenho contato.

Em relação a mulher, o que ela representa em seus retratos?

Primeiramente eu sou mulher e eu só me sinto representada no cerne por trabalhos que abordem a mulher como um ser que vai além da sexualidade, além da figura da deusa, da musa, isso já virou até algo meio rançoso e que me deixa cansada. O empoderamento feminino trabalha o nu feito entre mulheres como forma de conhecer e saber habitar o corpo que se possui, mas ainda assim o excesso de fotografias com nudez é algo que me perturba um pouco, especialmente nudez de corpos que são socialmente aceitos como belos. É importante prestar atenção que manifesto se faz lá no alicerce com o que gera perturbação e não necessariamente beleza. Eu acho que fica implícito que trazer a mulher em pauta nas minhas fotos significa abranger outras diretrizes, como a própria figura de uma profissional que está performando algo e especialmente dentro da proposta conceitual, que é o meu foco, pois esta sempre traz de forma literal ou subliminar uma série de questionamentos.

Você me falou sobre os problemas relacionados ao machismo e afins, quais os desafios que você enfrenta por ser mulher?

O primeiro deles, e sem dúvidas o mais problemático, é a falta de oportunidades de trabalho por eu ser nova, mexer com coisas meio abstratas e, lógico, pelo status de fêmea. Mulheres ainda são consideradas inferiores apenas por serem mulheres. Eu já cheguei a ouvir de donos de pequenas empresas e pessoas com cargos superiores que mulher dá muito mais problema porque, além de ficar de TPM, engravida, precisa pagar enquanto não vai trabalhar. Outras coisas bastante incômodas que acontecem são assédios dentro e também fora do ambiente de trabalho, porque muita gente mistura as duas coisas e não sabe enxergar um limite de relações. Chantagens em troca de favores, já cheguei até a passar por pressão psicológica em termos de coação, fora a falta de educação básica em lidar com as pessoas. O fato é que nós já conquistamos muita coisa sim, mas estamos longe do sonho utópico de termos nossos direitos básicos e igualitários garantidos e todos precisamos começar a agir pra isso mudar, porque permanecer no modo reflexivo e teórico eterno sobre o problema, não adianta de nada.

Em relação as cores, tem algum motivo especial pra você fotografar mais em cores?

Quando eu caí de cabeça no analógico, experimentei de tudo. O preto e branco foi uma das primeiras coisas que eu aprendi porque é o método mais simples de manejo. O que me motivou a pender pro lado das cores não foi nada muito recente, eu já gosto disso desde criança. Primeiro, o desafio de lidar com uma mídia muito mais delicada e que precisa de um nível de exatidão perfeito pra atingir o objetivo desejado. Segundo, a minha afinidade com criatividade, por exemplo, eu também pinto aquarelas. Para mim, lidar com a dinâmica das cores é algo infinitamente mais intenso do que permanecer presa a escalas de cinza, quando você atravessa com o pincel molhado em cima de uma tela é quase como se os pigmentos tivessem vida de tanta intensidade, a forma como uma nuance completa a outra e criam combinações que despertam a nossa emocionalidade é algo muito sinistro. Isso foi um dos fatores por eu ter migrado pro analógico, o digital nunca me satisfez com o resultado de cores porque nessa técnica se lida com o pigmento de luz criado por um sensor que tem uma capacidade resoluta de captação de tons, já dentro dos filmes existem camadas e mais camadas pra abrigar cada tipo de variação que os olhos conseguem perceber, e aí entra a questão da cor feita à mão, da cor física. Você conseguiria imaginar um mundo no qual daqui pra frente você só conseguisse ver um pavão, uma flor e os olhos de alguém em escala de cinza? Pois é, você sente que existe algo do qual você necessita, faltando. É por isso que eu faço o que eu faço.

Acompanhe os trabalhos da Júlia: Flickr; Lomography; Behance.

Júlia Brümmer
Júlia Brümmer
Júlia Brümmer

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