Also, With, And — O cinema em constelações
Constelação: palavra derivada de “constelar”, por sua vez originada do latim, “con”: grupo e “stelar”: estrela. Um grupo de estrelas.
Quando nos colocamos, ao ver um filme, diante da primeira aparição de determinado ator ou atriz em cena, carregamos conosco a bagagem de uma relação prévia com sua filmografia. Assim, é natural presumir de imediato, por exemplo, que o sujeito vivido por Tom Hanks seja confiável, enquanto associamos a insanidade àquele interpretado por Jack Nicholson. Ainda que ostente a nobre virtude de nos transportar da realidade que habitamos, o cinema jamais poderá estar imune a toda e qualquer interferência externa à diegese — mesmo que esta seja concebida, afinal, pela própria criação narrativa.
Uma das razões que motivam tamanha empolgação acerca de “Vingadores — Guerra Infinita” (2018), de Anthony e Joe Russo, mundialmente em cartaz nos cinemas e despertador das questões discutidas neste texto, reside justamente no caráter super de seu elenco — e, evidentemente, não me refiro ao heroísmo das personagens. A cinefilia, independentemente das mudanças pelas quais passa, preserva certos prazeres iniciantes: extasiar-se ao acompanhar a reunião de grandes astros numa mesma trama está entre elas. A presença de Robert Downey Jr., Scarlett Johansson, Chris Hemsworth, Chris Pratt, Benedict Cumberbatch, Chris Evans, Elizabeth Olsen, Peter Dinklage e Mark Ruffalo — entre outros nomes — em meio às toneladas de armaduras e efeitos especiais que ilustram a mais ambiciosa produção da Marvel Studios intensificam nossa experiência, tornando-a mais afetiva em decorrência da tal relação existente com cada um destes artistas. Não por acaso, o estúdio promove uma espécie de “adaptação” do aparentemente ultrapassado star system de Hollywood (ver o Box), garantindo remunerações milionárias — as partes 1 e 2 de “Guerra Infinita” foram gravadas ao mesmo tempo para evitar um notável “pagamento dobrado” ao elenco, conforme ouvido neste podcast — e participações estipuladas nos lucros em troca de uma quase-exclusividade — Emily Blunt e John Krasinski, protagonistas do ótimo “Um Lugar Silencioso” (2018), do próprio Krasinski, recentemente revelaram suas recusas a convites passados do estúdio pelo nível de comprometimento necessário, que inibe os atores de embarcarem em projetos paralelos -, mostrando-se ciente da importância das estrelas na constelação formada por seu universo midiático.
Abre aspas — STAR SYSTEM: Sistema no qual atores e atrizes assinavam contratos de exclusividade junto a produtoras que, a partir daquele momento, administrariam a carreira dos contratados durante longos períodos; localizava-se, justamente, do período de apogeu do sistema de estúdios, quando o glamour cercava seus principais ícones — Joan Crawford e Cary Grant são célebres casos –, cuja presença num pôster passara a ser capaz de garantir multidões na bilheteria — e, consequentemente, engordar seus contracheques.
O exemplo dos esquadrões de super-heróis serve para evidenciar que, embora o personalismo e a importância das grandes figuras tenha se dissolvido parcialmente na esfera cinematográfica contemporânea, equivoca-se quem o dá por sepultado — investir fortemente na formação do elenco foi passado e é presente na sétima arte. Recordo-me de poucos anos atrás, quando me chamavam muita atenção, especialmente em videolocadoras, os pôsteres de filmes cuja parte superior era preenchida por uma conferência de nomes icônicos. Os mais destacados encerravam, antecedendo cada um dos três últimos estampados no cartaz, com “Also… With… And” — gabando-se, ou quase isso, pela pronunciada “posse” de tão impressionante rol. O efeito é evidente: por mais que “Stallone Statham Li Lundgren Couture Austin Crews Rourke Willis” fosse impactante, “Stallone Statham Li Lundgren Norris Crews Couture Hemsworth also Van Damme with Willis and Schwarzenegger” o derrota tranquilamente — e observe, em ambos, a representativa dispensa dos primeiros nomes, num claro caso de marketing inteiramente baseado no “casting power” (termos publicitários funcionam somente em inglês, oras).
A despeito de poder ser instrumentalizada para o lucro de uma obra, a reunião de astros propriamente dita não deve ser encarada pejorativamente — e duvido que seja -, nomeada “muleta de divulgação”, que tem neste seu único objetivo. Ao longo dos tempos, elencos foram consolidados como os maiores da história do cinema precisamente pelo protagonismo de obras-primas — mesmo que, à altura da realização, não estivéssemos falando necessariamente de estrelas. “O Poderoso Chefão” (1972), de Francis Ford Coppola, talvez seja o maior exemplo. Marlon Brando, Al Pacino, James Caan, Robert Duvall, Diane Keaton, John Cazale, Talia Shire e Richard Castellano encabeçavam a trama vencedora de três Óscars, num conjunto de interpretações que entrou para a história e ainda comove. Anos depois, o mesmo Marlon Brando, já na condição de astro, viria a receber US$4 milhões para viver Jor-El em “Superman” (1978), de Richard Donner, maior salário pago, até então, a um ator. Em seguida, Francis Ford Coppola viria a dirigir “Apocalypse Now” (1979), obra que considero épica em todos os sentidos — incluindo o dos intérpretes. Unir Marlon Brando (ele, novamente), Martin Sheen, Robert Duvall — sensacional aqui -, Dennis Hopper, Albert Hall, Laurence Fishburne e Harrison Ford no caloroso cenário vietnamita de uma produção à beira do caos pode ter perdido a proporção diante da diluição da filmografia dos citados, mas carrega um peso singular e que permanece impressionante.
