A representativa democracia

Leonardo Lopes
Retroativo
Published in
5 min readDec 18, 2018

Resenha do livro “Ruptura: A crise da democracia liberal”, de Manuel Castells.

Publicado no Brasil em 2018 pela editora Jorge Zahar, “Ruptura: A crise da democracia liberal” é uma observação essencialmente atual dos movimentos que, em distintos territórios do mundo, colocam em risco a concepção de um Estado democrático conforme tradicional e ocidentalmente o concebemos. Autor do livro, o sociólogo espanhol Manuel Castells, amplamente reconhecido por “Sociedade em Rede” e “A Era da Informação”, o classifica como “um produto híbrido característico de nossa transição comunicativa”. A afirmação se justifica: dada a importância de informações concretas que atestem as percepções nela contidas, a publicação é acompanhada de um site (www.zahar.com.br/livro/ruptura) onde, para livre acesso, está disponibilizado um notável apanhado de dados, estatísticas e documentações que inspiraram a realização do texto — além de, evidentemente, terem amparado a elaboração do mesmo.

Situando o tom objetivo da obra, Castells identifica de início um dos fatores determinantes do “obstáculo histórico” que nos encara: a crise de legitimidade política (expressão que intitula o capítulo inicial). Preparamo-nos, nas últimas duas décadas, para um contexto sólido de organização política no qual alçamos, pelo voto, um grupo de cidadãos ao posto de nossos representantes por períodos estipulados — esta é, sem mais delongas, a estrutura da democracia representativa. A sensação de insuficiência quanto a este sistema, contudo, parece nos ter alcançado. Entre os fatores levantados por Ruptura para assimilar esta insatisfação coletiva, o mais apurado deles localiza um aspecto profundamente contextual:

“É a ideologia do consumo como valor e do dinheiro como medida do sucesso que acompanha o modelo neoliberal triunfante, centrado no indivíduo e em sua satisfação imediata monetizada. Na medida em que as ideologias tradicionais — fossem as igualitárias da esquerda ou aquelas a serviço dos valores da direita clássica — perderam firmeza, a busca do sucesso pessoal através da política relaciona-se com a acumulação pessoal de capital aproveitando o período em que o indivíduo detém posições de poder. Com o tempo, o cinismo da política como manipulação deriva em um sistema de recompensas que se alinha com o mundo do ganho empresarial na medida em que se concebe a política como uma empresa. Por fim, não há corruptos sem corruptores, e em todo o mundo a prática das grandes empresas inclui comprar favores ao regulador ou ao contratador de obra pública. E como muitos o fazem, é preciso entrar no jogo para poder competir.” (P.25)

Enquanto foram capazes de produzir avanços democráticos irrefutáveis em diversos setores da sociedade, os anos que encerram o século XX e inauguram o seguinte proporcionaram evoluções ainda mais fortes em termos de ampliação do capitalismo, locando sobre valores contraditórios à democracia — como um individualismo intenso (quiçá insano) — o motor do desenvolvimento global sob este sistema. Quando uma instituição sustentada pela ideia de indivíduos a representar interesses coletivos ocupa parte central da mesma realidade que impõe a busca obsessiva das próprias e intransferíveis ambições — normalmente financeiras -, o entrevero pode ser catastrófico.

