A notícia morta noticia a morte

Leonardo Lopes
Retroativo
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3 min readSep 15, 2018

Prenúncios de um falso anúncio.

Às inverdades, sempre houve espaço. Do destaque a uma declaração retirada de contexto à mera priorização consumada de determinados fatos, realidades foram falseadas a favor da construção de teses e narrativas. A pecha da enganação nem sempre as acompanhou declaradamente, garantindo a eficácia de sua incisão sobre a opinião pública.

“Um sinal disso ficou evidente numa pesquisa feita na Universidade de Massachusetts a respeito das atitudes com relação à atual Crise do Golfo — uma pesquisa sobre crenças e atitudes baseadas no que a televisão transmite. Uma das perguntas da pesquisa era: “Entre mortos e feridos, quantas vítimas você calcula que a Guerra do Vietnã causou?” A resposta média dada pelos americanos hoje é que foram cerca de 100 mil. Dados oficiais apontam que foram cerca de 2 milhões. O número real provavelmente está entre 3 e 4 milhões.”

- Noam Chomsky, em “Mídia — Propaganda política e manipulação”

O que distingue as inverdades do nosso tempo é a maneira de encarar o seu oposto. De conteúdo, a tal verdade foi transformada em forma. Uma estrutura formal, com diretrizes estabelecidas, na qual a mensagem deve se calcar para adquirir veracidade. Desde que enquadrada neste molde, o teor do que afirma pouco ou nada representa — afinal, haverá quem, na ilusão ou desejo do real, o credite.

Bem formalizado, o absurdo passa-se por realidade:

*NOTÍCIA URGENTE PLANTÃO DA GLOBO*

URGENTE: Direção do Hospital Albert Einstein acaba confirmar a morte de Jair Bolsonaro. O deputado federal e candidato à presidência da república não resistiu às complicações decorrentes do atentado ocorrido na semana passada.

Veja a íntegra o pronunciamento https://g1.globo.com https://encrypted-tbn3.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcTu8G-W0iEFB7QbWgrqjsTtmofCMcY9Gp1MrRrI5XQ3LDeqGmG-cmSGKTqF

A elaboração cumpre com todos os requisitos. Morte de figura famosa — não há necessidade de qualquer explicação, aqui. Na disposição da corrente, o link para a imagem enganosa segue, sem distinção marcada para o leitor en passant, o endereço — correto — do G1, veículo de credibilidade, sugerindo tratar-se do mesmo conteúdo, originado do portal. Por sua disposição primária no corpo, a miniatura do G1 acompanha a mensagem (vide imagem), reforçando a ideia e destacando-a espacialmente em meio às outras transmissões que a cercam na tela do usuário. O texto disposto é objetivo e reproduz convenções do modus operandi da imprensa: credita a declaração ao hospital e trata o “falecido” por títulos publicamente formais. Uma fórmula historicamente cristalizada pela imprensa e que, por carga empírica, transmite veracidade.

No canal de comunicação de um projeto jornalístico de verificação, foram registradas, num período analisado de menos de 24 horas (entre as tardes das últimas quinta (13) e sexta-feira (14)), 111 incidências desta corrente, em reproduções enviadas voluntariamente por cidadãos que duvidaram de sua genuinidade. A respeito de quantos outros acreditaram e passaram-na adiante, só podemos especular.

O link final do proposto informe direciona para a imagem debochada: “É mentira”. Esta fake, especificamente, escancara o trato com o público que a acessa. Mas toda notícia mentirosa está enraizada por má fé. Aproveita-se do estado de indivíduos — estes, sem más intenções — que, diariamente bombardeados pelo excesso de informação recebida por seus aparelhos, não dotam de um nível de concentração que os acompanhe por mais do que algumas palavras — não à toa, a produção midiática digital é, cada vez mais, pensada para conteúdos curtos e de rápida absorção. Às mensagens propagáveis produzidas, basta que, em menos de um minuto, soem legítimas e informem o “fato”. Nada menos do que o necessário para que, na urgência dos fatos, sejam massivamente repassadas. A missão do produto está, afinal, cumprida. Nesta realidade, caixão vazio também ganha velório.

A informação foi desmentida pela Gazeta do Povo.

15/09/2018.

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Leonardo Lopes
Retroativo

Jornalista graduado pela FAAP/SP, pós-graduando em Sociopsicologia pela FESP/SP.