Tal qual Coppola, outro grande realizador estadunidense, Sidney Lumet, estabelecia-se como um diretor de grandes elencos por duas obras: “Assassinato no Expresso Oriente” (1974), adaptação de Agatha Christie, agrupava Albert Finney, Lauren Bacall, Sean Connery, Ingrid Bergman, Vanessa Redgrave, Anthony Perkins e Jacqueline Bisset; e dois anos mais tarde, o inspirado “Rede de Intrigas” entregava performances estupendas de Peter Finch e Faye Dunaway — ambas premiadas com o Óscar em 1977 -, William Holden, Ned Beatty, Beatrice Straight e Robert Duvall.
No que diz respeito a cineastas de uma geração posterior, vale a lembrança de Paul Thomas Anderson, que comandou uma constelação no maravilhoso “Boogie Nights — Prazer Sem Limites” (1997): Mark Wahlberg, Burt Reynolds, Julianne Moore, Don Cheadle, John C.Reilly, William H.Macy, Heather Graham, Luis Guzmán, Philip Baker Hall, Thomas Jane e o saudoso Philip Seymour Hoffman. E embora este fenômeno seja predominantemente notado na cinematografia norte-americana, justifica-se também a menção de um título nacional: “O Auto da Compadecida” (2000), de Guel Arraes, responsável pela escalação de Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Rogério Cardoso, Denise Fraga, Diogo Vilela, Luís Melo, Enrique Diaz, Marco Nanini, Paulo Goulart, Lima Duarte e Fernanda Montenegro (caberia um “also with and” aqui) para a adaptação de uma das maiores obras da literatura brasileira.
Ainda que franquias consolidem-se sobre a marca que constroem e, dentro da lógica financeira das grandes produções, “demandem” menores investimentos no elenco, há exemplos no século XXI — além do que introduz este texto — que contraprovam esta convenção. O caso mais famoso é o da Trilogia Ocean (iniciada por “Onze Homens e um Segredo” (2001), de Steven Soderbergh), que em diferentes oportunidades reuniu nas telas nomes como George Clooney, Brad Pitt, Matt Damon, Julia Roberts, Andy Garcia, Catherine Zeta-Jones, Ellen Barkin, Don Cheadle, Bernie Mac e Al Pacino; noutra trilogia, a do Cavaleiro das Trevas (cuja estreia se deu com “Batman Begins” (2005), de Christopher Nolan), Christian Bale, Heath Ledger, Gary Oldman, Michael Caine, Liam Neeson, Aaron Eckhart, Marion Cotillard, Anne Hathaway, Tom Hardy, Cillian Murphy e Morgan Freeman deram vida às personagens da DC Comics.
Nestas e em outras reuniões memoráveis que percorrem sua história, o cinema prova que, em nossa odisseia para conhecê-lo, as estrelas também podem nos guiar.
Atualização em 04/06/2018
Após a publicação deste post, propus um exercício imaginativo aos membros de grupos de discussão cinematográfica no Facebook: pensar em reuniões de astros que muito nos alegrariam se ocorressem, mas ainda não foram proporcionadas por nenhuma produção; uma espécie de constelação dos sonhos — afinal, ainda que sejam muitos os encontros já ocorridos, conforme levantado por este texto, nós nunca estaremos satisfeitos.
Conversei com alguns colegas do Cinerama Clube, grupo com mais de 63 mil membros, que imaginaram duas reuniões bastante desejáveis. O cinéfilo Eduardo Bibiano propôs um “choque de gerações”, num drama policial ao melhor estilo Quentin Tarantino, que reuniria um núcleo composto por nomes mais experientes — Bill Murray, Jack Nicholson, Jessica Lange e Willem Dafoe — dividindo a tela com outro formado por intérpretes de gerações mais recentes — Brad Pitt, Charlize Theron, Tilda Swinton e Tom Hardy. Considerando a versatilidade dos artistas reunidos, habituados a viverem tanto heróis quanto vilões, creio que nos surpreenderíamos com o papel de cada grupo na trama; o que não surpreenderia, entretanto, seria o grande público que a produção levaria aos cinemas. Por sua vez, Phelippe Pereira sugeriu um longa-metragem que reunisse Daniel Day-Lewis, Frances McDormand, Joaquin Phoenix e Natalie Portman. A julgar pela presença de Day-Lewis e Phoenix, este que vos escreve está convicto de que, por já tê-los dirigido em mais de uma oportunidade (ainda que separadamente), ninguém melhor do que Paul Thomas Anderson para comandar este projeto.
Será que ainda teremos o prazer de ver estas constelações em cena?
Sinta-se honradamente convidado a, através da barra de comentários do texto ou do twitter deste autor (@lrleonardo), elencar outros dos grandes elencos (poupem-me: o trocadilho não foi proposital) da sétima arte que possam acrescentar ao debate. Conversemos.
06/05/2018.