A descrença que afoga compromissos e ideais coletivos também o faz com as instituições — sejam elas partidárias, jurídicas, jornalísticas, trabalhistas ou governamentais — que deles se originam. Neste cenário de terra arrasada, o eleitorado recorreu, ao votar, a razões que as ciências políticas e sociais e a imprensa ainda se esforçam para desvendar. Um fenômeno entendido como estadunidense (Trump), francês (Macron), britânico (Brexit) e, além do alcance de Ruptura, também brasileiro. A análise, entretanto, não nos foge. Ao usar a eleição de Donald Trump como exemplo, Castells aponta que “Ele descobriu, desde as primárias, como estar sempre na mídia sem necessidade de pagar por ela. A troco de declarações escandalosas e polêmicas que as redes sociais amplificavam e os meios de comunicação se apressavam em reportar, geralmente para criticá-las.” (P.43) e, mais adiante, que “(…) Trump respondeu com desprezo, mentiras e ataques pessoais, inaugurando um novo modo de comunicação presidencial: o governo via Twitter. Tuitando sem cessar, geralmente em plena noite, suas opiniões, críticas e decisões sobre qualquer assunto ou pessoa. Na realidade, o que parece um desvario é coerente com o traço mais importante de Trump: a personalidade narcisista. Ele precisa de adulação contínua e fidelidade incondicional. (…) Ou seja, está sempre em campanha, porque é aí que sente seu poder e, sobretudo, se sente querido” (P.56/57) Em comparação, o jornal O Globo, na edição do dia 04/11/2018, em matéria intitulada “Da agressividade aos juramentos, os muitos tons do presidente”, de Marco Grillo e Jussara Soares, publicou as seguintes informações a respeito de Jair Bolsonaro:

“Do início da campanha eleitoral até o domingo da vitória, foram 1.267 publicações nas duas redes sociais [Twitter e Facebook], média de 17 por dia, além de 15 entradas ao vivo. No entorno do presidente eleito, aliados defendem a manutenção do estilo de comunicação direta no governo, especialmente nas mensagens via Twitter (…) Na internet, houve oportunidades em que o discurso ganhou contornos mais agressivos: no dia do primeiro turno, questionou o resultado das urnas e levantou a suspeita de fraude, o que gerou reação imediata do TSE. Em outro momento, reagiu à associação que havia sido feita entre o assassinato do mestre de capoeira Moa do Katendê com uma discussão política a respeito de sua candidatura — “Imprensa lixo”, escreveu. O contato direto com o eleitorado, sem intermediação, ganhou corpo ao longo da campanha. O que de início era uma forma de escapar das amarras do ínfimo tempo de propaganda na televisão — só nove segundos por bloco, contra os mais de cinco minutos de Geraldo Alckmin (PSDB) — virou uma estratégia que se intensificou na mesma proporção em que os resultados foram aparecendo.”

Além da obtenção gratuita de divulgação midiática, a famigerada comunicação direta proporciona um “universo ideal” de campanha, onde ataca-se sem a necessidade de defesa. Diante da percepção do autor de que “a forma de luta política mais eficaz é a destruição dessa confiança através da destruição moral e da imagem de quem se postula como líder” (P.27), compreende-se a efetividade desta tática — utilizada pela campanha do presidente eleito brasileiro especialmente por meio dos disparos de conteúdos no WhatsApp, em sua maioria difamações morais de seus concorrentes. Sua cruzada, porém, apresenta um amadurecimento dos exemplos “bem-sucedidos” anteriores ao desenvolver recursos característicos do cenário tupiniquim. O emprego de uma informalidade que o aproxima da maior parte do eleitorado — “No discurso, saem as mesóclises empoladas de Temer e entram os já folclóricos “isso aí”, para se referir a diferentes temas, e o “tá ok?’”, observa a matéria “Informalidade de Bolsonaro marca nova estética de poder” (Fernanda Krakovics. Jornal O Globo, 04/11/2018) — remete à percepção, do próprio Castells, de que a “elitização” dos políticos condena sua legitimidade diante da população. E, no aspecto propagandístico, responde-a à altura. Caso pretenda publicar uma segunda edição de Ruptura, o autor terá a possibilidade de contemplar estas questões.

Por ora, se este for de fato o próximo passo de nossas proclamadas “democracias”, cabe a este que vos escreve recomendar a leitura das “Teses sobre o conceito de história”, de Walter Benjamin, publicadas em 1940.

Ruptura está disponível para aquisição nas livrarias, entre elas a Martins Fontes e a Cultura.

04/12/2018

--

--

Leonardo Lopes
Retroativo

Jornalista graduado pela FAAP/SP, pós-graduando em Sociopsicologia pela FESP/SP.